Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Carta: primeiro Dia das Mães sem ela https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/09/carta-primeiro-dia-das-maes-sem-ela/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/09/carta-primeiro-dia-das-maes-sem-ela/#respond Sun, 09 May 2021 12:11:04 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/anders-jilden-O85h02qZ24w-unsplash-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2381 Celebrar a vida também é receber de braços abertos os sentimentos das saudades e da dor.
Neste Dia das Mães, muitos estão sem suas mães para atender uma telefonema, receber um presente ou um abraço.
A leitora Aneliza Torquato nos enviou uma carta para sua mamãe que não está mais aqui. É o primeiro sem ela. Um abraço a todos que possam se identificar com esse relato.
Obrigada pelo envio Aneliza.
Carta à minha mãe:
Minha mãe,  Arlete.
Que difícil escrever algo pra você hoje, sendo que eu sempre fiz questão de  te homenagear de alguma forma, desde criança. E é doloroso fazer isso nesse primeiro ano que você não está mais aqui comigo, em presença física, presença essa que eu sinto tanta falta.
Eu falo hoje no lugar da saudade, uma saudade irremediável, imensa, que me consome todos os dias e não suaviza…Saudade de você inteira e de você nos detalhes.
Saudade de nós, da nossa convivência, trocas,cuidado,da nossa relação, dos nossos beijos e abraços,do nosso vínculo.
Saudade também de mim, de quem eu era antes de sua partida. Perder a mãe é perder muito e parte de si.
Você que foi a  minha primeira morada, hoje faz morada em mim. E como não te tenho mais fora, te tenho, te sinto, te encontro e te carrego dentro, eternamente!
Obrigada pelo nosso encontro nessa vida, obrigada por ter sido a melhor e a mais amorosa mãe que eu podia ter! Te amo meu amor!
Um abraço da sua filha Aneliza
]]>
0
Como se ama na ausência? Uma homenagem de filho para pai https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-se-ama-na-ausencia-uma-homenagem-de-filho-para-pai/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-se-ama-na-ausencia-uma-homenagem-de-filho-para-pai/#respond Wed, 05 May 2021 13:03:46 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/odilson-francisco-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2280 Há algumas semanas, me deparei com o depoimento de Paulo Ferraz nas redes sociais. No dia 7 de maio completa três meses da partida de seu pai, Odilon Francisco Ferraz.

Nascido em 5 de outubro de 1944, em Cachoeira de Minas, mudou-se para Mato Grosso em 1957. Acompanhou de perto a colonização do estado e se dedicou à topografia por aproximadamente 30 anos. Nos últimos 25, se dedicou ao comércio. Faleceu ao 76 anos, em Cuiabá, após um infarto em decorrência da Covid-19.

No passado, Odilon passava dias viajando à trabalho. Paulo precisou aprender a amar na distância e na ausência. Mesmo diante da lonjura, ele e o pai continuaram próximos e grandes amigos. Nos reencontros, sentavam-se numa mesa, abriam uma garrafa de cerveja e passavam o dia conversando. Aqui em casa era igual. Meu pai era bom de prosa e de copo. Todo sábado, sentávamos na varanda, uma cerveja do lado e o rádio na voz de Moisés da Rocha, com seu samba pedindo passagem.

Escritor e professor de Literatura, Paulo faz dança com as palavras, mesmo num momento tão difícil, em um relato emocionado que traz a pergunta que muitos de nós, enlutados, gostaríamos de responder: ‘como é que vou conversar agora [com meu pai], quando o reencontro não é mais possível?’.

Como é possível continuar amando, mesmo numa distância tão mais longa que a geográfica? Numa ausência que parece tão irredutível? No livro ‘A máquina de fazer espanhóis’, de Valter Hugo Mãe, o personagem principal, Silva,  perde a companheira na terceira idade e vai morar em um asilo. Em uma das reflexões, a personagem diz assim:

“o meu projeto era esquecer tudo, era protestar contra a morte da laura convencendo-me de que, depois da morte de alguém que nos é essencial, ao menos a memória do amor deveria ser erradicada também”.

No meio da narrativa, um companheiro da casa, Anísio franco, que indica o seguinte aprendizado:

‘nada disso, senhor silva, nada disso, o que me faz correr é sempre o mesmo, uma vontade de saber mais e o de deixar contado às pessoas, nos livros. deixar nos livros aquilo que se descobre, porque um livro, com o que contém, pode ser uma fortuna eterna”.

Sabe, eu não tenho uma resposta exata à pergunta do Paulo. Mas sigo o conselho de Valter Hugo Mãe, nas palavras do senhor Anísio e entendo que, enquanto houver memória, existe amor. No mais, deixamos registrada aqui as memórias de Paulo sobre o pai Odilon:

Paulo Ferraz

Meu pai foi o meu maior modelo, o homem que mais admirei em toda minha vida e olha que tem uma penca de pessoas que admiro. Quando criança ele era pra mim um herói, eu sei que todas as crianças pensam isso e precisam acreditar em uma força sobre-humana, mas meu pai tinha poderes que eram só dele.

Passava meses na Amazônia, chegava lá por estradas de terra ou em aviões que o vento tirava da rota, e uma vez na mata enfrentava até onça, e na falta de onças tinha que se proteger dos grileiros ou das tribos que repeliam os grileiros. Com meu pai longe, tive que aprender até a falar por meio de rádio amador, câmbio.

Isso pra mim soava como aventura, mas era trabalho, e era necessidade, e era perigoso, e a gente sentia um alívio imenso quando ele voltava. Com o tempo aprendi a ver nele uma capacidade ímpar de se superar, uma inteligência rara de quem só tendo o grupo escolar aprendeu a operar um teodolito e a passar ângulos, rumos e azimutes para o papel, fechar um perímetro de quilômetros quadrados; uma inteligência que lhe permitia falar sobre todos os assuntos, e como gostava de falar, ah, como gostava.

Como aprendi com ele, e como agora puxando na memória continuo a aprender, pois tudo o que ouvi ressoa agora em mim. Por passar temporadas fora de casa, às vezes dois meses, ele me ensinou a amar à distância, a amar na ausência, a amar guardadinho no peito, pois o amor se impõe sobre o espaço, o amor se impõe sobre a geografia, o amor se impõe sobre o tempo, o amor se impõe sobre o silêncio.

Quando ele finalmente resolveu que ficaria em casa, foi quando eu saí para São Paulo e assim seguimos nos amando à distância, falando pelo telefone por mais de vinte anos, desde 1995, nos vendo nas férias, mas cada reencontro era como se nunca houvesse separação, além de pai e filho, eu já com vinte e ele com cinquenta, viramos dois bons amigos, desses que se sentam numa mesa, abrem uma garrafa de cerveja pra conversar sobre o dia a dia e o dia passa sem a gente ver.

Como é que vou conversar agora, quando o reencontro não é mais possível? Câmbio? Câmbio? Eu que há anos vinha planejando escrever um romance sobre a chegada de uma família de mineiros no Mato Grosso, uma família de mineiros com oito crianças, a nona nasceria aqui, que teve que aprender a navegar pelo rio Arinos e a extrair látex de seringueiras (eles tinham um seringal nativo, me faltou perguntar como é que acharam as árvores? Quem autorizou a extração? E aquele seringalista de Diamantino? Quem comprava a produção, o Banco da Borracha?).

Tinha tanta coisa pra perguntar… como era a vida entre os alemães? E o dia que descobri que meu pai guardava na memória palavras em alemão? Voltei a sorrir como o velho menino quando ele contou eins, zwei, drei, vier, fünf…. Como vocês se relacionavam com os “beiços de pau”? Como era mesmo a história do garoto que um dia saiu da mata gritando “Jaguaretê! Jaguaretê!”? E o dia que o Rômulo lutou com um jacaré pra salvar o cachorro? E tinha lontras, sim, eu me lembro que tinha lontras….

Ele sabia que eu andava pensando nisso, pois vez ou outra a gente tocava no assunto, falávamos do José Ferraz, militante da década de 1930 (que acabou preso em 1964, pelo visto mesmo longe de Minas seguia sendo vigiado), que aprendi a admirar, tamanha a admiração que meu pai tinha pelo meu avô.

E eu que tanto admiro meu pai, queria que meus filhos tivessem tido mais tempo com ele, que tivessem aprendido com ele tudo o que aprendi, que tivessem comigo essa mesma relação entre a fantasia e a realidade. Nessa semana, quando o medo era proporcional ao amor, eu pus os pés na Mantiqueira, pertinho de onde ele nasceu, onde estivemos juntos há alguns anos, e eu vi com meus filhos passar um bando de mutuns, mas foi como se eu os visse pelo meu pai, como se eu estivesse emprestando meus olhos pra ele, pra que ele visse a mata, pra que ele visse os pássaros pulando de um galho para o outro.

Tenho certeza de que ele foi um homem bom, foi um homem feliz e realizado, pois construiu uma vida digna com a coragem, as mãos e a inteligência, viveu mais de cinquenta anos ao lado da minha mãe, formou três filhos (a gente antes dizia, formou, hoje sei lá), dos quais se orgulhava e estava assistindo aos seus cinco netos crescerem.

Talvez por que hoje eu tenha 46 anos, há algum tempo vinha reconhecendo em mim formas e gestos do meu pai. Estávamos ficando cada vez mais parecidos, até os corações se pareciam, o dele e o meu perdem o ritmo. E num dia em que o meu disparou, ele pegou um avião e veio cuidar de mim.

