Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/nao-foi-troca-de-tiros-kathlen-foi-assassinada/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/nao-foi-troca-de-tiros-kathlen-foi-assassinada/#respond Wed, 09 Jun 2021 19:06:03 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/kahtlen-romeu-instagram-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2410 Infelizmente, a política mais atual do Brasil continua sendo a política da morte. O alvo? Corpos pretos, periféricos e favelados.

Há tempos não consigo nem processar os tantos lutos que nos atravessam, pois logo vem mais um, e outro e outro. Não que isso seja novo. Sabemos que andar na rua e correr o risco de morrer não vem de hoje.

Mas eu sinto que há uma crueldade sem disfarce que faz questão de sublinhar a que veio. Não consigo escrever sobre Kathlen de Oliveira Romeu sem me imaginar ou imaginar outras mulheres iguais a mim. 

Kathlen tinha apenas 24 anos de idade. Era designer de interiores e modelo. Estava grávida de 14 semanas e suas postagens nas redes sociais mostram uma mulher feliz na construção de uma família preta, à espera de sua primeira criança. Cheia de planos, e vida. Literalmente, carregando uma vida no ventre.

Caminhava ao encontro de sua tia e foi assassinada em uma terça-feira à luz do dia na Comunidade do Lins, no Rio de Janeiro. Não, não dá pra ser feliz e caminhar tranquilamente na favela onde você nasceu.

Sua morte é um retrato cruel e doloroso do que significa ser uma mulher negra no Brasil hoje. Demorei muito para escrever esse texto. Faz um mês  que narrei sobre a chacina de Jacarezinho. Me senti num interminável déjà-vu, repetindo as mesmas palavras sobre como o racismo mata pessoas que vêm de onde eu venho, como a necropolítica rege o cotidiano de favelas e periferias.

Já repararam como as balas ditas “perdidas” sempre encontram um alvo? Desde 2017, 15 gestantes foram baleadas e oito morreram no Rio de Janeiro, apontam dados da ONG Fogo Cruzado.

Isso se chama racismo estrutural e integra as estratégias de genocídio em curso da população negra. De novo: necropolítica, política de morte desenhada pelo Estado, onde ele escolhe quem vai viver e quem pode ser descartável. Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada.

Não há “meus sentimentos” capaz de exprimir a dor e a fúria de ver mais um corpo negro tombando. Não há cartilha, empatia capaz de abraçar a dor,  a palavra ainda não dá conta da barbárie. A morte chegou antes da vida, matando não só a mãe, mas a possibilidade de futuro de uma família preta que se constituía.

No período da escravidão, as mulheres negras não podiam viver a maternidade. Elas eram separadas de seus filhos. Elas não podiam ter uma família. Para uma mulher negra, a possibilidade de se relacionar afetivamente e viver sua maternidade é uma forma de existência. É o mais alto da resistência.

Por isso, hoje, eu não tenho muito o que dizer. Não aguento mais me repetir.

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Chacina do Jacarezinho: ‘A gente não merece viver em um cenário de guerra’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/chacina-do-jacarezinho-a-gente-nao-merece-viver-em-um-cenario-de-guerra/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/chacina-do-jacarezinho-a-gente-nao-merece-viver-em-um-cenario-de-guerra/#respond Fri, 07 May 2021 02:31:23 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/chacina-rio-de-janeiro-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2368 O dia 6 de maio ficará registrado na história do Brasil como uma quinta-feira sangrenta. Como se não bastasse todas as dores e dificuldades que a pandemia evidencia, os moradores de Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), amanheceram sob intenso tiroteio, invasão às suas casas, celulares confiscados e a morte de pelo menos 25 pessoas.

Nas redes sociais, fotos e vídeos denunciam que aquilo que o Estado do Rio de Janeiro chamou de operação foi uma verdadeira chacina. Além das 25 mortes registradas oficialmente, a população acredita que houve ainda outros homicídios.

O advogado Joel Luiz, nascido, crescido e militante de Direitos Humanos em Jacarezinho, caminhou com dor pelas ruas de sua infância. “Andamos pelo Jacaré, entramos em quatro, cinco, seis casas, todas com a mesma dinâmica: casas arrombadas, tiros de execução […] O menino morreu sentado em uma cadeira. Ninguém troca tiro sentado em uma cadeira, isso é execução. Isso é barbárie”, afirmou o advogado em vídeo em sua conta no Instagram.

A ação da polícia durou mais de 9h. Foi a mais letal da história da polícia do Rio, segundo dados da ONG Fogo Cruzado. A operação foi realizada pela DPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), com o apoio da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais).

“Mataram 25 pessoas ou mais. Isso acabou com o tráfico de drogas? Isso vai acabar com o tráfico de drogas? A partir de amanhã não vai ter mais drogas sendo vendidas nas vielas do Jacarezinho porque 25 pessoas foram mortas?, questionou Joel.

