Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Crônica do Fim do Mundo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/24/cronica-do-fim-do-mundo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/24/cronica-do-fim-do-mundo/#respond Mon, 24 May 2021 15:17:07 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/isaac-quesada-ztiexrDN7o-unsplash-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2398 Excelente crônica do fim do mundo enviada por nossa colaboradora Cynthia Pereira de Araújo. Ela é advogada da União e pesquisou sobre pacientes com câncer avançado em seu Doutorado em Direito. Publicou  a tese Existe direito à esperança?.

Crônica fo Fim do Mundo

Por Cynthia Pereira de Araújo

Tenho me preparado para isso há algum tempo.

Na verdade, já não consigo mais imaginar como seria de outra forma.

Estou acostumado a esse tratamento misericordioso, essa atenção absoluta. Com tudo aquilo que nunca tive antes.

Queria que isso durasse mais tempo. Mas não dá para ter o melhor de todos os mundos.

-Vai querer carne ou frango?

Essa pergunta elementar e alimentar sempre me tira dos meus devaneios. Todas as vezes, penso em ser honesto e responder “tanto faz, não vou comer nenhum dos dois”. Mas me lembro que fui orientado a não divulgar tão abertamente esse segredinho.

Pego o livro que está na minha cabeceira desde domingo. Um suspense. Só leio suspenses. Antigamente, achava que lia para passar o tempo. Hoje, percebo que poucas coisas me fazem tão bem como ler. Sair totalmente de uma realidade para entrar em outra, em que a ansiedade que habita o meu corpo ganha um conteúdo palpável.

Mas hoje não estou conseguindo substituir o incerto pelo certo. Fico voltando ao meu mundo, a essa cama, esse quarto. É como se algo fosse acontecer.

O que, afinal, eu sei, é uma bobagem. É como quando alguém morre em um acidente de carro e um parente afirma que teve um pressentimento. Se algo acontece, então era o pressentimento. Mas na maioria das vezes não acontece nada mesmo.

Estou assim desde ontem. A psicóloga disse que pode ser pela diminuição do número de visitas. Não sei. Gosto desse tratamento atencioso, mas também não gosto do tumulto. Muito menos de me sentir tão vulnerável, feio, despenteado.

Daqui a pouco, Ana vai chegar com meu lanche de hoje. Ela sempre me surpreende com algo de que eu gosto muito. Essa é uma parte boa. Não tenho mais restrição alimentar, ninguém liga se eu engordar, já não tenho mais roupa em que caber. A parte ruim, claro, é que tudo que eu sempre gostei perdeu um pouco da graça. Aquela graça que só existe nas coisas que não podemos fazer a qualquer hora, o tempo todo.

Às vezes ela me traz flores. Acha que isso pode alegrar o meu dia. Eu não entendo muito bem esse pensamento, já que nunca gostei muito de flores. Mas não falo nada, o que até me surpreende, porque, ultimamente, tenho falado tudo que quero. Perdi aquele filtro que temos para conviver em sociedade. Acredito que seja uma obrigação do mundo ouvir o que eu quero dizer. Tem dado certo. Ninguém me repreende.

Ela está um pouco atrasada. Chega sempre às três, no máximo três e cinco. Nunca foi pontual antes, outra vantagem destes tempos. Mas constatar esse lado bom me faz sentir o incômodo da demora de hoje.

Não que eu esteja com fome. Mas isso me desconcentra, não consigo ler duas páginas sem verificar o relógio novamente. Então desisto.

Ligo a televisão. Não gosto de assistir a nada que eu não possa terminar hoje. Filmes, documentários. Séries, apenas as curtas e com todos os episódios disponíveis. Novelas nem pensar. Passo por alguns canais, nenhum me agrada. Três e vinte.

Vista pela última vez às duas e quarenta. Quarenta minutos atrás. Penso em ligar, mas não gosto de demonstrar que estou esperando. Vou aguardar mais um pouco.

A psicóloga está certa. As visitas diminuíram. Mas eu entendo. Nunca gostei de hospital e, sempre que ia a um, tinha um problema em seguida. Alergia, resfriado, até amigdalite. Entendo as pessoas, porque eu era uma delas.

E, de todo modo, elas também não sabem que são suas últimas oportunidades de me encontrar. Bem, saber até sabem, mas fingem que não. Eu também finjo.

É melhor assim. Tive duas experiências ruins com a verdade exclamada. Na primeira, reagiram com raiva, porque “eu era um desistente”. Ora, eu não desisti de nada, nem tenho do que desistir. Na segunda, minha resiliência foi tratada com tanto regozijo, que não houve um mísero olhar de compadecimento.

Não é que eu queira que tenham pena de mim. Mas também não aceito ser tratado sem o heroísmo que me é inerente ao lidar com essa situação.

Três e meia. Escuto passos no corredor, mas na verdade basta que eu preste atenção para escutá-los. As pessoas vão e vêm o tempo todo neste horário. Logo entrará alguém para medir alguma coisa que não vai fazer a menor diferença, mas que medem assim mesmo.

Vou chamar alguém para pedir uma água. Não esperava precisar pedir uma mísera água, mas as coisas são como são.

– O senhor não almoçou ainda?

Ah Ana. Eu não acredito que você ainda não está aqui e essa gororoba continua empesteando o recinto.

– Estou sem fome. Você pode me trazer uma água?

– O senhor sabe que tem que comer…

Ah, não sei. Mas não sei mesmo. Aliás, até desconfio que melhor seria não comer. Vai saber de que se alimenta essa coisa que cresce dentro de mim.

Quase quatro horas. Não aguento mais.

– Olá, querida. Estou ligando apenas para saber se você vem hoje.

Não.

– Ana, se você estiver muito ocupada, não precisa vir.

Não.

– Oi Ana, tudo bem? Cansou deste velho rabugento?

Batem na porta. Ora, essa é novidade. Ninguém tem privacidade neste lugar. Pessoas que nunca vi entram e saem, não me deixam sequer escolher o horário do banho. Outro dia, fiquei muito satisfeito com uma troca de fralda. Nunca mais vi quem realizou o belíssimo trabalho.

– Estou vestido, pode entrar!

– Olá!

– Ora, Ana. Desde quando você bate?

Ana não tem nada nas mãos.

– Não tinha certeza de que você ainda estivesse aqui.

– Onde mais estaria?

– Você ainda não soube?

– Não sei o quê, mas definitivamente não.

– Você vai para casa!

O engano é tão óbvio, que prefiro perguntar o que realmente me aflige.

– Você chegou mais tarde hoje. E não quis me trazer um agrado hein…

Sorrio para não parecer que me importo.

– Bem, não achei que seria necessário, já que você…

Interrompo, porque a ordem das coisas não está do meu agrado.

– Que horas são?

– Quatro e cinco, eles me disseram que…

– Ah sim, acho que vou descansar um pouco então, se você não se incomodar.

Quero deixar bem claro que não estou disponível a qualquer momento apenas porque estou aqui.

– Acho que você não entendeu… você vai ter alta.

Bem, provavelmente quem não está entendendo é você. Meu acordo com este lugar foi bem claro. A alta era daqui para cima. Ou para baixo, dependendo do resultado da avaliação divina.

– Você certamente está equivocada, querida.

Ênfase no querida.

Ela me olha estupefata. Eu continuo, inabalado.

– Você sabe muito bem que só sairei daqui quando for a hora de…

Percebo que não consigo achar as palavras certas.

– Quando morrer.

Também não precisava ser tão dura.