Eu queria ter podido cuidar dele, estava voltando hoje justamente para ajudá-lo a se recuperar, queria pegar na mão dele e falar que estava ali do seu lado, esperando para irmos embora juntos. Mas ele partiu horas antes de eu chegar em Cuiabá.

Espero que nos seus sonhos ele tenha visto os mutuns, tenha sentido a terra úmida da Mantiqueira e as gotas de chuva que caem entre as folhas dentro da mata. Se hoje eu tenho profissão, títulos, livros é porque meu pai se arriscou por mim, por meus irmãos e, especialmente, por minha mãe (quem disse que eu estava errado ao dizer que ele era um herói?).

Não só se sacrificou, mas principalmente nos deu lições de como sonhar, lições de como vencer, lições de como respeitar, lições de como amar. Esse homem bom e amigo que partiu hoje vai deixar muita saudade e continuará sendo para mim meu modelo de pai, meu modelo de homem, a pessoa que eu sempre quis ser. Pai, como é que era mesmo a história do jaguaretê?

]]>
0
O adeus a Alipio Freire, o homem que queria a Lua https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/o-adeus-a-alipio-freire-o-homem-que-queria-a-lua/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/o-adeus-a-alipio-freire-o-homem-que-queria-a-lua/#respond Fri, 30 Apr 2021 22:55:54 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/alipio-freire-creditos-ivan-trimigliozzi-memorial-da-resistencia-de-sp-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2349 por Tatiana Merlino*

Um “revolucionário de veludo”. Foi assim que um amigo definiu Luiz Eduardo Merlino, meu tio, jornalista e militante que não pude conhecer porque foi morto em 1971, aos 23 anos, em decorrência das torturas comandadas por Carlos Alberto Brilhante Ustra durante a ditadura civil-militar. Pego emprestada a expressão “revolucionário de veludo”, no entanto, para descrever Alipio Freire, meu amigo que morreu na quinta-feira passada, 22 de abril, de Covid-19.

Voz grave, sorriso largo, cabelos brancos longos amarrados num rabo. Bigodes, óculos, pele morena, dedos longos. Alto e altivo, caminhava com uma bengala, vestia calça jeans e all star. Um charme. Foi assim que o conheci pessoalmente, no início dos anos 2000, embora já o conhecesse por meio de relatos, textos, e livros sobre a ditadura, como o “Tiradentes: um presídio da ditadura”, organizado por ele próprio.

Era um homem de grandes ideais, enorme generosidade e gentileza no trato. “Rigoroso na análise e generoso no gesto”, como alguém escreveu esses dias. Tratava a todos de forma igual, sem distinção, como também contam inúmeros relatos sobre ele.

Alipio Freire ao lado de seu próprio autoretrato, na exposição "Pequenas Insurreições" que ele fez a curadoria/Daniel Garcia/Teoria e Debate
Alipio Freire ao lado de seu próprio autoretrato, na exposição “Pequenas Insurreições” que ele fez a curadoria (Daniel Garcia/Teoria e Debate)

Logo que nos conhecemos, Alipio me contou que conheceu Merlino, que haviam trabalhado juntos na imprensa. Ele foi uma das pessoas que me ajudou, ao longo de vários anos, a juntar histórias para recriar um tio que nunca conheci. Ajudou a plantar flores na lápide que habitava o meu peito. E me ajudou a conhecer mais sobre a ditadura, apresentou relatos e personagens, contou dezenas de histórias. Foi fundamental na minha formação de jornalista e defensora de direitos humanos com os temas ligados à tortura, à memória, à justiça e à militância contra a ditadura.

Foram duas décadas de companheirismo e amizade. Alipio foi e é umas das grandes referências na minha vida. Uma mistura de tio, padrinho, companheiro de luta, amigo, mestre.

Nossos primeiros anos de convivência foram no Brasil de Fato, jornal que ele ajudou a fundar e onde fui uma das primeiras a integrar a redação. Nós, os jornalistas da equipe de redação, participávamos das reuniões do conselho editorial, do qual faziam parte figuras importantes de vários setores da esquerda brasileira, entre eles, Alipio.

Eram aulas sobre conjuntura política brasileira. As análises de Alipio eram feitas de pé, voz grave, pausas, cabeça erguida. Foi também numa dessas reuniões, em 2006, que ele levantou-se quando um dos participantes fez uma consideração que desagradou a um outro. O segundo, irritado, dirigiu-se ao primeiro, de forma pouco amigável. Alipio, que estava sentado entre os dois, ergueu-se e levantou também sua bengala, impedindo que algo ali acontecesse.

Alipio começou a participar do dia a dia da redação. Todos ganhamos apelidos hilários, malucos ou impronunciáveis. Ele era o mais velho, mas o mais jovem entre nós. Foram tantas conversas no bar, piadas, risadas, histórias. Alipio chegava na redação jogando balas nas nossas mesas. E escrevia os editoriais. Ao terminá-los, pedia sempre a opinião de um de nós. Era erudito e humilde. Sempre nos tratou como iguais. Nas reuniões de pauta e do conselho, fazia desenhos e bilhetes. Nos e-mails, sempre começava com um “grande e querida camarada”.

Além das firmes posições de esquerda e da generosidade, tinha um humor único e fazia piadas que só ele podia fazer, como bem lembrou a amiga Dafne Melo, que trabalhou conosco no jornal. Nesses dias de balanço da morte do meu amigo, fui me reencontrar com ele em dezenas de mensagens de e-mail, entre elas uma em que dizia “há duas coisas das quais não podemos abrir mão:1. De nos indignarmos. 2. De dar risada –inclusive de nós mesmos, e sobretudo dos nossos inimigos”.

Alípio Freire em uma das saídas do Cordão da Mentira. Créditos: Sato do Brasil/Jornalistas Livres.
Alípio Freire em uma das saídas do Cordão da Mentira. (Sato do Brasil/Jornalistas Livres)

Quando comecei a namorar o Igor Ojeda, que o Alipio dizia ter “o melhor texto de sua geração”, pouco depois Igor foi morar na Bolívia, para trabalhar como correspondente do jornal. Alipio, vendo-me saudosa do namorado, inventou um apelido boliviano para mim, pelo qual seguiu chamando-me até hoje, como no último recado deixado em minha caixa postal do celular, dias antes de ser internado.

Já não sei qual era o ano, mas era um dia do fechamento do Brasil de Fato. Um carro da ENEL parou na frente da casa de esquina da Eduardo Prado, no Campos Elíseos, e funcionários da empresa preparavam-se para cortar a luz. Alipio saiu à porta e subiu na escada que estava apoiada no poste, onde a energia seria cortada. Os homens ficaram atônitos e um deles disse, por rádio: “Tem um vovô aqui na escada”. A luz não foi cortada.

Alipio foi um grande lutador pela verdade, memória e justiça pelos crimes cometidos pela ditadura militar. Escreveu livros, organizou debates, fez filmes, foi a escolas, participou de atos. E esteve ao lado de nós, a família de Luiz Eduardo Merlino, durante as ações que movemos contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu assassino. Esteve nas audiências, nos atos, uma presença forte e solidária.

Em 2008, quando entramos com a primeira ação civil declaratória, que tinha a intenção de exigir que o Estado reconhecesse a responsabilidade de Ustra nas torturas e assassinatos de Merlino, no período em que as audiências aconteceram, comecei a receber telefonemas ameaçadores. “Agitados os cachorros do doutor Adalberto”, disse uma voz masculina, logo depois que eu voltei de um passeio com meus cachorros. Doutor Adalberto era meu pai, já falecido àquela época, delegado de polícia que encontrou o corpo de Merlino no IML logo após seu assassinato.

As ligações seguiram. “Seus terroristas”. Havia também chamadas insistentes de um número identificado, que não dizia nada quando eu atendia. Era uma noite de fechamento do Brasil de Fato, quando ligamos de volta para o número que me telefonava sem parar. Havia uma caixa postal e uma voz masculina dizia “xoxota estuprada”. Nesta noite, ao escrever o editorial, Alipio relatou as ameaças. E ao voltar para casa, fui ‘escoltada’ por Alipio e por Danilo Cesar. Quando chegamos ao destino, Alipio desceu do carro e disse algo ao segurança do prédio. Eu jamais me esqueci ou me esquecerei desta noite.

Dias depois, quando houve a audiência no Tribunal de Justiça de São Paulo, além de ex-presos, amigos e jornalistas, também compareceu um conhecido policial civil que cometeu crimes no Dops durante a ditadura. Foi nos intimidar e falar para os jornalistas ali presentes que éramos terroristas. Alipio também estava ali, corajoso e solidário.

A solidariedade e amizade de Alipio seguiram. Ele esteve, esteve sempre, como definiu bem esses dias Delana Corazza, também amiga de Alipio. Esteve presente à cerimônia no Tuca, quando ganhei meu primeiro prêmio de jornalismo, em 2009. Esteve presente no aniversário de um ano da minha filha Catarina, a quem, num gesto tipicamente de Alipio, presenteou com uma edição de bolso do Manifesto Comunista e uma coroa de princesa e a quem chamava de “Pequena Imperatriz Proletária.”

Assim que Alipio foi internado, foi criada uma rede imensa de amor e solidariedade, composta por amigos e companheiros. Pessoas de inúmeras gerações e trajetórias juntaram-se num grupo de Whatsapp para torcer pela recuperação do nosso amigo. Amigos da prisão, da época da fundação do PT, do teatro, dos jornais que ele ajudou a fundar e de sua linda história, de arte e literatura. Gente de várias faixas etárias.