Para o advogado, o que presenciou hoje deixa claro a inexistência da democracia. “Isso aqui não é democracia. Definitivamente, isso aqui não é a democracia que se fala nos livros, que a gente aprende na faculdade, que falam no Jornal Nacional […]. Isso aqui não é nada do que a gente pensa sobre o que é viver em sociedade”, disse.

“É muito cruel você passar na rua onde você brincou, onde sentou com os amigos, tomou cerveja, você viveu a vida e ver uma dezena de marcas de tiro na porta de um bar, na loja de cosméticos. Balas e balas no chão, cartuchos”, lamentou o advogado. “Ninguém merece isso. Não estamos aqui falando em nome de A, B ou C. Só falando que isso aqui é cenário de guerra e a gente não merece viver em um cenário de guerra. Não é justo você entrar em seu território e ver cenário de guerra. Ver casas arrombadas. Que Dia das Mães essas pessoas vão ter?”.

Em nota oficial , as organizações, coletivos e ONGs locais também mostraram sua indignação. “Em meio a uma pandemia que matou 410 mil pessoas, 45 mil só no Rio de Janeiro, ocorreu a operação mais letal da história do estado, sob a justificativa de proteger ‘os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e demais moradores que residem nessas comunidades”.

No perfil de Joel nas redes sociais, há diversos vídeos de moradores e moradoras contando suas versões sobre a história de hoje. A imagem que vai marcar essa quinta-feira é a das paredes e piso de salas, cozinhas e escadas respingado sangue. Não só uma, mas muitas delas, escancarando uma realidade que mata de muitas formas as favelas.

Em um vídeo, uma moradora guia a pessoa com a câmera e mostrando os pingos de sangue pela escada. No fim das escadas, o cômodo cheio de sangue. “Filma, filma”, a mulher pede, como em um pedido de socorro e também registro daquilo que não basta mais ser apenas verbalizado. São imagens muito duras e difíceis de ver e de aceitar em qualquer circunstância.

Uma delas é uma senhora negra, que pede para não mostrar o rosto. Sua voz narra o inenarrável, a dor e indignação de uma mãe querendo informações sobre o corpo de um filho:

“Eles  apontaram a arma para mim de fuzil no meu rosto dizendo que eu tinha que morrer, só porque eu fui falar com eles, fui perguntar onde o corpo do meu filho estava. Meu filho morreu hoje, eles chegaram atirando. Eles são umas pestes”, diz a senhora em vídeo que pode ser visto aqui.

A CIDADE DA POLÍCIA

Desde 2013, o bairro do Jacaré abriga a Cidade da Polícia, um espaço da Polícia Civil do Estado do RJ, que comporta 15 delegacias especializadas, onde estão cerca de 3 mil agentes. A comunidade vive a aflição de estar sempre muito perto dos policiais.

“De um lado você está na Cidade da Polícia e você atravessa a rua e está no Jacarezinho. Isso mostra um pouco da complexidade da dinâmica da cidade do Rio de Janeiro. Que é essa cidade repartida ao meio”.

Quem conta isso é Seimour Souza, coordenador do Lab Jaca e do NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem). Conhecedor dos desafios e potenciais da comunidade, hoje Seimour ouviu os mais dolorosos depoimentos da boca daqueles que ele convive diariamente no Nica ou nas entregas de cestas básicas diante da pandemia.

“A palavra que resume o dia de hoje é medo. Medo do que aconteceu, medo de denunciar. As pessoas não querem falar. Tiveram pessoas assassinadas dentro de suas próprias casas e não querem falar, não querem ser identificadas, conta.

“É algo inominável pra gente. No cotidiano e na gramática do genocídio que a gente vive isso é só mais uma peça no mosaico do extermínio da população negra”, afirma Seimour. “O mundo, o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro segue naturalizando isso como se fosse justificável em alguma medida o assassinato de 24 pessoas, 25 incluindo o policial.”

#CHACINADOJACAREZINHO

Por volta das 12h, a população saiu pelas vielas da comunidade pedindo justiça e, à noite, realizaram um tuitaço pedindo justiça com a hashtag #ChacinadoJacarezinho. “São as mulheres negras que choram a morte dos seus filhos. Feliz Dia das Mães pra quem?”, escreveu em um dos tweets o Instituto Marielle Franco.

Eliane Vieira, integrante do Coletivo Mães de Manguinhos, diz que “o braço armado do Estado não pode sair por aí assassinando as pessoas como se fossem seres supremos que decidem a vida e a morte”.

Moradora de Manguinhos, próximo ao local da chacina, Elaine conta que as pessoas estão apavoradas. “Por medo da madrugada e por saber que a qualquer momento tudo pode acontecer”, diz.