– Acontece que você não vai mais morrer por enquanto e terá que ir para casa. Sua condição é estável e não sabemos quanto tempo ficará assim. Quem sabe você não ganha uns anos!

Anos… Ela só pode estar maluca. Nunca houve “anos”. Sempre foram “semanas”, no máximo “meses”. E de todo modo, quem disse que quero essa prorrogação? Aí é que as visitas não apareceriam mais mesmo.

– Você não deve ter entendido bem…

– Está certo, vou chamar alguém para conversar com você.

Ela não me dá chance de dizer que não. Que não quero que ninguém venha me dizer que preciso voltar ao ostracismo de quem está perto do fim, mas não o suficiente para ser adulado. Que não foi para isso que me preparei.

Estou pronto para a passagem em um quarto com a música que eu escolhi, cercado de pessoas que gostam de mim – ainda deve haver algumas – e aquela aura de paz que todos dizem fazer parte desse momento. Isso é bem diferente de voltar a me preocupar com a conta de telefone ou do gás, muito menos com quem garantirá minha higiene diária.

Era só o que me faltava. Não bastasse me resignar com o meu destino, ter que pensar em como sobreviver até ele se impor.

Ana volta com um médico. Ela está feliz, eu posso sentir. Não entende a minha confusão.

– Então quer dizer que o senhor não sabia que pode ir para casa! Veja que coisa maravilhosa!

Maravilhosa para quem? é o que eu gostaria de perguntar.

– Seus exames estão controlados e não há motivo para o mantermos aqui. O ambiente hospitalar aumenta o risco de infecção e…

Não consigo continuar ouvindo. Só pode ser um pesadelo. Preciso voltar a viver? Como se nada houvesse acontecido? Depois de tudo isso? Depois de aceitar que o fim estava logo ali, preciso aceitar que talvez ele esteja um pouco mais à frente? Sinto-me desesperado. Acho que não consigo respirar. O lugar parece ter esquentado subitamente. Ana continua alegre. Não vou suportar, acho que estou prestes a desmaiar.

E desmaio. Não sei quanto tempo fico desacordado, nem o que acontece enquanto isso. Mas, ao acordar, recebo a (in)feliz notícia de que não poderei mais ir para casa.

– Até amanhã, Ana… se puder chegar às três.

Volto ao meu livro, triunfante.

 

setembro de 2019

 

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Uma voz no Alzheimer https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/12/16/uma-voz-no-alzheimer/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/12/16/uma-voz-no-alzheimer/#respond Tue, 17 Dec 2019 02:27:55 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/19-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1813 Fernando Aguzzoli é, para mim, um fenômeno. Um menino carismático que cuidou da avó durante seis anos e fez dessa experiência uma missão. Ele une sensibilidade com talento para comunicação e tem falado sobre Alzheimer com crianças (publicou um livro infantil para netos lidarem com os avós), jovens, adultos e velhinhos diagnosticados. Basicamente, todo mundo.

“Quem, Eu?”, da Companhia das Letras, pode ser considerado sua estreia como uma liderança na comunicação do universo dos esquecidos, (veja o book trailer aqui).

Inicialmente, o livro foi escrito para sua família, não tinha pretensões de ser lançado publicamente. Ele começou a escrever junto com sua avó. “Eu sentava ao lado dela e perguntava: me conta da sua infância, o que você lembra. Ela devorou livros a vida inteira, seria incrível se ver na capa de um. Pena que ela morreu no meio do processo… Terminar o livro sozinho foi a tarefa mais difícil da minha vida”.

Surgiram outros projetos, como o livro infantil, selecionado pelo programa nacional de livros didáticos, e o site Vovó Nilva, um portal de comunicação para incentivar e auxiliar familiares. “Tudo que eu encontrava sobre Alzheimer me derrubava, eu me sentia incapaz. Por isso, decidi criar meu conteúdo na internet para informar e oferecer apoio aos familiares”.

Em suas palestras, Fernando conta sobre a descoberta do diagnóstico da avó, sua relação com ela, os obstáculos que encontrou na jornada e a forma como lidou como eles.

Um desses obstáculos era a repetição, ouvir a mesma pergunta o tempo todo. “A repetição irrita todo mundo. Eu fui aprendendo ao longo dos 6 anos que a mentira terapêutica pode ajudar. Mas para chegar nesse estágio, onde a mentira pode ser algo bom, é longo. Minha avó sempre perguntava onde estava sua mãe. Para ela, a mãe não estava morta, mas sim viva. Eu dizia: ela já morreu. Todos os dias, ela chorava e revivia o luto. Teve um dia que ela perguntou sobre várias pessoas… ela me disse: – é tão difícil esquecer e tu fica me lembrando. Um dia, ela me perguntou: – onde está minha mãe? Eu disse: – ta na praia. Ela ficou feliz, perguntou: – o que ela foi fazer? – Passear. Depois de 10 minutos, ela me perguntou de novo. Eu achei melhor mudar a resposta, para eu não me irritar. Fui realizar os sonhos da minha avó no esquecimento dela. Ao invés de dizer que sua mãe foi para uma praia bagaceira, eu comecei a dizer outras coisas: – ela ta na Disney, – nos Estados Unidos… Ela perguntava: – por que eu não fui junto? Eu dizia: – a gente vai amanhã. Cheguei a imprimir passagem falsa. Ela ficava feliz”.

Hoje, ele está na Irlanda com uma bolsa do Global Brain Health Institute, que se propõe a criar uma rede de lideranças internacionais em saúde cerebral. O propósito dessa instituição remete ao seu fundador, Chuck Feeney, um dos criadores do conceito do Duty Free. Ele decidiu doar toda sua fortuna para projetos ao redor do mundo, como sistemas de bolsa de estudos na Irlanda. Uma parte dessa fortuna foi doada ao Atlantic Philanthropies. O Global Brain Health, onde está Fernando, faz parte desse instituto maior e reúne  diversas disciplinas para estudar os efeitos da demência pelo mundo.

Fernando é um dos 20 convidados para ter essa formação. De segunda a sexta-feira, faz pesquisas em seu escritório, desenvolvendo seu próprio projeto que concorre a uma bolsa para ser implementado no Brasil. Às terças e quintas, participa de pods. São encontros multidisplinares com economistas, musicoterapeutas, médicos, neurologistas, para discutirem determinados temas, como por exemplo, neuroanatomia.

Ele é escalado, semanalmente, para acompanhar um trabalho de campo. Na semana em que nos falamos, Fernando acompanhou os psiquiatras da Saint James Hospital e foi conhecer  intervenções não medicamentosas como música e arte, no Misa creative.

O projeto de Fernando será o Instituto Vovó Nilva, que pretende ser um centro de referências para centralizar serviços em Alzheimer e doenças similares, mas dedicados aos familiares. Um desses serviços é o que Fernando chama de Projeto Restart – para ajudar as famílias a recomeçar após a morte.

“Eu cuidei da minha avó por 6 anos. Imagina quando você cuida de uma pessoa com Alzheimer por 20 anos. Como você recomeça? Você deixou sua carreira e sua vida pessoal de lado por muito tempo. A doença afeta seus relacionamentos, suas emoções no amplo espectro. Todos os sistemas vão até a morte, ninguém pensa naquela família após”.  Fernando quer preencher essa lacuna.