Foi nesse contexto que conheci o relato do ator Celso Frateschi, também ex-preso, que traduz a capacidade de Alipio de lutar pela vida, e de uma forma só sua, usando o humor:  “ [….] Estávamos com mais uns vinte  companheiros jogados num cativeiro da OBAN que ficava num quartel perto do Ginásio do Ibirapuera. Alipio foi levado para uma cela contígua e barbaramente torturado durante muitas e muitas horas. Durante muito tempo fomos torturados por sua tortura. Na minha lembrança, foi na madrugada que ele chegou carregado, sem nenhum movimento no corpo. Me revoltou a deformação de seu belo rosto, muito machucado, pois seus cabelos e seus bigodes foram arrancados com um alicate. O pau de arara tinha interrompido a circulação em seus membros e Alipio não conseguia se mexer. Estávamos todos assustados,  revoltados e impotentes diante de tanta violência e requintes de crueldade. Lembro que meu irmão Paulo e eu com ajuda e ajudando os outros companheiros, conseguimos encostá-lo em uma das paredes da cela. Lentamente, ele mal conseguia esticar suas pernas, respirou fundo umas duas ou três vezes, abriu o seu largo sorriso e pronunciou com um desejo verdadeiro e um pouco de deboche: ‘Ah! Quem me dera arfar docemente nos braços argentinos de Angelita!’. Nunca soube de quem escrevera esses versos, pois para mim sempre foram do Alipio. Foi um aprendizado definitivo, além da racionalidade. Todos, apesar da situação, rimos muito, o moral se elevou e nos preparamos melhor para enfrentar o “inferno”.”

Após a luta armada contra a ditadura, quando integrou a organização Ala Vermelha, Alipio foi renovando permanentemente sua militância e luta. Foi um dos fundadores do PT, era parceiro e apoiador do MST, esteve com as Mães de Maio e Cordão da Mentira, sem nunca abandonar a “ponte para a utopia”. Em diversas entrevistas que deu sobre o que viveu na ditadura, citou os versos da música “Começaria tudo outra vez”, de Gonzaguinha: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama em meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão”. Em um depoimento ao Instituto Vladimir Herzog, seguiu: “A gente só é capaz de fazer o que está colocado enquanto alternativa pela história. Errar, nós vamos sempre errar. Só não errará quem nada fizer, o que já é um erro de começo”.

Em 2008, quando foi organizado o primeiro ato no DOI-CODI, na rua Tutoia, desde a ditadura, Alipio disse uma frase que hoje Nicolau Leonel relembra: “O nosso projeto seria muito mesquinho se ele se reduzisse ao espaço de nosso tempo biológico individual. Nós temos um compromisso com os jovens, por isso eu estou aqui. Por isso continuarei em todas as manifestações. Há um compromisso de continuidade na construção de outro mundo. É óbvio que se nós da minha geração conseguirmos assistir isso, será fantástico. Mas se não conseguirmos e soubermos que estamos colocando novos alicerces para um mundo igualitário e livre, eu acho que teremos sido vitoriosos”.   

Hoje, Alipio está morto e eu assisto chorando, em looping, a este trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós, em que ele fala sobre construir uma ponte para a utopia: ‘Nós queremos a Lua, algo que seja aparentemente impossível. E nós teremos a Lua”.

Alipio Freire em frame do trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós.
Alipio Freire em frame do trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós

Ouço Alipio e sinto uma combinação de dor, saudade, amor e revolta. Penso em algumas palavras de ordem dos movimentos de luta por memória como o “Ni Olvido, Ni Perdón”, “Sem justiça não haverá paz” e “Eu sou os que foram”, que não sei de quem é a autoria, mas que ouvi pela primeira vez no espetáculo “Morro como um país”, da então Companhia Kiwi de Teatro, hoje Coletivo Comum.

Aprendi com Alipio e demais militantes e sobreviventes da ditadura que quando um companheiro morre, os que sobrevivem tem como tarefa continuar contando a história dos que morreram. Nós ainda não conseguimos fazer a ponte para a Lua. Também não conseguimos, apesar de muita luta, punir os torturadores da ditadura. E é um dos motivos pelos quais o Brasil elegeu um homem que louva a tortura, a ditadura, a morte, que representa a ditadura. E que hoje, por meio de um projeto genocida, nos mata, mata os nossos que lutaram contra a opressão da ditadura, mata Lays Machado e Alipio Freire.

Se não tivesse morrido por conta do projeto genocida de Jair Bolsonaro, Alipio seguiria lutando, e é esse o compromisso que temos de assumir, como diz o final da música de Gonzaguinha, a mesma da qual Alípio citava o começo: “Ao som desse bolero, a vida, vamos nós. E não estamos sós, veja meu bem. A orquestra nos espera, por favor. Mais uma vez, recomeçar”.

Alipio Freire, presente, agora e sempre!

*Tatiana Merlino é jornalista de direitos humanos e escritora. É coeditora do livro “Luta, substantivo feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à Ditadura”, organizadora de “lnfância Roubada: Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil” e coeditora de “Heroínas desta História: Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura”.

 

]]>
0
Qual seria o meio termo da vida? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/21/qual-seria-o-meio-termo-da-vida/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/21/qual-seria-o-meio-termo-da-vida/#respond Thu, 21 Jan 2021 13:55:53 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Unknown-320x213.jpeg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2226  

“Se você cuida de alguém, saiba que não está sozinho. Não seja orgulhoso em pedir ajuda quando achar que deve. Ainda existem pessoas boas no mundo. Cuide de si. Só é possível cuidar de alguém se você cuida de si. Procure aproveitar o presente não se culpe pelo que passou e nem tenha medo do possível sofrimento que possa vir no futuro. Eu pensei que cuidaria da minha mãe quando ela chegasse a certa idade mas esse processo se adiantou em anos e em dificuldades. Nós nunca estaremos preparados pra cuidar dos nossos pais ou avós. Isso simplesmente acontece e quando chegar a hora só tenha paciência e dedicação”.  

Matheus Almeida – filho de Zilda Fátima de Almeida

Zilda Fátima de Almeida foi diagnosticada com câncer de útero em 2010. Na mesma semana, foi atropelada. Meses depois, teve um AVC isquêmico que a deixou acamada. Filha mais velha de quatro irmãos, nasceu no interior de Minas Gerais, em Monte Santo de Minas. Aos 17 anos, perdeu o pai e viu sua mãe abandonar a família. Cuidou dos irmãos mais novos e foi atrás de emprego. Se formou em biologia, passou no concurso dos Correios em primeiro lugar e foi parar no IBGE, até se aposentar. Ela teve um filho, Matheus, que não deixaria essa nova fase da vida deprimir a mulher que tanto admira. Ele fez de tudo para trazer alegria, ganhar um sorriso. Esse amor emociona demais.

Matheus é escrivão da polícia civil. Nas horas vagas, leva a mãe para aventuras em sua cadeira de rodas. Uma das fotos, abaixo, mostra Matheus saindo do mar com a mãe nos braços. Outra, tem os dois no meio de um campo de girassóis. Eles ainda correm maratonas de 5 quilómetros. Dona Zilda é levada pelo filho em um triciclo adaptado.

Matheus colocou na cabeça que poderia ganhar uma promoção da Latam para assistir a abertura dos jogos olímpicos no Rio 2016. Ganhou. E lá foram eles.

Durante a pandemia, ele trouxe um violonista para tocar na porta de casa. Depois, foi a vez do sax.

“A última que aprontamos foi um camarote dentro de casa pra que ela pudesse assistir ao especial do Roberto Carlos”. Matheus colou um cardápio na porta, com bebidas pagas em quantidades de beijinhos e se vestiu de garçom. Postaram um registro da montagem que chamou atenção do próprio ‘rei’. Dona Zilda ficou eufórica.

Cada foto tem um processo e os dois se divertem na montagem. Para o retrato da Frida Kahlo, por exemplo, pensaram na caracterização, no enquadramento, até publicarem nas redes sociais (@matheus.allmeida). Dona Zilda adora ouvir, do filho, os comentários que recebem.

“Ela começou a se conectar com o mundo através de mim. Até um tempo atrás eu fazia por ela. Mas hoje eu sei que faço por ela e por mim também”.

 

Ele me contactou com um depoimento, reproduzido abaixo.

“O que eu puder fazer pra ajudar outras pessoas em situações semelhantes, e pra que minha mãe tenha uma ótima qualidade de vida, eu vou fazer”.

Tenho certeza disso, Matheus.

Qual seria o meio termo da vida?

Por Matheus Almeida @matheus.allmeida

O mundo é composto por dualidades: temos a noite e o dia , o preto e o branco, o quente e o frio, a vida e a morte.  Em todos os exemplos que eu dei, há um meio termo , algo que fica no caminho, entre um processo e outro: o entardecer, o cinza, o morno..  mas qual seria o meio termo da vida?

Há quem diga que o meio termo da vida seria ali dos 30 aos 60 ou dos 40 aos 80, mas diferentemente dos exemplos que citei o “meio termo” da vida é a proximidade com a morte é aquela pessoa que nasce com uma condição de saúde frágil, está em coma ou foi acometida por alguma situação durante a vida que a deixasse ali, no meio termo.

Há 10 anos, eu assisto essa condição na minha mãe. Uma mulher independente, a frente de seu tempo passou por uma série de questões de saúde, um câncer, um atropelamento e um AVC, que a deixou com sequelas e acamada.

Por vezes, achei que acontecia algo novo. Tinha certeza que ela morreria, mas felizmente ela não morreu e eu, todos os dias, sou confrontado com a morte. Como, por exemplo, quando ela está dormindo com a respiração bem leve, quase silenciosa, eu chego e coloco minha mão sobre sua têmpora pra medir e ter certeza de que ela ainda está ali.