Ela conta que as Mães de Manguinhos e demais movimentos organizados do Rio estão cobrando dos respectivos órgãos uma resposta nesse momento. “Não é possível que uma chacina dessa ainda seja encarada como operação”>

“Exigimos explicações e questionamos: como o Estado pretende atuar no território depois dessa chacina? Como recuperar o trauma das milhares de pessoas que foram submetidas ao terror policial? Como os familiares das vítimas serão amparados? Quais os mecanismos institucionais de prevenção às ações como as que vivenciamos no dia de hoje? Esperamos respostas”, aponta também a nota oficial das organizações locais.

“Ser um militante negro contra o genocídio no Brasil faz com que a gente se questione não ‘se a gente vai ser assassinado, mas quando quando e como. Esse dilema que a gente tem que enfrentar”, diz Seimour .

ATO

Nesta sexta-feira (7) acontece ato às 17h da tarde, no G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, contra as violações ocorridas no Jacarezinho. O ato está sendo organizado pelas organizações locais: LAB Jaca, NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem), IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), Associação de moradores do Jacarezinho, Cafuné na Laje, G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, Jcré Facilitador, Jacaré Basquete e ONG Viva Jacarezinho. Clique aqui para mais informações.

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Marielle Franco: recordar sua morte é lutar por justiça https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/#respond Sat, 13 Mar 2021 23:10:45 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/marielle-franco-mario-vasconcellos-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2293 No dia 14 de março de 2018, eu voltava para casa de trem, quando abri o Whatsapp e em todos os grupos uma única mensagem: a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados.

Eu trazia o cansaço no corpo de quem atravessa todos os dias a cidade, rodeada de outros, sentados no chão ou correndo entre um vagão e outro para vender bala a um real. Na tela do celular, um rosto semelhante ao nosso –cabelo, olhos, boca, cor– havia entrado para a triste estatística de um país onde há um genocídio em curso há mais de 400 anos.

Que a morte nos ronda, isso não é novidade. O Atlas da Violência 2020 mostra que, em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil. A cada duas horas uma mulher perdeu a vida , 68% eram negras. 

Mas a morte de Marielle trouxe um recado muito certeiro a uma ala da sociedade à qual me vejo parte. Nos últimos anos, atravessamos algumas pontes. Chegamos ao ensino superior, graças à luta incansável do movimento negro e demais movimentos sociais no Brasil, resultando em políticas das quais me beneficiei: cotas raciais, de escola pública e o Prouni (Programa Universidade para Todos).

Também aprendemos a contar nossas próprias histórias e a escrever leis. Ressignificamos os feminismos a partir de vivências pretas e periféricas e entendemos que sonhar novas geografias também era direito nosso, assim como a arte, a cultura e a diversão.

Mas nada continuava fácil. Aliás, nunca foi. No Rio de Janeiro de 2018, o cenário era bélico, com intervenção federal maquiada de auxílio na segurança pública. No cenário nacional, estávamos literalmente dentro de um golpe que havia derrubado a primeira presidenta do país. Dali a alguns meses, aconteceria as famigeradas eleições de 2018. Entre jogos políticos e fake news, um povo sem esperança.

Eu cheguei em casa atordoada. Não consegui dormir naquele dia 14. No outro, a minha tarefa no trabalho era postar nas redes sociais os vídeos, fotos e homenagens para Marielle. Era uma dor, mas também um abraço entender seu tamanho por todo o Brasil e também no mundo. No fim da tarde, fui para a Av. Paulista, em São Paulo, onde uma multidão se reuniu.

O ato daquela noite era muito mais que apenas uma manifestação. Era um funeral coletivo. Um choro e um abraço conjunto pela morte de alguém que representava um pouco do que a gente estava tentando ser.

Ao encontrar outras mulheres, a gente não dizia nada, só se abraçava. Havia um lamento profundo e sem adjetivos. Essa tristeza não foi só minha. Fiz uma pergunta nas minhas redes sociais essa semana, e algumas amigas autorizaram que eu compartilhasse com vocês os sentimentos que também as marcaram:

Estávamos hospedados no Rio Vermelho, Salvador (BA), para participar no Fórum Social Mundial. Um grupo imenso estava exausto esperando a janta. Uma pessoa da mesa do lado de fora começou a chorar muito sentida. Fui olhar no celular e li bem devagar em voz alta: ‘uma vereadora do Rio morreu. Uma tal de Marielle’. As pessoas da mesa que conheciam Marielle ficaram mal. As pessoas estavam chorando na rua, escoradas nas paredes, na mureta de retenção do mar. Eu não sabia quem era Marielle. Acordei no outro dia chorando. Eu não conhecia nada, mas no dia seguinte ela era uma mulher preta e lésbica, igual eu.” (Gisele Brito)

Lembro de estar em casa sozinha, abrir o Facebook e ler a notícia e começar a chorar. Lembro das paredes encolherem e eu sentir que estava sem esperança para o futuro. Na manifestação eu me senti menos só, com mais possibilidades de pensar alternativas. Senti muita vergonha por não conhecer o trabalho da Marielle antes dela ser assassinada, e de firmar o compromisso de conhecer as mulheres que estavam lutando enquanto vivas, enquanto produtoras de política e conhecimento.” (Cecília Garcia)