Ele também quer montar um “help-line”, que não tem no Brasil. É uma linha de apoio 24 horas, formada por voluntários, para ajudar nas questões emocionais como – ele não ta dormindo, ele ficou agressivo, eu não estou entendendo porque eu estou sentindo raiva dele…

Quando retornar ao Brasil, Fernando vai pesquisar porque vemos o convívio social de velhos como algo ruim. “No mundo todo, moradia compartilhada significa qualidade de vida. O convívio social é um fator de proteção para as cognições. Mas, no Brasil, o idoso não quer envelhecer com outro velho. Nos Estados Unidos há condomínios de idosos. Visitei um em Miami que tem mais de 20 mil idosos morando juntos”.

Sua experiência na Irlanda também mostra outra forma de lidar com a morte. “Aqui não é tabu falar sobre morte. Ela não é a derrota da velhice, ela é consequência da vida”. Essa é a inspiração para o novo livro do Fernando, quebrar a barreira da morte, com previsão de lançamento para abril 2020, pela Companhia das Letras.

“Quando enfrentamos o Alzheimer, nos sentimos derrotados desde o início. Porque não importa dinheiro, esforço, o que for, você não pode derrotar, impedir o Alzheimer. Então, qual é nosso papel nisso tudo? Em muitos casos, a morte, dependendo da nossa compreensão, será uma libertação. A morte da minha avó representou para mim essa libertação”.

Vovó Nilva é o grande compromisso da vida de Fernando. Ele usa seu anel para representar essa aliança e se lembrar todos os dias dessa missão.

Alzheimer

Alzheimer é um tipo de demência que corresponde a mais da metade dos casos de demência. Seu nome oficial refere-se ao médico Alois Alzheimer, o primeiro a descrevê-la, em 1906. Ele estudou e publicou o caso da sua paciente Auguste Deter, uma mulher saudável que, aos 51 anos, desenvolveu um quadro de perda progressiva de memória, desorientação, distúrbio de linguagem (com dificuldade para compreender e se expressar), tornando-se incapaz de cuidar de si. Após o falecimento de Auguste, aos 55 anos, o Dr. Alzheimer examinou seu cérebro e descreveu as alterações que hoje são conhecidas como características da doença.

Estima-se que existam no mundo cerca de 35,6 milhões de pessoas com a Doença de Alzheimer. No Brasil, há cerca de 1,2 milhão de brasileiros, a maior parte deles ainda sem diagnóstico.

Não é uma doença hereditária, menos de 5% dos casos se observa algum tipo de herança. A idade é o maior fator de risco. Quem tem 85 anos tem 50% de chance de ter.

Diagnóstico precoce é fundamental. Ele é feito observando-se uma perda de memória progressiva, que afeta o dia a dia e aplicar testes e notar o comprometimento. É importante ressaltar que se esquecer de fatos pode ser normal. Devemos ficar atentos quando há perda de memória que gera interferências no cotidiano. Esse diagnóstico aborda muito a exclusão de outras doenças. Por exemplo, faz-se exame de sangue e neuroimagem para afastar doenças, como hipotireoidismo e problemas cognitivos, AVCs. Existem exames mais refinados, mas também não dão certeza absoluta. O diagnóstico da certeza absoluta só existe com um estudo do tecido do cérebro, o que não é feito devido ao risco de uma cirurgia cerebral.

A verdade é que não estamos preparados para envelhecer e criamos políticas públicas de forma lenta e ineficaz. É importante falarmos sobre o Alzheimer para conscientizar a população e diminuir o estigma. Tratar esse assunto em classes sociais baixas é ainda mais desafiador. Contratar um cuidador é muito caro e o familiar acaba deixando de trabalhar para cuidar do pai, por exemplo. Não há um plano nacional de demência que compreenda todos os custos que a doença gera para a família. Custos financeiros e emocionais.

Alzheimer ainda não tem cura. Acredito que um dia ela virá. O que podemos fazer hoje é retardar seu início, diminuir o estigma dos velhos, criar políticas públicas que dê melhor qualidade de vida e possibilite o convívio social.

Do Avesso

O primeiro livro que eu escrevi é uma fantasia chamada “Do Avesso”, de 2007. Após a morte da mãe, meu protagonista chega no universo da engrenagem do nosso planeta, chamado Maya. Tudo que acontece aqui é feito por grupos de seres divididos em tarefas e funções lá. O universo das funções enfrenta o poder de uma profecia, em que o inimigo aterrorizante, que é uma geleia gigante chamada Estagna, mata todos que estagnam. Ele está crescendo e aumentando seu poder. Meu protagonista se perde em Maya porque ele não sabe qual é seu talento, sua função, e fica ali procurando um. Sem talento nenhum, ele fica à mercê de Estagna, esse grande inimigo que matou sua mãe. O Alquimista é um personagem importante porque ele envia as emoções ao nosso mundo. Ele está com Alzheimer e se esquece das fórmulas, envia as emoções todas misturadas… Gera uma bagunça só. Enfim, ele faz um jantar de despedida e anuncia que deixará de exercer suas funções. Eu chorei criando esse personagem. E imagino a dor de alguém que tem a consciência de estar desaparecendo… Saber da nossa finitude é um presente realmente muito dolorido.

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Carmen Barroso: Ontem, poeira de estrelas. Amanhã, abracemos o desconhecido. https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2018/08/28/carmen-barroso-ontem-poeira-de-estrelas-amanha-abracemos-o-desconhecido/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2018/08/28/carmen-barroso-ontem-poeira-de-estrelas-amanha-abracemos-o-desconhecido/#respond Tue, 28 Aug 2018 13:36:57 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/VIVER-CAPA-320x213.jpeg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1592 A cientista social Carmen Barroso dedicou sua carreira ao estudo de direitos reprodutivos. “A partir da década de 90, a ideia de controle de natalidade foi substituída pela ideia de direitos reprodutivos, que são, basicamente, o direito de decidir se a mulher deseja ter ou não um filho, com quem e quando”, ela disse ao blog. Em 2016, recebeu o prêmio da Nações Unidas, UN Population Award, por seu trabalho na área. Ele é pioneira no estudo de gênero no Brasil e a na ONU e, hoje, é uma das diretoras (“co-chair”) do Independent Accountability Panel,  a convite do secretário-geral da ONU. A instituição surgiu para acompanhar a implementação de um programa da ONU chamado “Every Woman, Every Child, Global Strategy for woman, children and adolescente health“.

Carmen discutiu o direito à vida durante toda sua carreira. Hoje, ela parece refletir sobre esse outro lado, também pouco discutido na sociedade, que é a morte. “A morte é parte da vida. É uma parte negligenciada da vida. Quando você fica mais velho, você começa a perceber que ou refletimos sobre isso, ou enfiamos a cabeça na areia”.

A imagem de “enfiar a cabeça na areia” é uma metáfora  presente no livro fotográfico, VIVER, de Derli Barroso, seu marido. Derli teve uma coluna semana semanal na Folha, durante 3 anos, sobre fotografia. Moram nos Estados Unidos desde 2003 e vieram ao Brasil para o lançamento desse livro.

Reproduzo aqui, com a permissão de Carmen, a linda introdução desse livro. O título “Viver é perigoso” é uma referência a Guimarães Rosa.

Viver é perigoso

Por Carmen Barroso

Viver enquanto velho é especialmente perigoso. Na velhice as coisas se tornam mais simples e mais complexas ao mesmo tempo. Também mais fáceis e mais difíceis, o que não é exatamente o resultado da simplicidade e da complexidade crescentes. E o perigo está em não aprender a ver estas mudanças e perder as grandes oportunidades que elas oferecem.