Saber que a morte está ali já me deixou triste, desacreditado, depressivo e não me sinto menos humano ou menos capaz por ter saboreado o amargor desses sentimentos. Até porque, o clichê mais certo de todos é também o mais verdadeiro. Ela, a morte, é a nossa única certeza. No entanto, o que já foi um medo, hoje é um apoio.

Hoje vivemos o presente, não me lamento pelo o que aconteceu nem temo o que está por vir , não espero datas especiais. Eu as adianto, comemoro dia das mães fora de época, dia das mulheres e quando não tem data ou nada pra comemorar, eu invento. Foi assim e é assim que vi a beleza da vida e o “meio termo” dela pode ser cinza, entre o branco e o preto, mas pode também ser laranja, brilhante e radiante como o por do sol que separa o dia da noite.

Aprecie o pôr do sol.

 

     

Veja mais fotos em: matheus.allmeida

 

]]>
0
O luto como política de resiliência https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/27/o-luto-como-politica-de-resiliencia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/27/o-luto-como-politica-de-resiliencia/#respond Sun, 27 Dec 2020 13:00:43 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/cemiterio-vila-formosa-creditos-leubritto-agencia-mural.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2192 por Beatriz Prates e Julia Ferry*

O clássico da nouvelle vague francesa, “Hiroshima Meu Amor”, ressignificou através do olhar cinematográfico as noções de memória individual e coletiva. Com uma construção narrativa que transita entre o documentário e a ficção, o filme de Alain Resnais registra o movimento de uma câmera que percorre museus, fotografias e documentos que delatam a devastação da bomba atômica, acompanhada por um encontro entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês.

Em uma das cenas mais paradigmáticas do longa, os corpos dos amantes, entrelaçados na cama, aparecem envoltos por poeira nuclear. Os diálogos dos personagens são infalivelmente interpelados pela persistência da memória. Para ele, memórias da guerra e suas sequelas, para ela, a insistente recordação de tragédias pessoais. 

“Você não viu nada em Hiroshima” é o que diz o arquiteto à atriz, ao que ela lhe responde: “Eu vi tudo”. Ela descreve o que pôde ver nesses registros que ficaram, ao que ele reforça que ela não viu nada, pois não se tratava da verdade do vivido, mas de registros restantes do trauma. Esse jogo discursivo entre o ver e o não ver, o vivido e o imaginado, a memória e o esquecimento e a presença e a ausência, são confrontados e desmontados no diálogo entre os dois amantes.

Esse encontro entre anônimos, ambos marcados pelas suas perdas pessoais e históricas, alicerçado na memória coletiva dos acontecimentos de Hiroshima, realiza-se através da constatação da condição de vulnerabilidade que marca suas existências. 

Há presente, antes de uma hierarquização do sofrimento e da dor, uma partilha da perda, em que cada um tenta endereçar e dizer ao outro a sua experiência singular, atravessada pela catástrofe de dimensão política, que possibilita o encontro de alteridades.

O filme, nesse sentido, inventa uma linguagem para retratar a perda, um recurso que se faz urgente e pertinente para o contemporâneo, especialmente neste ano disruptivo decorrente da pandemia da Covid-19. A grave crise sanitária e econômica atual nos reposiciona irremediavelmente frente a desassossegos humanos fundamentais.

Luto como elaboração da perda

Como falar de uma perda? Como realizar o luto? Questões ontológicas que tocam não só a vida de cada uma das pessoas, mas se estendem como enigma, referência e preocupação da cultura, do social e do político. Afinal, a experiência da perda se faz presente na realidade de todo o planeta, em diferentes proporções e formas de afecção.

Muito se tem falado e escrito sobre o luto como um processo imprescindível e necessário na fratura do contemporâneo. Há a reivindicação e apelo para que possamos inventar, enquanto coletivo, formas sociais de elaboração e simbolização da perda, sejam das que nos tocam singular e intimamente, sejam as que envolvem aqueles que desconhecemos e nos são distantes.

A reivindicação do luto como um recurso político e universal, desmonta formas de organização das subjetividades e da vida coletiva estruturantes da política do cotidiano. Esta reivindicatória se estende em assumir os laços substancialmente relacionais que nos envolvem, em que somos todos condicionados e atravessados pela perda, tanto de si mesmo, como dos outros. O luto como bem comum e compartilhável assume uma valorização e consideração pelas mortes, ao mesmo tempo em que denuncia as desigualdades de enquadramentos que condicionam o conjunto das vidas.

A desumanização política de corpos

Como argumenta a filósofa contemporânea Judith Butler, as vidas que não são passíveis de serem enlutadas são consequentes das formas de violência que organizam as sociedades capitalistas neoliberais, em que segmentam os sujeitos entre corpos que pesam e corpos que importam.

A desumanização política de corpos e a obstaculização do luto, portanto, não têm início com a pandemia, sendo antes produtos da forma mercadoria que marca a sociabilidade capitalista. No Brasil, agravado pela condição de país periférico e dependente, essa constatação é amplamente verificável. Em 2019, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou indicadores sobre saúde no planeta e declarou que o país ostentava o maior número absoluto de assassinatos no mundo.

E segundo o último Atlas da Violência, que analisa dados divulgados pelo Departamento de Informática do SUS – DATASUS, uma das principais expressões das desigualdades raciais no Brasil é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra.

Enquanto jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento ao longo dos anos, entre brancos os índices de mortalidade são muito menores (e em muitos casos apresentam redução). Ainda de acordo com as informações do Atlas, em 2018, a cada duas horas uma mulher foi assassinada no Brasil, totalizando 4.519 vítimas, com preponderância de vítimas pretas ou pardas.

Parte significativa dessas mortes decorre da própria forma de organização do Estado. As desigualdades nos indicadores de acesso a serviços de saúde e assistência social são abissais e aprofundaram-se com a pandemia, abreviando de maneira perene inúmeras vidas. Além disso, a lógica de hipertrofia da punição e o encarceramento em massa são responsáveis pelas mortes diárias de incontáveis jovens periféricos e policiais. 

O penúltimo Anuário de Segurança Pública, divulgado em 2019, destaca que, naquele período, enquanto o número de assassinatos no Brasil caiu pela primeira vez em três anos, o número de pessoas mortas pela polícia bateu recorde, chegando a 6.220 casos, o que significa dizer que 1 em cada 10 mortes violentas no país foi causada por um policial. A título de comparação, a polícia dos Estados Unidos da América, que foi alvo de protestos recentes em cidades de todo o mundo dado o caráter letal e racializado que também marca sua atuação, matou 17 vezes menos do que a polícia brasileira em 2019.

Interpretar essa seletividade e a aparente contradição que reside no fato dessas mortes serem operadas pelo Estado (e se justificarem juridicamente) demanda uma compreensão a respeito de outra categoria, a assim denominada forma jurídica. 

Isso porque o direito é uma das formas engendradas pela sociedade capitalista para organizar e garantir a produção e reprodução da sua vida material em relações de produção (capital e trabalho). E dado que a propriedade escrava e o tráfico negreiro foram o eixo da economia que se montou no Brasil, a arquitetura de formação do nosso arcabouço jurídico relacionou-se diretamente com essa forma de organização do trabalho e suas nefastas consequências. 

Aliás, chama a atenção que no contexto de construção e legitimação do Estado-Nação, a codificação do poder punitivo estatal tenha sido priorizada, resultando na elaboração de um Código Criminal em 1830, antes mesmo do Código Comercial e da Lei de Terras.

Ou seja, o desenvolvimento desse instrumento foi indispensável para assegurar estabilidade interna e o controle da ordem pública, operando, até os dias atuais, como garantidor da distribuição desigual (e, repise-se, legal) da riqueza e da execução de negócios e relações contratuais.

É preciso insistir no luto

Por isso, a construção de uma política baseada no luto como recurso primordial da vida social precisa partir também de uma constatação a respeito das limitações do direito e dos operadores jurídicos. Nesse sentido, pertinente questionar e problematizar a crença de que as medidas institucionais e jurídicas existentes são capazes de antecipar e resolver na totalidade a garantia da vida e a reparação pela perda.

Em novembro desse ano, pouco após o dia dos finados, esse país que mata cidadãs e cidadãos em proporções maiores que as de países em guerra impôs seu destino trágico às histórias de João Alberto, Emily e Rebecca. Três vidas e trajetórias diferentes, violentamente entrelaçadas pelos crimes de raça e classe que as acometeram. 

João Alberto foi assassinado pelos seguranças da rede de supermercados francesa Carrefour, e Emily e Rebecca vitimadas pelo estado enquanto brincavam na porta de casa no Rio de Janeiro. Nesse ano em que o cotidiano teve sua programação interrompida pela pandemia, o genocídio da população negra segue aflitivamente desestruturando vidas no Brasil.

Escrever e contar sobre essas mortes é, de algum modo, assumir como verdade o fracasso em dizê-las. Isso porque diante do absurdo, do traumático e do inconsolável, a linguagem sempre fracassa.

Como lidar com essas perdas sem evocar uma enunciação melodramática, condenatória ou meramente denuncista? Como tornar a dor, a história e a emoção, como apontou Didi-Huberman, nossos bens comuns? Como contaremos coletivamente essas histórias, essas vidas, essas mortes?

Como mostra a própria Psicanálise, o luto, muito ao contrário de um processo natural e inevitável que sucederia uma perda, mais envolve um movimento de simbolização complexo que implica o sujeito e o coletivo em uma invenção e reinvenção da linguagem.