“Entrei num surto de depressão muito fundo, a ponto de ser segurada enquanto batia minha cabeça na parede gritando que queria morrer. Comecei a me tratar com antidepressivo. Era a junção de tudo que essa morte significa: uma mulher negra, uma mulher que ama outra mulher, uma mulher de esquerda, uma mulher periférica, uma mulher num cargo público.”  (preferiu não se identificar).

ato marielle franco
Ato na Avenida Paulista em homenagem a Marielle Franco/Renato Schincariol/AFP

MEMÓRIA COLETIVA

Me encontrar com as memórias dessas mulheres é um jeito de compreender e ressignificar a morte de Marielle, assim como somar forças contra aquilo que nos afeta, como o genocídio da população negra, a violência estatal contra nossos corpos e a desigualdade social. 

“Nesse cenário que vivemos, onde temos discursos de ódio e intolerância, o trabalho de memória é de extrema relevância, porque permite que esses grupos possam denunciar as violências que sofrem. A memória coletiva funciona como uma denúncia”, é o que explica Soraia Ansara, docente da USP e doutora em Psicologia Social.

Sendo as memórias coletivas as vivências que recordamos junto às outras pessoas, no momento que recordamos alguém como Marielle, reconhecemos o crime político e garantimos que sua trajetória não seja esquecida.

“Recordar isso potencializa a luta contra o genocídio. E a favor dos Direitos Humanos. Tomar as bandeiras que ela defendia — da população negra, periférica, das mulheres, da população LGBTQI+ — tudo isso é potencializado quando é recordado”, explica Soraia.

“Chegando em casa, dei uma olhada no celular, e a primeira imagem foi a de Marielle sorrindo e a notícia. Não consegui abrir a porta, fiquei parada, imobilizada, as luzes se apagaram. Lembrei de todas as mulheres que estão ou estavam em luta. Queria estar com elas. Chorei. Era um choro de medo e revolta. Naquele dia, não liguei a TV, me desconectei da internet e fiquei com o sorriso de Marielle por muito tempo no meu olhar, na cabeça.” (Carina Zacarias)

“Lembro que estava nos meus primeiros meses em Dublin, Irlanda, no 7º mês pra ser exata. Fiquei muito chocada e triste com a notícia. Lembro que fui tomar café com uma amiga e falamos sobre a importância de fortalecermos umas às outras, mesmo na distância, e do poder curativo da escuta” (Thaís Santana)

“Estava acompanhando a mesa mediada por Marielle, morava sozinha em Buenos Aires e fui tomar banho. Quando me conectei de novo, soube da notícia e me esvaziei.” (Ariane Aboboreira)

“Um sentimento de desesperança e a pergunta de como seria dali pra frente, quando calam a voz de alguém como Marielle. A semana e o mês seguinte foram muito angustiantes.” (Jaqueline Barreto)

Como disse Thaís Santana no relato acima, a escuta tem poder curativo. A memória também. Por isso, é tão importante falar dos nossos mortos e manter o legado daquilo que realizaram em vida presentes. Marielle não vive mais. Não fisicamente. Mas suas ideias e ideais estão agora impressos em leis, escolas, movimentos, nomes de ruas,  praças e o Instituto Marielle Franco reivindica também uma estátua para preservar seu legado.

O Instituto Marielle Franco lançou a campanha #MarçoporMarielleeAnderson para continuar cobrando justiça por suas mortes. Em 12 de março de 2019, aconteceu a prisão de Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, o primeiro como executor e o segundo como motorista do carro. A organização produziu um dossiê sobre os três anos de investigações em torno do assassinato, em uma linha do tempo contando os fatos e uma lista com 14 perguntas sobre o caso.

Rememorar a morte de Marielle é relembrar que esse crime não está congelado no passado. Ainda não temos uma resposta à pergunta ‘Quem mandou matar Marielle?’ e, por isso, ele está acontecendo aqui e agora.

Leia também:
Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural?

O luto como política de resiliência
Precisamos falar sobre o luto das mulheres negras 

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O luto como política de resiliência https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/27/o-luto-como-politica-de-resiliencia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/27/o-luto-como-politica-de-resiliencia/#respond Sun, 27 Dec 2020 13:00:43 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/cemiterio-vila-formosa-creditos-leubritto-agencia-mural.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2192 por Beatriz Prates e Julia Ferry*

O clássico da nouvelle vague francesa, “Hiroshima Meu Amor”, ressignificou através do olhar cinematográfico as noções de memória individual e coletiva. Com uma construção narrativa que transita entre o documentário e a ficção, o filme de Alain Resnais registra o movimento de uma câmera que percorre museus, fotografias e documentos que delatam a devastação da bomba atômica, acompanhada por um encontro entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês.