Derli aprendeu. Tanto na vida como na obra. Os trabalhos que está produzindo no limiar de seus 80 anos simplificam as imagens de extrema complexidade que sua retina e sua câmera tem registrado ao longo do tempo. Revisitando suas fotos de situações as mais variadas, procura extrair sua essência. Reduzindo-as a formas, cores e movimentos, na realidade amplia a visão daquilo que realmente está em jogo. O resultado pode ser aparentemente fácil, mas trata-se daquela facilidade difícil que também buscavam Miró e Klee.

O que torna a velhice especialmente perigosa não é somente que sejamos seres perecíveis, mas especialmente nossa consciência da morte, que se torna cada vez mais presente. Amedrontadora, deprimente: muitos preferem fugir dela o quanto podem. Procuram não pensar (e ainda menos falar) no assunto.  Torna-se um tabu, pior que o sexo.

Mas também há os que tem olhos para ver e encontram novas perspectivas quando se deparam com o encurtamento de seu futuro. O que era importante deixa de ser. O que era eterno encolhe no tempo. O negligenciado passa a ser prioridade. Necessidades urgentes se evaporam. Experiências insignificantes tornam-se preciosas.

Paixões adormecidas se acendem. Belezas inusitadas são percebidas. Prazeres recônditos são descobertos.

Nas mãos de Derli, fotos que tirou nos quatro cantos do mundo, e cujos infinitos detalhes ele tanto aprecia, são submetidas a um rigoroso processo de depuração e celebram a beleza da simplicidade. A riqueza das aparências se torna supérflua e emergem cores e movimentos numa coreografia brilhante que nos convida a concentrar no essencial.

Tudo isto parece ter muito a ver com nossa posição no espaço e no tempo. O cientista … já dizia:  se há quatro bilhões de anos éramos amebas; daqui há quatro bilhões de anos, os seres existentes serão provavelmente tão distintos de nós, como nós das amebas.

Ontem, poeira de estrelas. Amanhã, abracemos o desconhecido.

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Um som para a UTI  https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/04/03/um-som-para-a-uti/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/04/03/um-som-para-a-uti/#respond Mon, 03 Apr 2017 15:49:48 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1286 As UTIs já foram classificadas como “branches of hell” (uma espécie de inferno na Terra) em estudos sobre tratamentos intensivos. Uma pesquisa do ano passado afirma que um quarto dos pacientes sofrem de transtornos pós-traumáticos até um ano após a internação. Esse estudo chegou a mencionar que você tem as mesmas chances de ter stress pós-traumático após a UTI do que se tivesse sido estuprado ou ido para a guerra.

Pacientes em cuidados intensivos vivem sob pressão mental forte. Sentem muita dor, vulnerabilidade, impotência, depressão, culpa por demandar atenção familiar e ser motivos de brigas, como irmãos discutindo quem cuida mais, quem paga menos. Para a família, o doente vira uma demanda. E uma lembrança horrorosa de que, em algum momento, todos estarão ali naquela cama.

O tratamento dos médicos e enfermeiros ajudam na passagem do dia, no afeto, na sensação de voltar a se sentir gente. Eles aplicam empatia, buscam ter leveza no toque e na voz. Explicam cada ação e conversam, mesmo se o paciente estiver em coma (ou pelo menos deveriam).

Um aspecto que poucas pessoas param para pensar é o som em um ambiente de UTI. Bipes, alarmes sinalizando que um batimento cardíaco ficou muito baixo ou muito alto. Ou que a oxigenação caiu, um elétrodo saiu do lugar. Também é constante o som da televisão, o som de uma respiração artificial, o som de um choro contido. Enfermeiros e médicos passam plantões, celulares apitam, telefones tocam.

Esse tipo de som não contribui para a recuperação de um doente em unidades intensivas. Aí eu me pergunto: por que não termos som ambiente nos quartos de UTI?

Reportagem da revista eletrônica AEON conta um evento fora do comum. Na unidade de cuidados críticos do Hospital da University College de Londres, foi organizado um show ao lado do hospital, transmitido ao vivo aos pacientes, via wifi. Foram entregues fones de ouvido e ipads esterilizados aos pacientes que demonstraram interesse em escutar a performance. Muitos deles, conectados a máquinas e com poucos dias de vida. Guitarra, sax, flauta e clarinete tocavam “The Mermaid of Marmara” (a sereia de Marmara). A música é linda. Parece a trilha sonora para um show de ondas quebrando na areia. A reportagem também cita uma reportagem do “The Guardian”, em que uma ex-paciente de UTI descreve um som “constante e assustador”, que não parava nem a noite.

As UTIs são, normalmente, relacionadas ao desumano na medicina. São um espaço evitado dentro de um espaço já evitado (o próprio hospital). Mas não precisaria ser assim. As UTIs existem para os pacientes serem monitorados de perto e tenham atendimento o mais rápido possível. Existem para tornar possível sua sobrevivência. Ou para possibilitar um caminho mais natural para a morte. Pelo menos deveria ser assim.

Quem sabe, uma música ambiente poderia ajudar a tirar essa imagem das UTIs darem “medo”, de serem assustadoras e insuportáveis. A cultura popular já internalizou a noção de que os efeitos da mente se traduzem em efeitos no corpo. Acredito que seria um ganho importante para a qualidade de vida dos pacientes nas Unidades de Tratamento Intensivo, mesmo que essa vida dure segundos. Quem sabe, na essência de tudo, esteja ver pacientes como mais do que simples pacientes. Como dizem os organizadores desse show no hospital em Londres: “Por algumas horas, estranhos trataram esses pacientes como algo além de uma série de problemas complexos que precisavam ser resolvidos com máquinas”.

Leia mais: é melhor morrer em casa ou no hospital?

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Por que o tempo passa mais rápido conforme envelhecemos? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/27/porque-o-tempo-passa-mais-rapido-conforme-envelhecemos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/27/porque-o-tempo-passa-mais-rapido-conforme-envelhecemos/#respond Fri, 27 Jan 2017 11:29:24 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/01/The_Persistence_of_Memory-180x133.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1242 Não sei muito bem quando foi que começou. A segunda-feira de repente apareceu colada na sexta. Passei a me guiar por esses dois dias. Ou eu estou numa segunda, ou na sexta. Os outros são rabiscos no calendário, uma lista de coisas a fazer que eu vou cumprindo como se estivesse dormindo. Não pela leviandade de sonhos, mas pelo fator onírico e subjetivo deles.

Aí eu lembro como, pouco tempo atrás, a semana era uma extensão longa de horas e de dias. Cabia de tudo ali. Só que minha vida não está mais atarefada do que era antes. Não lembro de uma época em que eu achava que sobrava tempo. O que mudou, eu me pergunto. Será que meu cérebro passou a digerir o tempo de forma diferente?

Há algumas teorias e experimentos nesse sentido. Todos se baseiam na ideia de que, realmente, temos a percepção de que o tempo passa mais rápido conforme envelhecemos.

Em 1877, surgiu uma teoria chamada “a teoria da proporcionalidade”, baseada na ideia de que comparamos intervalos de acordo com a quantidade de tempo que já vivemos. Conforme envelhecemos, nosso sentido do presente começa a parecer curto comparado ao total do tempo que já passou nas nossas vidas. Dessa forma, uma criança vê um ano como uma eternidade, porque comparado à quantidade de anos que ela já viveu, é muito. Se você tem 90 anos, 1 ano significa pouco perto de todos os vividos. É nesse sentido que surge a proporcionalidade do tempo e a sensação de que ele vai passando cada vez mais rápido.