É uma necessidade e urgência do presente insistirmos em contar sobre essas vidas, na insistência de que o afeto aflitivo e inconsolável que suas mortes evocam mobilizem as subjetividades, a política e a realidade.

Torna-se urgente transformar o luto em recurso político, como colocou Judith Butler, pois isto implicaria em criarmos laços sociais a partir do senso da perda, transformando as relações de alteridade e nossas sensibilidades. Pois, ainda com Butler, se há uma verdade sobre o luto, é que jamais sairemos os mesmos neste processo inevitavelmente transformador. Como demonstrou Freud, o luto, ao contrário da paralisia melancólica, exige um movimento, uma atividade dos sujeitos, uma aposta na linguagem, embora sempre precária, mas resiliente.

Se o historiador Didi-Huberman expressou que diante do inimaginável, imaginar é um compromisso ético e político, fica como desafio e necessidade, diante destas perdas, nos implicarmos coletivamente com suas memórias, reivindicar justiça, dizer sobre o indizível, insistir no luto, apesar de tudo.

 

*Beatriz de Santana Prates – Graduada em Direito, especialista em Criminologia e Direito Penal pelo ICPC e mestranda no Programa de Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Julia Ferry – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP.

]]>
0
Depoimentos: luto no Natal https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/25/depoimentos-luto-no-natal/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/25/depoimentos-luto-no-natal/#respond Fri, 25 Dec 2020 13:22:43 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/mail-320x213.jpeg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2206 Recebemos alguns depoimentos sobre luto no Natal. Nesse dia em que as famílias se reunem, é importante lembrar quem já se foi e poder falar sobre sentimentos delicados e doloridos. São todos bem-vindos. Acolhemos as saudades com gratidão. Feliz Natal a todos.

Título: “Dezembro passa, o Natal passa, o ano vira. Permito-me sentir o que quiser nessa época”

Giovanna Paula Cavagnoli

Qual criança ou adolescente, ou um adulto feliz com sua família completa não gosta do mês de dezembro? Eu adorava. O ano de 2003 mudou esse sentimento completamente. Era 20 de dezembro, 10h20 da manhã de um sábado ensolarado, praia cheia e gente pra todo lado.

Enquanto eu assistia um filme na TV ouvi um estouro absurdo. Eu já sabia. Andei em direção ao quarto onde minha mãe estava hospedada, abri a porta e vi a cama vazia, as persianas tortas balançando. Consegui gritar para meu marido: minha mãe!

Ele desceu os oito andares do prédio onde morávamos correndo, só lembro de mim entrando no elevador de camisola. Depois minha memória apaga e só consigo lembrar dela em meus braços dando os últimos suspiros.

Não preciso relatar o depois. Ambulância, gritos, gente desesperada me falando coisas, avisar meu irmão, meus avós que moravam longe. O impacto do suicídio em uma família é devastador. O impacto do suicídio de uma mãe cheia de vida aos 48 anos é avassalador. Pior ainda quando as últimas palavras que você disse à ela foram “ou desiste ou vem comigo porque eu estou exausta.”

Ela desistiu 12 horas depois. Trabalhei muito esse último momento com ela ao longo desses 17 anos. Mas eu realmente estava exausta. Foram três tentativas dela de suicídio em pouco mais de um ano, o casamento de meus pais acabando de uma forma cruel e triste após 32 anos, a descoberta assustadora que meu pai não era só um homem fraco, era alguém completamente tóxico e desleal.

Enfim, era 20 de dezembro e faltavam cinco dias para o Natal. Meus avós vieram a Santa Catarina, enterramos minha mãe, e dois dias depois me convidaram para retornar com eles à Campo Grande (MS) , onde moravam. Não fui. Eu não conseguia nem decidir tomar banho ou não, o que comer, fechar os olhos ou não, quanto mais encarar uma viagem longa e um Natal.

No dia 24 de dezembro acordei com um aperto no coração e queria minha família. Meu irmão mais novo também devastado pela dor, meu pai que sempre havia sido presente em nossa vida, resolveu abandonar os filhos de vez. Pedi a meu marido para irmos a Campo Grande e encarar as 12 horas de viagem, pois vôo não havia mais.

Cheguei no início da noite do dia 24, sentamos à mesa eu, meu marido, meus avós maternos, minha tia, minha prima ainda criança e seu pai. Comemos, brindamos, rimos e choramos. Apesar do meu irmão não estar ali naquele momento, eu estava em família. Não havia dado tempo de sentir falta da minha mãe, era recente e eu estava anestesiada.

Dezessete anos se passaram, estou bem, faço tratamento constante, terapia, meditação, cuido da minha espiritualidade. Tudo ajuda. Mas fezembro ainda é difícil. Fico mais agitada, durmo mal, sinto mais dores físicas.

Me reconheço e me preparo como dá. Ontem fez 17 anos que minha mãe morreu, amanhã faz 1 ano que minha avó materna nos deixou. Ela era tudo pra mim e também partiu há três dias do Natal. Passei a odiar dezembro! Mas passa. Dezembro passa, o Natal passa, o ano vira. Permito-me sentir o que quiser nessa época.

Há anos que prefiro ficar sozinha, quieta. Há anos que reuno a família, faço ceia, brindo, me divirto. Para quem tem perdas tão difíceis na vida, o dia a dia é uma batalha constante. Mas a luta vale a pena porque a vida vale a pena.

Título: “Na esperança de que no ano que vem toda  minha família esteja completa no Natal, ficarei em casa”

Yasmin Cassetari

Pois bem. Este ano decidi ficar.Ficar em casa. Em outra cidade. Longe de todas as pessoas que me viram crescer e me ajudaram nesse processo. Vou ficar longe delas para, quem sabe, ano que vem, poder novamente vê-las.

Mas sabe, não é nada fácil. Tenho uma vó, bem vó, aquela vózinha que pergunta: cadê fulana? Esqueceu de mim? Espero que alguém lá responda que NÃO.

– Não vó. Fulana não veio por estar pensando no amor que sente pela senhora. E de quanto ela quer te ver no ano que vem.

E do fundo do meu coração, eu espero que ela, no auge dos seus 94 anos, entenda que amar, sentir saudades e ficar em casa faz parte de um mesmo grande abraço que nós deveríamos estar pensando em dar. Em um período como este.

Saudades… Das pessoas… Dos abraços…

Das risadas e choros de saudade daquelas pessoas que já não estão aqui. Saudades.

E na esperança de que no ano que vem toda a minha família esteja completa no Natal, ficarei em casa. Entoando canções natalinas que me lembram dessa época tão querida e saudosa.

Fiquemos bem. Até ano que vem… Oxalá…

…..

Título: Vigésimo primeiro Natal sem ela.

De: Patricia Gaaldi

Pra ser sincera acho que ela foi cedo demais.

Eu tinha 16 anos e meu irmão 13. Minha avó fez o possível para suprir sua ausência. Foi nossa mãe de forma brilhante.

Mas ela sempre fez falta. Mãe é mãe né ? Mães não deveriam morrer. Nunca.

Hoje tenho minha família, 3 filhos maravilhosos mas essas datas não perdoam. Elas perdem o brilho.

Eram sempre reuniões simples, no apartamento da minha avó, mas reuniões lotadas de amor. Lotadas de carinho. E esse carinho que falta nada repõe.

Hoje eu dou muito amor. Encho os 3 de amor. Faço cafuné. Mas sinto falta do cafuné dela. Dela aqui me aconselhando. Me ouvido. Só ela saberia me entender. Olhar nos meus olhos e entender.

A falta é gigantesca. Doi. Procuro não pensar.

Queria demais só 1 dia ela aqui comigo. Me abraçando e protegendo.

Aprendi demais com ela, a principal lição foi como amar, como amar sem limites e se doar.

Mas ela faz falta.

Todos os dias. Todos os segundos.

Mas a vida segue. Com um buraco no peito e um brilho que não volta mais.

Mãe não deveria morrer nunca.

Um lindo ano a voce e sua família.

Patricia Galdi

 

]]>
0
Depoimento: Quando a mãe das minhas filhas morreu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/19/depoimento-quando-a-mae-das-minhas-filhas-morreu/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/19/depoimento-quando-a-mae-das-minhas-filhas-morreu/#respond Thu, 19 Nov 2020 14:40:50 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/tania-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2167 Acolhemos com carinho e admiração o relato do servidor público Marcos Mendonça. Há um ano, sua esposa morreu. Nessas linhas, ele reflete sobre seu processo de luto ao lidar essa ausência e com os questionamentos das suas filhas pequenas.  Um abraço apertado à família e a todos que se identificarem com essas palavras.

RELATO DE UM LUTO COM CRIANÇAS

Por Marcos Mendonça

Olha só… acordei de madrugada com vontade de falar. Vou falar. 05 de outubro. Um ano sem Tania. Quando recebi a notícia da morte dela, vesti uma armadura. No ato, senti minha respiração mudar, minha postura se endireitou, minha mente ficou mais lúcida e minhas certezas mais claras… Milhares de coisas a fazer, o luto e a tristeza estavam ali, mas teriam que entrar na fila. Fato: minhas filhas cresceriam sem mãe. Mas Tania ainda estava comigo. Após 14 anos de convivência, eu sabia o que ela faria, como pensava, os valores que ela defendia. Tinha sido um discípulo atento e entusiasmado de sua visão de mundo, embora atrapalhado.

Uma amiga me aconselhou a não contar nada para as meninas. Agradeci o conselho educadamente. Eu estava só, e as pessoas não sabem lidar com a morte. Tentando achar meu jeito, eu pensava em Tania. Ela sabia o que fazer, eu sigo o mapa trajado com minhas vestes metálicas, interrompi a brincadeira das minhas crianças, que estavam numa festa, mas já sabiam dos riscos que a mãe corria.