Em uma das cenas mais paradigmáticas do longa, os corpos dos amantes, entrelaçados na cama, aparecem envoltos por poeira nuclear. Os diálogos dos personagens são infalivelmente interpelados pela persistência da memória. Para ele, memórias da guerra e suas sequelas, para ela, a insistente recordação de tragédias pessoais. 

“Você não viu nada em Hiroshima” é o que diz o arquiteto à atriz, ao que ela lhe responde: “Eu vi tudo”. Ela descreve o que pôde ver nesses registros que ficaram, ao que ele reforça que ela não viu nada, pois não se tratava da verdade do vivido, mas de registros restantes do trauma. Esse jogo discursivo entre o ver e o não ver, o vivido e o imaginado, a memória e o esquecimento e a presença e a ausência, são confrontados e desmontados no diálogo entre os dois amantes.

Esse encontro entre anônimos, ambos marcados pelas suas perdas pessoais e históricas, alicerçado na memória coletiva dos acontecimentos de Hiroshima, realiza-se através da constatação da condição de vulnerabilidade que marca suas existências. 

Há presente, antes de uma hierarquização do sofrimento e da dor, uma partilha da perda, em que cada um tenta endereçar e dizer ao outro a sua experiência singular, atravessada pela catástrofe de dimensão política, que possibilita o encontro de alteridades.

O filme, nesse sentido, inventa uma linguagem para retratar a perda, um recurso que se faz urgente e pertinente para o contemporâneo, especialmente neste ano disruptivo decorrente da pandemia da Covid-19. A grave crise sanitária e econômica atual nos reposiciona irremediavelmente frente a desassossegos humanos fundamentais.

Luto como elaboração da perda

Como falar de uma perda? Como realizar o luto? Questões ontológicas que tocam não só a vida de cada uma das pessoas, mas se estendem como enigma, referência e preocupação da cultura, do social e do político. Afinal, a experiência da perda se faz presente na realidade de todo o planeta, em diferentes proporções e formas de afecção.

Muito se tem falado e escrito sobre o luto como um processo imprescindível e necessário na fratura do contemporâneo. Há a reivindicação e apelo para que possamos inventar, enquanto coletivo, formas sociais de elaboração e simbolização da perda, sejam das que nos tocam singular e intimamente, sejam as que envolvem aqueles que desconhecemos e nos são distantes.

A reivindicação do luto como um recurso político e universal, desmonta formas de organização das subjetividades e da vida coletiva estruturantes da política do cotidiano. Esta reivindicatória se estende em assumir os laços substancialmente relacionais que nos envolvem, em que somos todos condicionados e atravessados pela perda, tanto de si mesmo, como dos outros. O luto como bem comum e compartilhável assume uma valorização e consideração pelas mortes, ao mesmo tempo em que denuncia as desigualdades de enquadramentos que condicionam o conjunto das vidas.

A desumanização política de corpos

Como argumenta a filósofa contemporânea Judith Butler, as vidas que não são passíveis de serem enlutadas são consequentes das formas de violência que organizam as sociedades capitalistas neoliberais, em que segmentam os sujeitos entre corpos que pesam e corpos que importam.

A desumanização política de corpos e a obstaculização do luto, portanto, não têm início com a pandemia, sendo antes produtos da forma mercadoria que marca a sociabilidade capitalista. No Brasil, agravado pela condição de país periférico e dependente, essa constatação é amplamente verificável. Em 2019, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou indicadores sobre saúde no planeta e declarou que o país ostentava o maior número absoluto de assassinatos no mundo.

E segundo o último Atlas da Violência, que analisa dados divulgados pelo Departamento de Informática do SUS – DATASUS, uma das principais expressões das desigualdades raciais no Brasil é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra.

Enquanto jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento ao longo dos anos, entre brancos os índices de mortalidade são muito menores (e em muitos casos apresentam redução). Ainda de acordo com as informações do Atlas, em 2018, a cada duas horas uma mulher foi assassinada no Brasil, totalizando 4.519 vítimas, com preponderância de vítimas pretas ou pardas.

Parte significativa dessas mortes decorre da própria forma de organização do Estado. As desigualdades nos indicadores de acesso a serviços de saúde e assistência social são abissais e aprofundaram-se com a pandemia, abreviando de maneira perene inúmeras vidas. Além disso, a lógica de hipertrofia da punição e o encarceramento em massa são responsáveis pelas mortes diárias de incontáveis jovens periféricos e policiais. 

O penúltimo Anuário de Segurança Pública, divulgado em 2019, destaca que, naquele período, enquanto o número de assassinatos no Brasil caiu pela primeira vez em três anos, o número de pessoas mortas pela polícia bateu recorde, chegando a 6.220 casos, o que significa dizer que 1 em cada 10 mortes violentas no país foi causada por um policial. A título de comparação, a polícia dos Estados Unidos da América, que foi alvo de protestos recentes em cidades de todo o mundo dado o caráter letal e racializado que também marca sua atuação, matou 17 vezes menos do que a polícia brasileira em 2019.