Outro ponto importante seria termos menos novidades na vida conforme envelhecemos. O psicólogo Wiliam James descreveu em um artigo de 1890, “Princípios da Psicologia”, essa teoria baseada no fato de que a falta de novidades da fase adulta interfere na sensação da passagem do tempo. As experiências parecem se repetir e a sensação de familiaridade com o mundo e com os acontecimentos aumenta.

Você ir a um lugar pela primeira vez é inusitado, é novo, é uma aventura. Vamos prestar mais atenção em tudo e nos adaptar a um novo contexto. A experiência parecerá mais vívida. Se já é a centésima vez que você vai a esse lugar, o tempo passará mais rápido. Como há menos informações a serem processadas, nosso cérebro cria atalhos. Por exemplo, quando somos crianças, ir à praia pela primeira vez é inesquecível, ou visitar um país novo, ver a neve… Na fase adulta a chance de já termos cumprido toda a lista das “primeiras vezes” é maior.

Um estudo no início dos anos 60, dividiu a percepção do tempo entre dois grupos: jovens de 18 a 20 anos e adultos de 70 anos, com o uso de metáforas. Os jovens descreviam o tempo como algo mais estático (tempo é um oceano parado) enquanto os adultos o associavam a algo acelerado (tempo é um trem que anda muito rápido).

Há outros efeitos interessantes sobre a sensação do tempo passar mais rápido ou devagar. Essa percepção varia conforme nosso nível de foco, estado físico e humor. Quando estamos em uma situação ameaçadora, o tempo passa mais devagar, porque nosso cérebro irá se concentrar em garantir nossa sobrevivência. Quando estamos entediados, o tempo também passa mais devagar, porque o cérebro não tem muito com o que se ocupar e vai prestar atenção na própria passagem do tempo. Quando desempenhamos diversas tarefas ao mesmo tempo, prestamos menos atenção na passagem do tempo e temos a percepção de que ele passa mais rápido. O envelhecimento interfere na nossa capacidade em desempenhar diversas funções ao mesmo tempo o que também pode interferir nessa sensação.

Tanto nosso metabolismo quanto nosso nível de dopamina (o neurotransmissor que nos dá sensação de bem-estar e recompensa) caem conforme envelhecemos, o que também pode influenciar nossa percepção. Nessa linha, podemos afirmar que nosso relógio interno desacelera conforme envelhecemos. Em comparação, o relógio externo (a contagem de horas e de dias) vai parecer mais acelerado do que antes.

Também há teorias sobre o tempo passar mais rápido quando estamos nos divertindo. Então, em uma versão mais otimista da vida, conforme envelhecemos vamos gostando mais de viver, mesmo sem as surpresas da infância, mas com a sabedoria da história.

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Os seios de Maria Alice https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/03/os-seios-de-maria-alice/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/03/os-seios-de-maria-alice/#respond Thu, 03 Nov 2016 20:34:04 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/11/16307110-180x115.png http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1185 Pela primeira vez, o Instagram censurou uma foto publicada pela Folha. A foto também foi retirada da página do Facebook do jornal.

O Instagram indicou que a imagem não levaria o público a uma “experiência confortável”. A grande maioria dos internautas que comentaram a notícia apoiaram a decisão da censura, alegando ser uma imagem de “mau gosto”, “humilhante”, um “nojo”, e que o idoso deveria ter “noção de dignidade”, ser “discreto”. Alegaram que a retratada, Maria Alice Vergueiro, não deveria se expor dessa maneira.

Capa da última revista “Serafina” (da Folha), essa foto faz parte de um ensaio com a atriz de 82 anos, muito popularizada no vídeo “Tapa na Pantera” viralizado no YouTube. Ela sofre de mal de Parkinson e está em turnê com a peça “Why The Hourse”, na qual encena o próprio enterro, trata de temas como a velhice, a morte e a fragilidade humana, com cenas oníricas e metafóricas. Um espetáculo muito bonito, que dribla a razão e incita emoções inesperadas. Saí dele procurando não entender uma peça, mas sim senti-la. O que é um desafio para mim e talvez para grande parte da minha geração, que tende a racionalizar o mundo e não vê espaço na sociedade se não for através do uso incansável da razão.

Eis que essa foto traz à tona um pouco dessa reação. Ela fala diretamente com uma emoção, com o medo, com a surpresa diante do inesperado. Ela nos tira de uma zona de conforto, causa um aplauso enérgico ou uma torcida de nariz – de “nojo” de uma imagem que chegou a ser comparada a uma “intimidade de banheiro” por certa internauta, como se fosse escatológica.

No meu caso, trouxe um espanto positivo. Aplaudi, venerei. Maria Alice, sempre corajosa na sua maneira de se expressar, resolveu quebrar mais um tabu. O que ela mostra à câmera é algo absolutamente normal. São seios naturais, que sofreram o impacto da gravidade como todos os seios do universo. Salvo aqueles que se mantêm erguidos pelo bisturi. São bem-vindos esses também.

Os que repulsaram os seios de Maria Alice podem se lembrar de que o impulso para achar algo feio ou bonito é uma construção cultural. Nossa percepção estética é manipulada. No Renascimento, as mulheres mais gordinhas, com formas voluptuosas, eram consideradas bonitas, porque a gordura significava dinheiro extra para comer extra. Hoje, as magras são aceitas e as gordinhas são deslocadas.

Por isso, achar uma coisa bonita ou feia não depende totalmente de você. O gosto é fruto da interação social, dos dogmas do momento. Temos menos liberdade do que imaginamos na hora de um julgamento. Dois homens se beijando era considerado feio e nojento. O Instagram e Facebook (que controla o Instagram) deve ter censurado um monte de fotos dessas, mas duvido que continue fazendo atualmente. O beijo gay já é transmitido em rede nacional nas novelas. Digo o mesmo dessa foto. Quanto mais fotos expuserem a naturalidade do corpo, da velhice, menos reações horrorizadas teremos e menos censura.

Maria Alice não é uma minoria. O IBGE calcula que em 2030 já seremos um país de velhos. Em 2050, a população de velhos ultrapassará a de crianças e jovens de até 29 anos. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), nossa população acima dos 60 anos cresce acima da média mundial. Eu até acho que, quando chegarmos lá, a faixa para alguém ser considerado velho já terá subido consideravelmente.

Esses velhos, nós, devemos ter a liberdade para tirar a camiseta na frente do espelho sem nos sentirmos fracassados e nojentos. Envelhecer é um ato de coragem, de sabedoria. E cada ruga, cada marca ou cicatriz está aí para ser venerada, exposta com orgulho. O que não pode ser feito é o retrocesso: aceitar essa censura como legítima e inibir futuros ensaios como esse. Ao contrário, Maria Alice abre portas para uma nova liberdade. A liberdade para envelhecer, para se reinventar na velhice. Que seja considerado feio por um tempo, até a relatividade de nosso olhar dar as graças, derrubar esse tabu de vez, e finalmente passar a ser aceito. Como tudo na vida.

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2030: a fusão entre homem e máquina https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/09/22/2030-a-fusao-entre-homem-e-maquina/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/09/22/2030-a-fusao-entre-homem-e-maquina/#respond Thu, 22 Sep 2016 12:51:41 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/09/TranshumanMichelangelo1-180x100.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1109 Por volta de 2030, poderemos ter o que o engenheiro do Google, autor e futurista Raymond Kurzweil chama de “pensamento híbrido”. Significa pensarmos em parte de forma orgânica, de acordo com a biologia de nosso cérebro, e em parte de forma artificial – uma possibilidade do avanço exponencial da tecnologia. Um nanorobô se instalaria em nosso neocortex (no cérebro) possibilitando acesso direto á “nuvem”, ao conjunto de informações acessíveis via internet. Essa tecnologia também permitira transmissões ao vivo da visão de alguém, entre outras possibilidades.