Contei a verdade, deixei elas escolherem onde dormir, quiseram ir pra casa de Silvana, amiga da Tania, mais família que alguns familiares. Foi fácil. Silvana mora na quebrada, mas a gente também. Não era longe. Deixei elas decidirem se queriam ir ao velório. Sim, quiseram. De novo, tudo diferente. No velório, uma prima viúva, mãe solo, depois de problemas com a filha, foi aconselhada por um psicólogo: “-Você não pode poupar da vida ou mimá-las. Ninguém vai aliviar nada”. Conselho anotado.

Velório. Discurso. Lágrimas.  Em casa, Letícia avisou que já tinham explicado pra ela que ela era a mulher da casa. As pessoas atrapalham. Dei risada e disse “Não. Só se for de brincadeira, você é criança, e vai continuar sendo” (um pouco menos, é verdade). Segunda-feira, silêncio absurdo na casa. Tania era muito cheia de vida, muito feliz. Primeira vez que viveria uma vida nova que eu não escolhi. Viúvos têm que cuidar de burocracias, eu tinha que cuidar dos vivos. As crianças já estavam testando os combinados da casa desde a primeira hora; são rápidas, preciso ficar atento, os combinados são os mesmos, mesma comida, mesmos horários. Rotinas dão estabilidade pras crianças. O mundo despencou, mas eu poderia (deveria?) escolher alguns pedaços pra segurar. Tania cuidava dos vivos: tinha 2 filhas, 5 cachorros, 20 passarinhos (maior parte resgatados de maus cuidadores), um jardim enorme, um pomar, um orquidário, uma lista enorme de pacientes (a avisar que tinham perdido a terapeuta)…

Eu não tinha mais controle de nada. Nunca tive, mas podia contar uma história – estabelecer uma narrativa. Era um porquê e eu comecei assim: “-Filhas, a vida as vezes é muito dura: alguns não tem pai, outros não tem mãe, alguns não tem saúde, ou casa, ou comida ou emprego. Vocês, a partir de hoje, não tem mãe. A vida segue e é muito boa, tem muita coisa pra ser vivida, muitos passeios bons, muitos amigos, muita comida boa e muita coisa pra aprender. Então, vamos seguir em frente e viver, está bem?”

Na terapia, uma advertência de ouro: emocionalmente, você nunca vai substituir a mãe delas. Você só pode ser o pai. Duro, triste, mas libertador também – eu só posso fazer a minha parte. Eu já era muito, aprendendo que não podia ser tudo pra elas. Não preciso lutar pra tampar um buraco que nunca vai se fechar, preciso me concentrar nas coisas que posso fazer, no que está ao meu alcance.

Os primeiros quinze dias foram terríveis – o planeta Terra não para de girar pra você ter uma folguinha. A Leticia, dias antes, estava com dor de cabeça e precisava ir ao médico, um dos cachorros adoeceu, a escola não acolheu as crianças de forma adequada no começo (tive que conversar, tentaram esconder das outras crianças, geraram problemas), Leticia e Lorena tiveram pequenos acidentes e machucaram o rosto, ganharam pequenas cicatrizes para marcar a nova vida, um amigo especial da sala da Lo começou a bater nela (mais uma reunião), uma pequena crise alérgica delas me deixou surtado (protocolos de remédios faziam parte  carga mental da mãe). Eu não dormia direito, qualquer barulho da casa me acordava. Era o soldado-armado-pai-e-mãe defendendo a prole dia e noite. A terapeuta da Tania se aproximou via zap nos primeiros dias também e, com cuidado, foi me ensinando a me abrir para a ajuda de outras pessoas. Éramos uma dupla autossuficiente, e não existia mais dupla. Tive que aprender a pedir e aceitar ajuda das pessoas. Ninguém podia atravessar aquele deserto no meu lugar, mas eu podia aceitar um copo de água e uma sombra de vez em quando.

As crianças queriam saber se a mudança de escola programada ia continuar valendo. “-Perdemos a nossa mãe, vamos perder nossos amigos também?”. Sabem jogar pesado já. Sempre fui um pai presente: home office, fraldas, banhos, reuniões escolares, pediatras, dentistas e P.S., levar e buscar na escola, passear (muitas vezes apenas eu e as meninas). Mas tinha um espaço da delicadeza, do diálogo e do afeto que eu não ocupava adequadamente. Era da Tania! Numa intuição ou palpite, fui atrás e comecei a estudar escuta compassiva, disciplina positiva, comunicação não violenta…  E olha só – lembrei  que a Tania não era apenas um ser iluminado e generoso, ela era também uma técnica, pedagoga, psicóloga e professora de educação infantil experiente, comprometida  e esclarecida. Muito do que ela fazia com as meninas tinha fundamentos teóricos sólidos.

Leticia tinha 9 anos,  está com 10. É muito nerdizinha. Coisa de primogênita também. Então, tentou entender as coisas de forma racional, quis discutir tudo em termos de justiça. Não dá! Também perguntou sobre religiões e disse que as respostas das religiões são ruins e não explicam nada, não fazem sentido. Palavras dela. Sempre teve alma de cientista. Acho que faz parte dela, apenas dei espaço para ela elaborar da melhor forma. Sempre que desenha a mãe, a faz como um anjo no céu ligada a gente por corações. Certa vez me perguntou se estava errado ter ganhos com a morte da mãe (carinho das pessoas, ir a lugares que a mãe não gostava de ir, ficar até mais tarde em lugares que a mãe já teria estragado a brincadeira…). Disse que, com uma perda tão grande, um ganho aqui e outro lá, não muda nada, pra ela aproveitar sem culpa.

Desenvolvi uma estratégia: na frente delas, sou  forte e firme, quase 90% do tempo; no discurso, sempre digo a verdade: que sinto falta da mãe delas, que sofro e até mesmo choro. Não são elas que tem que me carregar. Podem falar o que quiser, porque estamos abertos ao diálogo. Sempre falo que eu aguento o tranco. Não quero que se inibam pra me proteger.

Meu maior medo era não dar conta ou que eu faltasse. Pai e mãe solos sabem que nem paz pra morrer se tem.

Era o medo delas também! Me perguntaram se eu morresse, se elas iriam para um abrigo. Peguei papel e caneta e fiz uma lista enorme com todos os amados: todos os familiares e amigos que poderiam cuidar delas se eu faltasse e o coração delas sossegou. Garanti que para um abrigo não iriam.

O vínculo entre Lorena e Tania era mais forte do que comigo. Então com 07 anos, falava menos, elaborava menos, mas quando falava, era muito visceral.

“- Pai, quando a mãe vai voltar? Eu só estou calma porque acho que ela vai voltar”. Respondi que a mãe não ia voltar mais, mas se isto a acalmasse, que ela poderia continuar achando isto.

“- Pai, eu preciso saber: você me ama mesmo? ”

Passou um mês perguntando uma vez por semana: “-Pai, eu nunca mais vou ver minha mãe? ”

Uma vez perguntou no restaurante: “- Pai, vou naquele jardim brincar. Você me chama na hora de ir embora, não se esqueça de mim!

“- Pai, eu não sei o que está acontecendo! Eu estou confundindo você com minha mãe!

“- Pai, eu quero saber porque minha mãe morreu? “ Tentei responder algo e ela me interrompeu: “- Eu só quero saber por quê? Por quê?” Calei me.

Uma vez a Letícia viu o desespero da irmã e falou pra ela conversar com papai do céu, porque  se ele existe vai te ajudar e, se não existe, não vai te fazer mal. Você já tem mania de falar sozinha mesmo!

Hoje está mais calmo. Elas ainda se queixam da falta da mãe, tem saudades, etc. Eu só acolho e pronto. Aprendi que elas vão revisitar e ressignificar a perda da mãe várias vezes na vida. Faz parte. Não tem jeito. Esta falta faz e fará parte da vida delas.

Por fim, o melhor conselho que me deram foi pra eu me cuidar. Concordei, acatei e foi (tem sido) muito bom. Ter uma vida além da paternidade me tornou um pai mais flexível, mais leve e mais disponível para o amor e para o afeto, mais tranquilo frente às minhas imperfeições, mais afeito e disposto a abraçar e beijar minhas filhas e declarar diariamente meu amor por elas. Não sou mãe, mas sou um pai melhor. Apesar da perda, a vida continua sendo muito boa. E segue!

Texto revisado por Danilo P. Pinseta

Contato do autor: marcosrrmendonca@gmail.com

]]>
0
‘Num largo quintal de memórias, ressignifico o luto em meio à pandemia’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/18/num-largo-quintal-de-memorias-ressignifico-o-luto-em-meio-a-pandemia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/18/num-largo-quintal-de-memorias-ressignifico-o-luto-em-meio-a-pandemia/#respond Wed, 18 Nov 2020 16:48:12 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/volaurentina-creditos-barbara-almeida-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2156 A ‘ficha’, como dizem, caiu mais latente no meio da pandemia, já que a gente não pode arredar pé, fugir de casa, respirar outra coisa que não seja a lembrança. A pandemia comprimiu tudo, inclusive as dores.

 

Quando eu nasci, vó Laurentina tinha 67 anos. Fui a penúltima neta de uma família de 16. Moramos juntas desde que cheguei ao mundo, sobrando pra mim os mimos, as broncas e ‘ó lá a louça, Jércinha’. Nosso quintal sempre foi cheio. Cadeado aberto a quem quisesse chegar. A casa abastecia os vizinhos quando faltava água na vila e, mesmo pequena, acolhia toda a família no almoço de domingo.