Interpretar essa seletividade e a aparente contradição que reside no fato dessas mortes serem operadas pelo Estado (e se justificarem juridicamente) demanda uma compreensão a respeito de outra categoria, a assim denominada forma jurídica. 

Isso porque o direito é uma das formas engendradas pela sociedade capitalista para organizar e garantir a produção e reprodução da sua vida material em relações de produção (capital e trabalho). E dado que a propriedade escrava e o tráfico negreiro foram o eixo da economia que se montou no Brasil, a arquitetura de formação do nosso arcabouço jurídico relacionou-se diretamente com essa forma de organização do trabalho e suas nefastas consequências. 

Aliás, chama a atenção que no contexto de construção e legitimação do Estado-Nação, a codificação do poder punitivo estatal tenha sido priorizada, resultando na elaboração de um Código Criminal em 1830, antes mesmo do Código Comercial e da Lei de Terras.

Ou seja, o desenvolvimento desse instrumento foi indispensável para assegurar estabilidade interna e o controle da ordem pública, operando, até os dias atuais, como garantidor da distribuição desigual (e, repise-se, legal) da riqueza e da execução de negócios e relações contratuais.

É preciso insistir no luto

Por isso, a construção de uma política baseada no luto como recurso primordial da vida social precisa partir também de uma constatação a respeito das limitações do direito e dos operadores jurídicos. Nesse sentido, pertinente questionar e problematizar a crença de que as medidas institucionais e jurídicas existentes são capazes de antecipar e resolver na totalidade a garantia da vida e a reparação pela perda.

Em novembro desse ano, pouco após o dia dos finados, esse país que mata cidadãs e cidadãos em proporções maiores que as de países em guerra impôs seu destino trágico às histórias de João Alberto, Emily e Rebecca. Três vidas e trajetórias diferentes, violentamente entrelaçadas pelos crimes de raça e classe que as acometeram. 

João Alberto foi assassinado pelos seguranças da rede de supermercados francesa Carrefour, e Emily e Rebecca vitimadas pelo estado enquanto brincavam na porta de casa no Rio de Janeiro. Nesse ano em que o cotidiano teve sua programação interrompida pela pandemia, o genocídio da população negra segue aflitivamente desestruturando vidas no Brasil.

Escrever e contar sobre essas mortes é, de algum modo, assumir como verdade o fracasso em dizê-las. Isso porque diante do absurdo, do traumático e do inconsolável, a linguagem sempre fracassa.

Como lidar com essas perdas sem evocar uma enunciação melodramática, condenatória ou meramente denuncista? Como tornar a dor, a história e a emoção, como apontou Didi-Huberman, nossos bens comuns? Como contaremos coletivamente essas histórias, essas vidas, essas mortes?

Como mostra a própria Psicanálise, o luto, muito ao contrário de um processo natural e inevitável que sucederia uma perda, mais envolve um movimento de simbolização complexo que implica o sujeito e o coletivo em uma invenção e reinvenção da linguagem.

É uma necessidade e urgência do presente insistirmos em contar sobre essas vidas, na insistência de que o afeto aflitivo e inconsolável que suas mortes evocam mobilizem as subjetividades, a política e a realidade.

Torna-se urgente transformar o luto em recurso político, como colocou Judith Butler, pois isto implicaria em criarmos laços sociais a partir do senso da perda, transformando as relações de alteridade e nossas sensibilidades. Pois, ainda com Butler, se há uma verdade sobre o luto, é que jamais sairemos os mesmos neste processo inevitavelmente transformador. Como demonstrou Freud, o luto, ao contrário da paralisia melancólica, exige um movimento, uma atividade dos sujeitos, uma aposta na linguagem, embora sempre precária, mas resiliente.

Se o historiador Didi-Huberman expressou que diante do inimaginável, imaginar é um compromisso ético e político, fica como desafio e necessidade, diante destas perdas, nos implicarmos coletivamente com suas memórias, reivindicar justiça, dizer sobre o indizível, insistir no luto, apesar de tudo.

 

*Beatriz de Santana Prates – Graduada em Direito, especialista em Criminologia e Direito Penal pelo ICPC e mestranda no Programa de Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Julia Ferry – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP.

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Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/vamos-falar-sobre-o-privilegio-branco-de-morrer-de-morte-natural/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/vamos-falar-sobre-o-privilegio-branco-de-morrer-de-morte-natural/#respond Tue, 15 Dec 2020 00:29:20 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/parem-de-nos-matar-creditos-luna-costa-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2182 Eu poderia iniciar este texto dizendo que faz dez dias que as primas Emily Victória da Silva e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos foram assassinadas na porta de casa, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro (RJ). 