Seríamos fundidos à máquina, ou melhor, a traríamos para dentro do corpo humano. Parece ser o desenho de um futuro mais provável para a inteligência artificial do que essa dicotomia pintada na maioria dos filmes de ficção cientifica, de homem versus máquina, de robôs dominando a humanidade ou os usando para benefício próprio. Acho que não será uma questão de um ou outro, mas um e outro formando um outro ser, um novo conceito de humanidade. Apesar dessa imagem me dar arrepios.

A nanorobótica ainda é uma tecnologia emergente, mas promete revolucionar a medicina num futuro próximo. Nanorobôs são robôs do tamanho de uma célula sanguínea que poderão circular em nosso corpo fazendo diagnósticos, levando nutrientes e realizando micro cirurgias.

É estranho pensar que em poucos anos um novo tipo de ser humano possa surgir. Mas refletindo sobre o avanço que tivemos nos últimos 30 anos, não é de forma alguma impossível. Em palestra no TED, Kurzweil explica o desenvolvimento de seu raciocínio. Clique aqui para assistir.

Matéria de capa da revista “Time” “2045: The Year Man Becomes Immortal” explora a possibilidade de fazermos downloads de nossas mentes em outros recipientes, como robôs, e questiona quais implicações isso traria. 2045 seria o ano da singularidade, ainda impossível de ser compreendida, por não conseguirmos pensar fora de nosso linear e químico cérebro animal.

O termo singularidade é usado para representar uma corrente de pensamento, muitas vezes tida como um movimento. Indica que a humanidade passará por enorme avanço tecnológico em um curto espaço de tempo, no qual a inteligência artificial predominará sobre a humana. O termo é creditado ao cientista Vernor Vinge. Kurzweil, que profetizou o surgimento da internet, é um dos fundadores da Singularity University, que tem a missão de “educar, inspirar e empoderar líderes para aplicarem tecnologias exponenciais no tratamento dos grandes desafios da humanidade”.

Outro relevante membro dessa filosofia é o gerontologista Aubrey De Grey. Ele afirma que o primeiro ser humano a viver 1000 anos já nasceu. De Grey vê o envelhecimento como uma doença a ser curada e explica como isso poderia ocorrer nessa palestra aqui. Ele é autor do livro: “Ending Aging” (importado sob encomenda pelas livrarias).

O ano de 2045 para a singularidade foi definido com base na lei de Moore -ela diz que a capacidade de processamento dos computadores dobra a cada 18 anos, com custos permanecendo constantes. Essa lei analisou dados do passado e tem sido usada há 30 anos.

Kurzweil acredita que vamos parar o envelhecimento e tornar a imortalidade possível. É apenas uma questão de vivermos o suficiente para vivermos para sempre, como diz no seu livro: “Transcend: Nine Steps to Live Forever” (Transcender: nove passos para viver para sempre). Ele também é adepto da teoria da restrição de calorias para aumentar a expectativa de vida. Ponto que defende em diversos livros, assim como o uso da genética para manipularmos genes para barrar o envelhecimento e prevenir doenças. Veja o site do livro “Fantastic Voyage”.

Leia mais: Por quantos anos devemos viver

Albert Einstein teria dito: “A humanidade precisará de uma substancial nova forma de pensar se quiser sobreviver”. Essa frase normalmente é atribuída ao homem ter que mudar seu comportamento em relação a recursos naturais, ao meio ambiente e a questões sociais e éticas. Pensar em prol de um bem comum e não mais em benefício próprio. Transformar uma mentalidade imediatista para uma visão a longo prazo. Quem sabe, Einstein também estaria profetizando sobre o pensamento híbrido de Kurzweil.

Os avanços tecnológicos podem trazer benefícios mas costumam ser atrelados a efeitos colaterais que nos prejudicam e precisam ser discutidos. Como o vício da internet, a alienação do celular e a solidão das redes sociais. Esse homem-máquina teria um novo desafio a sua frente: como lidar com a liberdade de escolha em um cenário de acesso instantâneo e ilimitado a informações? Teorias filosóficas seriam reformuladas e outras apareceriam. Existencialistas se debruçariam sobre a nova responsabilidade do homem diante um livre arbítrio tecnológico e a angústia existencial gerada pelo processo de tomada de decisões com tantas opções e informações disponíveis. Sartre não ia querer perder a oportunidade de refletir sobre um outro tipo de ser humano e iria implorar para nascer de novo.

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Enganando a morte https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/12/enganando-a-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/12/enganando-a-morte/#respond Fri, 12 Aug 2016 14:53:25 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/20160813_FBD001_1-180x101.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1065 Capa da revista “The Economist” dessa semana traz a frase: “Cheating death” (enganando a morte). O artigo se refere a descobertas científicas que podem desacelerar o envelhecimento. Nas décadas passadas, a expectativa média de vida da população aumentou devido a melhorias na alimentação, saúde pública, medicação e habitação. Agora, essa expectativa continuará crescendo devido ao uso de determinados remédios antienvelhecimento. Alguns, inclusive, já existem.

Em breve, não será apenas a expectativa média de vida que irá aumentar, mas sim a expectativa máxima. Poderemos viver mais. Partes do corpo já desgastadas serão substituídas por novas partes desenvolvidas a partir da célula da própria pessoa.Técnicas de edição de genes também serão possíveis, já que é sabido que algumas características de certos genes podem nos fazer viver mais.

O artigo toca num ponto importante: do ponto de vista do indivíduo, viver mais é muito bom. Mas do ponto de vista da sociedade, pode trazer desafios e não ser tão bom assim, ao exacerbar problemas econômicos e sociais já existentes.

Como, por exemplo, na área da saúde pública. Se viver mais é caro, como definir quem terá acesso ao tratamento antienvelhecimento primeiro? Como serão mais acessíveis aos mais ricos, aumentará anda mais a desigualdade social de democracias que já sofrem com essa realidade?

O artigo coloca outras questões a serem pensadas: os trabalhadores mais velhos sofrerão discriminação como ocorre hoje em dia? Os chefes vão continuar suas carreiras por mais tempo ou vão cansar ou decidirão fazer algo completamente diferente? Os velhos vão manter uma atitude mental e física jovial ou a sociedade vai ficar mais conservadora (porque os velhos tendem a ser mais conservadores)?

Há a possibilidade da vida tornar-se cheia de novos recomeços, ao invés de ser apenas uma única história. Esse ponto é meu predileto e aí o aumento da longevidade me anima. Gosto da expectativa de recomeçar várias vezes ao longo de uma vida, testar diversas profissões, estudar várias áreas do conhecimento, nos especializarmos em diferentes assuntos nas várias fases.

No lado econômico, a política de aposentadoria precisaria ser reformulada. E a família? Haveria uma tendência ainda maior de termos mais de um “grande parceiro” na vida. Os filmes poderiam começar a refletir a busca de algumas almas gêmeas ao invés de uma.

O artigo em questão cogita um futuro no qual as famílias se assemelhariam a labirintos. Com a ajuda da tecnologia, poderíamos reproduzir por muito mais tempo e, assim, termos filhos com diversos parceiros.

E toca num ponto muito falado aqui blog : focar em qualidade de vida e não apenas em quantidade, para não correr o perigo de acabar igual ao tadinho do Títono – aquele que pediu vida eterna aos deuses mas esqueceu de pedir também a eterna juventude.