Ali, paravam também a mulher do bairro Gato Preto –que eu nunca soube o nome– pra quem a vó reservava mensalmente uma cesta de mantimentos, e o Divino Espírito Santo, uma pomba branca num manto vermelho carregada por um homem que recebia moedas.

Eu cresci assim, vendo a bondade da vó  quarar a roupa debaixo do rancho. Ouvindo Eli Correia, enquanto cuidava da gente ou da criação – como bem chamava os animais da casa. Em agosto de 2020, o Bidu, nosso derradeiro cachorro, partiu, aos quase 12 anos. E, de repente, me dei conta que ele foi a última ‘criação’ que conheceu a vó Laurentina. Contei muito dela já no Nós, mulheres da periferia.

vó
Vó Laurentina no processo de produção de farinha de rosca/Jéssica Moreira

Era 18 de novembro de 2019. Eu estava voltando de uma viagem ao Chile. O avião saía às 15h. Aqui em Perus, no mesmo horário, a vó sofria o primeiro desmaio. Ambulância. Correria. Eu no avião, sem nem imaginar. São Paulo, Aeroporto de Guarulhos. Às 19h, botei os pés em solo paulista, a vó em algum outro solo que não esse, que não mais entre a gente. Ia embora minha passarinha.

Desde aquele dia, os santos da vó me miram sem parar, me acompanhando com os olhos, mesmo grudados na parede. O chão de cera esfola os pés em falta e as baratas, até as baratas, devem olhar profundo para os meus medos caducos.

Eu acho que até as vigas da casa tombam tristeza, rachadas de todas as chuvas protegidas por santa Bárbara. As fotos pretas, brancas, plantadas, todas, no fundo da lata de leite em pó de 1997, estão todas tristes. O rádio ainda deve gritar, silenciosamente: rezas, padre nosso, ave maria, crendospai. mas agora sem ela pra ouvir. Todos, tudo, num luto tão profundo, tão doído, que seria injusto dizer que o luto afeta só a mim. Ele está em tudo.

Vó Laurentina costurando/Jéssica Moreira

Algumas horas antes de partir, o cachorro Bidu entrou em casa, foi até o quarto da vó, cheirou o chinelo que ela usava, e que ainda fica debaixo do guarda-roupa. No outro dia, ele também já não estava aqui. Quintal esvaziado outra vez, despertando os outros lutos. Mais antigos ou mais recentes? Tanto faz, o tempo do luto não é cronológico, não tem linearidade.

Faz 1 ano hoje da passagem da vó, mas essa é a primeira vez que eu falo sobre ela no pretérito. Até aqui, era como se eu ainda devesse chegar na ponta dos pés em casa pra não acordá-la no quarto do lado.

A ‘ficha’, como dizem, caiu mais latente no meio da pandemia, já que a gente não pode arredar pé, fugir de casa, respirar outra coisa que não seja a lembrança. Eu realmente achava que, depois da partida dela, eu e meus primos, tios e tias iríamos ficar mais perto, até mesmo para conseguir aquecer um ao outro e cuidar da perda de nossa matriarca juntos.

Vó Laurentina morreu aos 96 anos, em 18 de novembro de 2019

Mas a pandemia comprimiu tudo, inclusive as dores. Agora, sou eu aqui, minha mãe e prima, num largo quintal de memórias, tendo que se reinventar sem a vó, dia após dia. Fazia só quatro meses da ausência dela, quando a pandemia se alastrou. Não deu tempo de mudar a casa, pintar a fachada ou trocar o móvel de lugar.

O que fizemos foi ressignificar. No canto da cama, colocamos o meu computador. Aqui, leio, faço poesia e escrevo pra vocês. Olho a janela, a mesma que ela mirava céu todo dia, e tento impregnar de vó Laurentina o meu olhar sobre as telhas do vizinho, o pipa enroscado na janela em dias claros ou de chuva forte.

Você também pode ter o seu relato sobre o processo de luto publicado aqui no Blog Morte Sem Tabu. Basta enviar o seu relato para o e-mail mortesemtabu@gmail.com com nome e sugestão de foto. 

]]>
0
Sobre matar, comer e morrer https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/09/19/sobre-matar-comer-e-morrer/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/09/19/sobre-matar-comer-e-morrer/#respond Thu, 19 Sep 2019 12:06:24 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/451b9a9a-6f0f-4b6b-bc6b-131e3866410e-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1797 O professor do Instituto de Matemática da USP Salvador Zanata me enviou um relato instigante sobre matar, comer e morrer.

Após a morte do pai, ele passou a reparar nos detalhes do dia a dia que antes não chamavam atenção. Chega a dizer que começou a viver só depois desse momento, de tão desapercebida que a vida corria na sua frente.

“Eu comecei a  ver a beleza do mundo, detalhes que passavam batido… Íamos juntos para a musculação e meu pai dizia: olha que grama verdinha, que lua bonita… Eu ouvia o que ele dizia, mas nao entendia de verdade. Depois, de repente, passei a ver tambem. Quanta gratidao senti.”.

A consciência da finitude o trouxe ao presente, como um choque de realidade, que Salvador chama de detalhes da vida cotidiana.

Um desses detalhes fisgou sua atenção logo em seguida.

Ao fazer compras no mercado, começou a refletir em cima de uma imagem: a da carne ensacada. Aquele pedaço de animal instigou uma reflexão muito interessante.

Salvador nunca divulgou esse texto. Até hoje.

 

Sobre matar, comer e morrer

Por Salvador Zanata

Nos últimos 30-40 anos, muito tem se discutido sobre alimentação e dietas. O que é saudável, o que não é, o que prolonga a vida, o que a encurta.

Eu queria falar de um outro ponto de vista, da relação entre o ato de se alimentar e a nossa alma. É fato que no mundo existem pessoas que não comem animais, mesmo aqueles que não comem nenhum produto de origem animal, nem mel, nem ovos, leite, etc… Mais pra frente comento alguma coisa sobre eles. Por hora, gostaria de falar sobre o ato de comer animais mortos. Essa é uma prática muito antiga, provavelmente anterior à origem do nosso

primeiro antepassado separado dos demais grandes primatas. Apesar dos nossos parentes mais próximos, bonobos e chimpanzés, comerem menos carne que a média dos humanos, eles a adoram, a partilha de pedaços de presas entre eles é coisa muito séria, quase sagrada. E não poderia, ao menos, não deveria ser de outra forma. Matar um animal, privá-lo de sua existência em nome de se alimentar deveria ser um ato sagrado.

Fico pensando no que é olhar um cabrito, galinha ou porco nos olhos antes de matá-lo. Saber que a vida dele será tirada em nome da nossa sobrevivência. Ou do nosso prazer. Quanta dor por ele! Quanto respeito por aquela carne e quanta responsabilidade. O peso de honrar aquela morte, viver sabendo que a nossa sobrevivência dependeu da morte de outro.

Lamentavelmente, ao menos para quem vive em cidades grandes, acho que esse é um pensamento pouco frequente. Compramos carne já embalada, cortada, sem gordura, penas, couro, escamas, miúdos, descaracterizada do animal ao qual pertenceu, em nome de facilidade no preparo, da limpeza. Mas acho que o motivo real não é esse. Ninguém quer se haver com o animal que está comendo. Pensar o quanto o seu prazer à mesa foi obtido as custas da morte de outro e o que é talvez ainda pior: De uma vida horrível levada pelo bicho. Todos sabem o quanto é desgraçada a vida de frangos, porcos e mesmo bois criados para o abate. Infelizmente, com a população do mundo tão numerosa, talvez não haja outra forma de produzir alimento para tanta gente. Apesar de muito triste, não é sobre a vida desses bichos que eu gostaria de falar. Nem sobre a covardia do homem em olhar para isso, sofrer com isso, e mesmo assim continuar a criá-los da mesma forma e a se alimentar deles. Como já disse, talvez não seja possível mudar, ao menos de maneira profunda, esse sistema de criação. O que pode ser mudado é a atitude perante quem morre, contra sua vontade, para servir de alimento.

Pelos menos os animais não precisam sentir-se discriminados. Agimos de maneira semelhante no que se refere a nós mesmos. Ao menos na era moderna, morrer deve ser bem difícil. Todo mundo foge de quem está no fim, médicos, enfermeiros e auxiliares seguem protocolos, a família faz visitas rápidas, mal aguenta olhar para aquele ente querido que está terminando. Obviamente que não é fácil, mas quando a vida traz essas situações, elas deveriam ser vividas plenamente, sob pena de caso contrário, nos desumanizarmos.