Ou pouco mais de um ano do massacre de Paraisópolis (SP), onde 9 jovens foram mortos por estarem se divertindo no espaço público.

Ou quase um mês do assassinato em público de João Alberto Freitas, em um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre (RS). Mais de mil dias que não temos respostas de quem matou, quem mandou matar Marielle Franco.

Ou algumas horas da violenta morte de…

A cada 23 minutos uma pessoa negra é morta no Brasil. Antes de você terminar esse texto, pode ser que mais uma mulher ou homem negro seja morto em algum canto do nosso país.

Dói. Chega a doer tanto que, muitas vezes, paralisa. Faz mais de duas semanas que estou tentando escrever esse texto, mas a palavra faltou, a palavra se dissipa toda vez que não dá conta da realidade. Mesmo escrevendo sobre o tema recorrentemente, nada disso é parte do ciclo natural da vida. Que sejam dados nomes aos bois. Parafraseando Chico Science, o Estado é racista e mata gente inocente.

Muitas vezes me pergunto sobre o papel de minha escrita no mundo, enquanto a cada palavra mais um de nós cai. A frustração bate forte. Recordo que para eu falar sobre isso hoje, muita gente veio antes de mim (Luiz Gama, Antonieta Barros, Almerinda Farias Gama) e tantos outros que, em seu tempo, ou também neste agora utilizam suas canetas para denunciar o racismo estrutural. Prossigo.

‘Enquanto a gente morre de bala’

Diante da morte de João Alberto entrei em contato com um texto de Tatiana Nascimento. A palavreira, doutora em estudos da tradução e brasiliense o escreveu em agosto, diante do alvejamento de Jacob Black por policiais nos Estados Unidos. “O direito à morte natural é um privilégio branco” é o verso-título do poema que se segue:

enquanto a gente morre de bala
y c diz que morre de dó
enquanto a gente morre de fome
y vc diz que morre de pena
enquanto a gente morre de raiva
y você diz que morre de culpa

mas não morre, não,
né, vossa mercê?
de soco
de susto
de medo
de sua pele

alva; que o alvo
do ódio letal, até na
boca-tua piedade blazê,

é
todo
mundo
que não
parece gente

feito o sinhô acha

que gente deva de ser.

#paremdenosmatar

O poema materializou o hiato que vejo entre mortes brancas e negras e que, tantas vezes, não dou conta de traduzir. “essa disparidade entre as vidas que são tratadas como importantes (brancas) y as que são dizimáveis (racializadas como negras, indígenas) é o ponto de percepção pra escrita desse poema, mas também pra noção de que o maior privilégio branco desfrutável quase incontestavelmente é a prerrogativa de humanidade ser branca, remeter a um sujeito branco”, explica a palavreira.

Tatiana faz questão de manter seus dizeres em caixa baixa, imprimindo na escrita a individualidade que se perde em um mundo que exige de nós, negros e negras, um único padrão. “a colonialidade é uma máquina constante atuando na produção de valores de vida e valores de morte hierarquicamente distribuídos por raça/cor/etnia”, diz.

No Ensaio “racismo visual / sadismo racial: quando (?) nossas mortes importam” (n-1, 2020), a escritora analisa como a produção imagética audiovisual, a mesma que nutre imaginários, senso comum e pedagogias sobre o viver, pode acabar se utilizando da banalização das mortes para sustentar um moralismo antirracista da própria branquitude.

“nossas mortes são oferecidas em sacrifício pra que as consciências brancas antirracistas sejam ativadas. e se isso não é o sadismo racial colonial com requintes, é o quê?”, questiona.

Segundo o Atlas da Violência 2020, 75,7% das vítimas de homicídios são pretas e pardas. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%. Segundo a ONG Rio da Paz, 12 crianças foram mortas por armas de fogo no estado do Rio de Janeiro em 2020.

Para Tatiana, a violência pode ser encarada como a metodologia de estruturação do racismo, mas que muitas vezes acontece de modo imperceptível e até banal, já que a maioria da população foi acostumada a conviver com a morte negra estampada estereotipadamente e de forma sensacionalista na televisão.

“mesmo que a alta frequência de assassinatos de jovens negros no brasil seja desesperadora pra nós, e pouco discutida criticamente, ela é transparente no que abunda: as pessoas foram acostumadas pelo “jornalismo policial” a almoçar assistindo um desfile de corpos negros mortos na tela de tv. mortes “normalizadas” e tratadas como bem público alimentam a sensação de segurança do ‘cidadão de bem'”, pontua a palavreira.