Se órgãos forem realmente substituídos por novos órgãos desenvolvidos do zero a partir de nossas células, ou mesmo impressos em tecnologia 3D, eu acho que a mente será um desafio sem soluções no horizonte.  Como substituir o cérebro? Um remédio poderia tornar nossos neurônios atletas olímpicos? Mas e nossa capacidade de armazenar memórias?

Outro artigo dessa mesma edição da revista,  menciona tratamentos com restrição de caloria. Em animais, experimentos com esse tipo de restrição diminuiu o risco de câncer e doença do coração, por desacelerar a degeneração dos nervos.

Esse tratamento ainda não foi clinicamente comprovado em humanos, mas sugere que o envelhecimento não é apenas um acúmulo de defeitos, e sim um fenômeno por si só, que está sob o controle de genes e do ambiente. Dessa forma, poderia ser manipulado, seja por mudanças no ambiente (como a dieta de restrição de calorias) ou acessando os caminhos metabólicos dos genes via remédios.

Esse tipo de manipulação (focando no envelhecimento como um processo) poderia aumentar a quantidade e qualidade de vida de forma que os remédios focados em doenças específicas não conseguiriam.

Hoje em dia, as agências reguladoras não permitem drogas antienvelhecimento. Me incomoda a abordagem de ver o envelhecimento como uma doença a ser curada. Me parece uma visão distorcida e cheia de preconceitos, mas é justamente o ponto do artigo da “The Economist”: “Se os reguladores mudarem seu posicionamento, o interesse seria imenso. Uma condição que afeta a todos é o maior mercado potencial que se possa imaginar”. Há indícios de que essa proibição deva ser modificada em breve e drogas anti-idade sejam aprovadas.

O interesse mercadológico tem crescido com descobertas sobre biologia celular, funcionamento de genes e análise de dados de sequências do genoma humano, demonstrando como o envelhecimento ocorre e como pode ser restringido.

Pesquisa no Human Longetivity Inc, por exemplo, descobriu que algumas variações genéticas são ausentes em pessoas mais velhas. O que implica que sua presença pode gerar expectativas de vida mais curtas.

Um tratamento de regeneração que vem sendo estudado é o rejuvenimento de animais com o uso do sangue de animais mais novos – há pesquisas com infusões do plasma de sangues mais novos para tratar Alzheimer (ainda sem resultados conclusivos).

O artigo coloca o limite máximo que poderíamos viver, com o uso de tratamentos e drogas, em 120 anos, “porque parece ser mais ou menos o limite superior natural de uma expectativa de vida humana”.

Um artigo da revista “Time” não concordaria com esse número, pois já publicou uma capa com uma bebê e a manchete: “Esse bebê poderia viver até os 142 anos” (leia post sobre essa edição nesse link).

No velhice da geração que está nascendo agora, teremos sim limites “mas ninguém pode adivinhar quais serão esses limites”, conclui o autor.

Sobre esse assunto, recebi uma carta do leitor Fabio Storino. Reproduzo uma parte aqui: “Penso muito sobre essa questão do “viver para sempre”, que me vem à cabeça quando converso com meu filho Tom (3 anos e 8 meses) sobre a morte. E sempre chego à conclusão de que isso seria péssimo para a humanidade. Além da questão de sustentabilidade econômica e ambiental, tem outra que me pega muito: hábitos e práticas demorariam muito mais para mudar. Muita coisa avança na sociedade “um funeral de cada vez”, com a chegada de novas gerações, novas ideias, novos paradigmas. Olhando para uma foto instantânea da nossa sociedade é muito fácil ver como as múltiplas gerações que convivem hoje carregam, cada uma, alguns valores e hábitos muito próprios. Às vezes a sociedade como um todo muda, mas, muitas outras vezes, velhos hábitos vão sendo enterrados junto com as pessoas e novas mentalidades dependem de novas mentes. Tenho meus momentos de “get off my lawn, you punks!”, mas também tenho um profundo otimismo quando vejo parte da velha turma “saindo” e a turma nova que está chegando! Acho esse ciclo fundamental para a sociedade”.

Quer ler mais sobre o assunto? Clique em “envelhecimento” na aba lateral do blog. Para saber mais sobre cuidados médicos no final da vida, olhe em “cuidados paliativos”. Curioso sobre como funciona o setor funerário? Vá em “bastidores da morte”.

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10 condições incuráveis com tratamentos promissores https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/04/10-condicoes-incuraveis-com-tratamentos-promissores/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/04/10-condicoes-incuraveis-com-tratamentos-promissores/#respond Thu, 04 Aug 2016 12:39:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1049 Esses dias me deparei com o artigo “10 condições incuráveis com tratamentos promissores” em um site chamado Listverse, que lista 10 coisas de tudo o que você possa imaginar. Sinto uma mistura de preconceito com atração por títulos assim. Mas a verdade é que tudo que vem listado me chama atenção – os 10 títulos mais alugados no Netflix, os 10 alimentos superpoderosos, os 10 qualquer coisa me faz entregar o clique como uma marionete. Dá uma raiva… Uma amiga me disse que listas ímpares são mais eficientes, acho que o Listverse não sabe disso, porque não sai do 10.

Nessa tal lista das condições incuráveis está Aids, câncer, hepatitis C, cegueira, herpes, e… pasmem, em primeiríssimo lugar: o envelhecimento. Parei para pensar sobre isso e realmente não sei se sou a única a achar a situação um tanto bizarra. Será o envelhecimento por si só considerado uma doença? Apesar da minha relação com marcas de expressão no espelho ser bem ambígua, não consigo ver o envelhecimento como uma patologia a ser curada.

Estou lendo um livro (“Confissões do Crematório” – falarei sobre ele em breve) que cita uma frase de Kafka “o sentido da vida é que ela termina”. Para a vida terminar, ela precisa seguir um percurso, uma parábola que sobe e desce no gráfico. O antinatural seria uma vida terminar sem esse caminho, de uma hora para outra, sem o desenrolar de um fim. É a morte trágica de jovens em acidentes de trânsito, suicídios – as mortes consideradas “antes da hora”.

O espaço lento do término, o capítulo final que considera uma “morte iminente” é um presente pouco aproveitado da existência humana. Nele poderíamos planejar nossa morte, nos despedir daqueles que amamos, vivenciar a fase final como uma última e rica experiência da vida e desse campo nos retirarmos com dignidade.

Ah, mas é muito ruim ser velho… preso o dia inteiro numa cadeira na frente da TV, você me diz. É ruim envelhecer nas condições atuais em como a sociedade está estruturada. Tanto em valores quanto em infra. Deixamos os velhos de escanteio há algum tempo. Não há possibilidades de mobilização física para os velhos. Nem no transporte público, nem nas calçadas. Ele não vai se sentir seguro em caminhar por aí e por isso não cogita sair de casa. Quer evitar um acidente ou um xingamento, um olhar torto para “essa lerdeza” que ainda está acabando de atravessar a rua quando o sinal fica verde.

Lembro do geriatra Paulo Camiz me contar sobre seu estágio no Japão. Ele disse ter visto velhos andando por todos os cantos, pois lá eles são respeitados, podem continuar a ter funções, sentirem-se úteis e mais confiantes para existir: “a forma como o motorista de ônibus pisa no freio no Japão é completamente diferente da daqui”, disse. E ainda comentou que o maior medo dos velhos não é a morte, mas sim a solidão.

Até a palavra velhos é pouco usada no Brasil. O politicamente correto é falar em idosos, terceira idade, os mais experientes, enfim. Se jovens são chamados de jovens, porque velhos não podem ser chamados de velhos?