Duvido alguém tomar um remédio amargo e sair feliz, saltitando. Mas se preciso for, tomamos e forçamos nossos filhos a tomarem também. O contato com a morte de alguém querido é provavelmente o mais amargo dos remédios, mas o efeito que ele tem na gente, talvez seja o mais potencialmente belo dentre as experiências da vida. Se o seu pai, irmã, companheiro de uma vida está perto do fim, você vai ficar pouco com ele em nome do quanto é difícil, de quanta dor isso te trás, da revolta? É claro que é muito duro. O que não se costuma enfatizar, é que vivenciando essas perdas de maneira profunda, existe uma grande possibilidade de você sair disso uma pessoa muito mais humilde, conectada com os ciclos do mundo, com mais consciência do que realmente importa. Enfim, querendo honrar aquela pessoa que se foi e vendo a morte como uma parte da vida, ainda que seja o ponto final. Se despedir de alguém diminui muito o medo da Velha da Foice… Não custa lembrar dos versos de “Luar do Sertão”

 

“Ah, quem me dera

Que eu morresse lá na serra

Abraçado à minha terra

E dormindo de uma vez

 

Ser enterrado

Numa grota pequenina

Onde à tarde a sururina

Chora a sua viuvez”

 

 

Nesse ponto, queria tentar formular de maneira um pouco mais clara,  a conexão que vejo entre essas duas situações, o comer e o morrer. Nos dois casos, fingimos que não é com a gente. Nem pensamos na carne como parte de finados animais, nem olhamos com o coração para quem esta morrendo. “Ahh, foi melhor assim.”   “Foi bom, que ele nem sofreu.”   “Esses animais são ração.”  E por aí vai, qualquer coisa em nome de não encarar a realidade. Inclusive religiões pregam que não se pode sofrer por entes queridos, que isso os prejudica, etc… Quase uma mutilação em quem ficou!

Volto aos vegetarianos. Eu sempre tive um pé atrás com eles. Não participando da carnificina, perdem a chance também de ver o mal em si. Como não comem, não se sentem responsáveis. Ocorre que comer um bicho, direta ou indiretamente ter causado a sua morte, nos obriga a lidar com um pedaço de nosso lado negro. Nos coloca frente a frente com ele. Imagine, toda vez que colocássemos um pedaço de carne na boca, pensar: Puxa, eu poderia ter passado sem isso, mas não quis. Quanta humildade isso traria! Quanto contribuiria para que parássemos de ver o mal só nos outros! A total consciência de que fizemos uma escolha que custou uma vida e que faremos isso muitas vezes ainda. E em muitas dessas vezes, por puro prazer! A meu ver, é esse tipo de atitude, a de nos preocuparmos com a “trave nos nossos olhos” e por consequência, não ficarmos apontando o “cisco nos olhos do nosso próximo”, que pode mudar o mundo.

Concluindo, encarar a morte, seja de humanos queridos ou de animais que nos servirão de alimento, com certeza nos torna mais humanos, humildes e conscientes. O sofrimento associado a isso é sagrado. Sem ele, o que seriamos?

Não conseguiria terminar, sem citar um trecho de um grande livro:

 

“Quando matardes um animal,

dizei-lhe no vosso coração:

Pelo mesmo poder que te imolo,

eu também serei imolado, e

eu também servirei de alimento para os outros;

Pois a lei que te entregou às minhas mãos,

me entregará à mãos mais poderosas.

Teu sangue e meu sangue nada são,

senão a seiva que nutre a árvore do céu.”

 

O Profeta, Gibran Khalil Gibran

Contato: sazanata@yahoo.com

]]>
0
A minha novela não é a das 19h https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/09/01/a-minha-novela-nao-e-a-das-19h/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/09/01/a-minha-novela-nao-e-a-das-19h/#respond Mon, 02 Sep 2019 01:24:16 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/3e182b75-509f-427c-a958-d91a14fa0cb9-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1776 Cynthia Araújo é pesquisadora em filosofia do direito e advogada da União. Ela tem uma tese de doutorado incrível sobre “O Direito à Esperança” – em que conversou com mais de 40 pacientes com cancer avançado no Brasil e na Alemanha. Não vou detalhar porque quero escrever em breve sobre ela. Cynthia sempre me encaminha artigos e notícias relacionadas à morte. Acabamos criando uma troca muito rica. Hoje, ela escreveu um depoimento particular inspirada na novela das 19h da TV Globo, “Bom Sucesso”, que aborda de forma direta e delicada a finitude. Segue seu texto.

A Minha Novela Não é a das 19h

Por Cynthia Araújo

Eu sempre pensei muito na morte. Mas numa morte depois de muita vida, sem doença, sem dor.
Lembro de, ainda criança, idealizar a partida do meu núcleo familiar: eu, meus pais e minha irmã. Estaríamos em um helicóptero que subitamente cairia, mas sem qualquer desespero. Eu já teria noventa anos – o que significa que meu pai teria cento e vinte, mas nunca me ocorreu que isso seria um problema. Também nunca pensei no destino do piloto.

Com o tempo, esqueci a morte aérea, mas continuei pensando no fim. Algo me dizia que, desde que eu tivesse o assunto em mente, ele não me pegaria de surpresa. Mas pegou.

No dia 22 de março de 2012, meu pai e eu estávamos chegando em Petrópolis, onde nasci e onde mora a maior parte da minha família, para encontrar a minha mãe. Paramos para almoçar já na entrada da cidade e eu não vi chegar uma mensagem dela. Sete minutos depois, o meu telefone tocou insistentemente, para avisar que minha mãe estava sendo levada de ambulância para um hospital. “Ela está consciente?”, foi o que consegui perguntar. “Não sei”.

Sete minutos. No caminho para o hospital, comecei a oferecer tudo que podia a Deus. “Deus, sei que não temos conversado muito, mas é caso de vida ou morte – literalmente. Eu sei que você leva pessoas o tempo todo. Mas, veja só, minha mãe não é como nós, resto do mundo. Ela é melhor. Você não pode privar o mundo da presença dela tão cedo”.

Foram dois AVCs hemorrágicos – algo que a ciência não conseguiu explicar. As causas suspeitas eram todas terríveis, o possível prognóstico pior ainda. No dia seguinte, a irmã da minha mãe já dizia “mas quem sabe não acontece um milagre e não descobrem nada na cabeça da sua mãe”. Eu já estudava assuntos de saúde o suficiente naquela época, para saber que, bem, milagres são o que são: milagres – e eu não iria contar com um.

Li no Notícias da TV que a nova novela da Globo, “Bom sucesso”, teve o melhor início no Ibope para o horário das 19h em doze anos. É impressionante, porque, afinal, a obra aborda o grande tabu da vida moderna. Para Vinícius Andrade, “apesar do mote inicial ser um tema espinhoso, a morte é retratada com leveza pela dupla de novelistas”. Não sei se é possível falar em leveza diante da informação tão objetiva de um prognóstico sombrio – alguns meses de vida –, como foi a opção da novela. Longe de mim saber como uma obra de ficção deve ou não abordar seus temas, mas a morte, especialmente aquela que decorre da doença grave, é algo pesado, sempre é.

Um assunto sério sobre o qual especialmente nós, brasileiros, evitamos falar, ainda mais se vier conjugado com a palavra câncer. Isso inclui os próprios médicos. Gawande, em um livro que todo humano deveria ler, traduzido para o português como “Mortais”, registra que os médicos superestimam em muito o prognóstico de seus pacientes. Outros estudos demonstram que, mesmo quando isso não acontece, a comunicação do médico é falha e, na maioria das vezes, o paciente não entende que sua vida está chegando ao fim.

“Bom sucesso”, no entanto, novela que é, foi pelo caminho improvável. A clareza com que se informa – duas vezes – a iminente morte dos protagonistas (primeiro Paloma, por equívoco, depois Alberto) é, talvez, o aspecto mais ficcional da obra. Digo isso com tristeza e preocupação, mas se trata de um inegável drama da vida moderna, que não é privilégio do Brasil. Não conseguimos deixar claro para os nossos pacientes que sua doença, independentemente do último tratamento da moda disponível, vai mata-los. E, ao assim fazer, impedimos que vivam o restante de suas vidas como viveriam se compreendessem o pouco tempo que lhes resta.

Mas o que então justifica a audiência da obra? O alívio da personagem, mais jovem, que descobre que não vai mais morrer? A transferência do azar (?) para alguém mais velho, mais preparado para esse destino?

Numa possível referência a Ivan Ilitch de Tolstói, Alberto, personagem de Antônio Fagundes, disse, em uma cena do dia 3 de agosto, que sentia estar morrendo e não aguentava mais o falso otimismo ao redor dele. Alguns dias depois, ele entendeu que “a morte lança um novo olhar sobre a vida”. Longe do desespero da personagem da Grazi, que cuida, com dificuldade, sozinha, de três filhos, o fim da vida para Alberto, já cuidado, parecia muito mais aceitável. Mais do que aceitável, belo, poético.
Essa, possivelmente, é uma leitura muito pessoal. Mas me parece inegável que a história de “Bom Sucesso” pode nos ajudar a ressignificar a morte, mostrando esse novo olhar sobre a vida. Para a vida vivida, para a vida por viver, ainda que por pouco tempo. Para a autonomia pela qual luta Alberto, que mostra que a doença não o torna incapaz de tomar suas próprias decisões. Sabemos que alguns momentos podem valer uma vida inteira. E, na vida que a consciência da finitude pode revelar, podemos encontrar beleza que supere a dor do fim.

Espero que esse seja mesmo o propósito da obra. Nada seria mais ficcional na novela do que a salvação do Alberto, especialmente por algum suposto tratamento. Falsas esperanças já são suficientemente alimentadas na vida real, limitando a vida presente pela ilusão de um futuro que não virá.

Não encontraram nada na cabeça da minha mãe. Não sei se por milagre, mas a profecia da minha tia se concretizou. Sete anos depois, minha mãe está viva. Suas sequelas motoras, embora sérias, são imperceptíveis à maioria das pessoas. Mas não foi esse o destino de quase todo mundo que também encarou maus prognósticos. O milagre é o que é: um milagre. Podemos torcer por ele – é natural e bastante humano fazer isso. Mas não podemos e não devemos contar com ele. Colocar a morte em perspectiva faz bem à vida. E não adianta apenas ter o fim de modo irrefletido em mente. Porque, para o susto, bastam sete minutos.

Contato: Cynthia.paraujo@gmail.com

]]>
0