E se a velhice é uma fase muito solitária, somos nós que a fazemos assim. Antigamente não era. As pessoas morriam dentro de casa, em um evento testemunhado por todos. Os próprios velórios eram domiciliares e duravam horas. Não havia essa pressa para descartar um morto. Acredita-se que o corpo morto transmite doenças, mas não é verdade (apenas em casos raros de doenças contagiosas). Essa pressa em se livrar de um cadáver é cultural. Hoje os velhos estão alinhados em hospitais por motivos práticos. Ganharam um ambiente esterilizado, limpo e cheiroso só para eles. Ainda há o receio de se encostar numa mão moribunda, como se a velhice não fosse só uma doença, ela fosse uma doença contagiosa.

Não me parece que é a velhice que deva ser curada, mas sim o pavor que sentimos dela e a forma grotesca como nos comportamos diante da tendência mundial do envelhecimento das sociedades, achando que o que não vemos, não nos atinge.

Quer saber mais sobre o assunto? Recomendo: Por quantos anos deveríamos viver, e a categoria “envelhecimento” do blog.

Atualização em 5 de agosto:

Recebi um e-mail de João Manoel Pedroso e achei pertinente coloca-lo como complemento ao post. João Manoel é médico e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ele é doutor em cardiologia e, atualmente, chefe do serviço de cardiologia do hospital universitário Clementino Fraga filho – UFRJ. Segue seus comentários ao post.

“Houve uma mudança na estrutura e padrão da famílias no Brasil e isso também ocorreu em muitos países. No passado, os filhos ficavam cuidando dos velhos e, em algumas culturas, um filho tinha até esta missão. A estrutura familiar estava ajustada para cuidar e respeitar aquele que tinha maior experiência. Com o passar dos anos, criou-se a ideia de que sair de casa cedo e romper os laços familiares é a melhor ideia de sucesso e liberdade. De fato, não sei como isto irá evolui mas os jovens estão acabando como as suas vidas na velhice… Outro ponto, é o atual padrão de beleza em que a ideia de ser jovem para sempre está cada vez mais forte. Quem sabe até a ideia de imortalidade passou a prevalecer. Muitas pessoas seguem infelizes fazendo um monte de dietas, tratamentos de beleza ou até cirurgias em busca de algo impossível, assim ficando cada vez mais distantes do que seria o seu Adonis de ser (temos até uma síndrome de Adonis descrita –  Vigorexia). Do mesmo modo, se distanciar do velho é uma forma de manter-se distante da constatação do proprio envelhecimento. Também é revelante observar que a expectativa de vida aumenta rapidamente. No Brasil, estamos em 74.5 anos e em países desenvolvidos acima de 82 anos. A pirâmide etária no Brasil se trasnformará brutalmente em 20 anos. Ou seja, teremos um pais bem mais velho e isso tem um monte de impactos, inclusive econômicos. Por exemplo, terapias para garantir mais 3 meses de vida com quiomerápicos de ultima geração precisarão ser discutidas se são custo-efetivas. Ou, seja, o sistema de saúde também se  tornará inviável se o uso desenfreado pela alta complexidade persistir e ao mesmo tempo não entendermos que investimentos em mobilidade, cuidados paliativos e visão mais humanista da vida e da sociedade precisa ser feita. Infelizmente este tipo de ação, temo eu, só ocorrerá quando o limite orçamentário chegar, e na saúde, creio eu, já chegou há alguns tempo…. mas a maioria ainda não percebeu”.

Vídeo: envelhecimento do Brasil:

https://www.youtube.com/watch?time_continue=17&v=PoxndG1Yyd0

 

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A um querido moribundo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/07/28/a-um-querido-moribundo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/07/28/a-um-querido-moribundo/#respond Thu, 28 Jul 2016 11:38:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1030 Imagino que haja pouco movimento no seu quarto da UTI. Além de um bipe em ritmo, bipe, bipe, bipe, marcando um compasso melancólico. O som das máquinas pode lembrar a introdução de um tango sofrido.  Todo tango é uma despedida. Como esse bipe do quarto que pode ser sua morada final. Tenho a impressão de que você vê música em tudo, não por já ter te ouvido cantar (na verdade, nunca ouvi), mas pelo seu talento com a estética das flores e onde consolidou uma profissão. Conhecido por todos como o jardineiro seu Bruno.

Seu corpo alto e magro de 80 anos está estendido numa cama robótica, vestido com um avental verde. Você detestaria essa roupa se pudesse ver. Mas não pode porque teve um AVC hemorrágico e ainda não acordou. É provável que não acorde mais. Os médicos falaram para sua família ter pouca esperança, o estado que era crítico agora foi piorado por outros problemas e você foi de grave para gravíssimo.

Quem passa despercebido pelo seu quarto não imagina quem está ali na inércia de um fim. Suponho um residente, um jovem médico atualizando prontuários, esperando a hora de anotar um atestado de óbito. Eu chegaria ao lado dele e falaria: não se engane menino, este aí é o seu Bruno, um touro-homem de se admirar. Quase um minotauro numa versão fofa. Ontem mesmo estava em cima de casa, trocando telhas. Antes de ontem estava no Ceagesp comprando flores. Suas melhores amigas são as flores. Ele chega no serviço às 6 da manhã para acariciar as plantas junto ao primeiro toque do sol. Ele fala engraçado, todo mundo sabia. Porque ele é polonês. Com 1.80m, seu Bruno se enfia na terra de calça social, cinto, camisa e chapéu na cabeça. Minha mãe o chama de Gepeto. Mãos e pés engrossados pelo tempo de um jardineiro por escolha.

E eu alertaria o residente: não se apresse em descartá-lo para rodar o leito, porque seu Bruno é agarrado à vida. Nascido como Bronislau e apelidado de Bruno, ele é daquela geração que veio parar no Brasil fugindo de uma guerra. É um sobrevivente. Cicatrizes não faltam, nem por dentro nem por fora. Já enterrou um filho, morto por dengue. E dá uma em quem o desafie. Foi jurado de morte no seu bairro por ter reagido a um assalto. Um moleque pediu para o velho passar a carteira e ganhou uma porrada. O corpo duro e forte, de passos pesados e palavras dóceis – não perde a oportunidade de um elogio à mulherada. Fala o que pensa. Se pudesse falar agora, menino, te diria para deixá-lo sair porque tem que trabalhar.

Pessoas como seu Bruno são cada vez mais raras, eu diria ao residente. São pessoas que amam o que fazem. Não esperam para viver enquanto não estão trabalhando. Fazem do hobbie, seu ofício. Ao invés de se dedicar ao que amam somente nas horas vagas, se ocupam daquilo que amam. São adultos-crianças, brincam consigo mesmas, se permitem o prazer da vida. Fazem todo um universo surgir de dentro de um grão de terra. Porque o universo todo está nelas. Não é egocentrismo, é só a consciência de que somos natureza.

E eu diria para o residente, não se iluda, pois esse velhinho tem uma história de vida incrível. Como todos os velhinhos pacientes desse hospital, eles enganam a todos que passam. Vemos trapos de gente se desmilinguindo, enquanto são, na verdade, majestades. Grandes ondas de um oceano agitado, cansadas da viagem até a praia, prestes a passar do estado carne e osso para o estado imagem e lembrança. Como a imagem que tenho de você, ajoelhado aos pés da árvore, na alvorada. Fazendo carinho para ela “crescer melhor”. Viramos contos, eternizados nas lendas de família, uma fotografia fincada no coração, na memória de quem fica.

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