Ato Vidas Negras Importam/
Ato Vidas Negras Importam/Junho de 2020 (SP)/ Semayat Oliveira/NMP

Necropolítica: a política da morte 

Mas por que essas mortes são normalizadas? Ao longo de 2020, me deparei muitas vezes com a palavra necropolítica ou política da morte. Eu tinha uma vaga ideia do que poderia significar, mas não compreendia muito bem como aplicá-la. Cansa ter que aprender tantos conceitos para descrever aquilo que se vive na prática, ao atravessar a rua ou entrar no supermercado, mas é preciso aprofundar o assunto para debatê-lo de frente. Não apenas entre nós, alvo certeiro e cansado dessa estrutura racista, mas também a branquitude. 

O termo foi criado por Achille Mbembe, filósofo africano de Camarões, negro, historiador e teórico político que se debruça sobre isso no ensaio Necropolítica. “Mbembe diz que necropolítica é uma política da morte adaptada pelo Estado. É um fenômeno, onde o Estado vai escolher aqueles corpos que são descartáveis ou não são descartáveis. Aquelas pessoas que o Estado mata ou deixa morrer”, contextualiza a advogada, mestre e doutora em Direito pela USP, Allyne Andrade

Exemplo disso é quando o Estado deixa de construir uma política de prevenção às populações negras e pobres diante da pandemia de Covid-19. A ONG Instituto Polis divulgou um levantamento com dados de 1 de março a 31 de julho que apontam que homens negros foram os que mais morreram por Covid-19.

A necropolítica opera também quando o Estado não regulamenta normas ambientais, não impedindo que garimpeiros, grandes empresas e  grileiros avancem sobre o território indígena, levando doenças e a contaminação da água, está permitindo que a morte seja levada para povos indígenas.

Segundo a especialista, o corpo negro é visto, muitas vezes, como um corpo criminoso, em especial os homens negros. “A polícia assassina pessoas comuns porque acha que elas são perigosas e a gente já viu pessoas mortas segurando guarda-chuva, andando na sua própria moto ou carro. Nós temos uma polícia militarizada que está em constante guerra. Quem são os inimigos? Supostamente, o inimigo [para eles] seria o tráfico de drogas. Mas a gente vê que os inimigos são os corpos negros, periféricos e subalternaizados”.

‘A cor da violência policial: a bala não erra o alvo’, novo relatório da Rede de Observatório da Segurança, mostra o retrato da dinâmica racista da letalidade brasileira em diferentes estados brasileiros:  97% dos mortos pela polícia na Bahia são negros; Ceará não notifica a cor dos mortos em 77% dos casos; Nove em cada dez mortos pela polícia são negros em Pernambuco; 51% da população do RJ é negra, mas entre os mortos pela polícia negros são 86% e São Paulo vê aumento da letalidade policial e entre os mortos 64% são negros. 

A necropolítica pode operar também na educação, quando a política educacional se nega a disseminar de determinados saberes –como história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo– ou, então, quando há falta de investimento da escola pública. “Isso também ceifa vidas. Embora não seja uma morte matada, uma morte física, é uma morte das potencialidades, uma morte do espírito, é uma morte do desenvolvimento”, complementa Allyne.

É importante lembrar, no entanto, que embora o termo esteja sendo utilizado agora, as práticas de morte vêm de muito antes, com o próprio processo de escravização e colonização do território e dos corpos. “Esse não é um processo que começa hoje, é um processo que começa com a colonização, com a escravidão, a escravidão que marca esse corpo negro como um corpo descartável, como um corpo matável”, relembra a advogada.

A força do movimento negro contra a necropolítica

O cenário é desanimador, mas é imprescindível trazer o importante trabalho que vem sendo desenvolvido pelos movimentos negros e indígenas na denúncia do racismo contra nossos corpos. Se hoje os dizeres “Vidas Negras Importam” e “Parem de nos matar” ganham as ruas de todo o país, é porque há muita gente trabalhando nisso há muitos anos. Destaco abaixo o trabalho de algumas organizações que vêm ampliado a discussão antirracista no Brasil, entendendo, porém, que os movimentos são muitos e vale revisitar essa lista muitas vezes ainda:

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Precisamos falar sobre o luto das mulheres negras https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/24/precisamos-falar-sobre-o-luto-das-mulheres-negras/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/24/precisamos-falar-sobre-o-luto-das-mulheres-negras/#respond Sat, 25 Jul 2020 00:16:26 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/nivia-foto-homenagem-rodrigo-320x213.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2035 Rodrigo Tavares Raposo nasceu antes da hora, em 7 de fevereiro de 1996. Pressa de vida. Cabeludo, com costeletas e corpo miúdo, até hoje o cordão umbilical está muito bem guardado, seguindo o costume da família. Aos 2 anos, já girava o mundo do quintal de casa em cima de uma bicicleta. Crescido, fez caratê, capoeira, natação e futebol. Acreditava em gente e que Nova Iguaçu (RJ), o seu lugar, era o maior celeiro de talento jovem que poderia existir. 

Rodrigo quando ainda era um bebê/Arquivo pessoal

Falar de Rodrigo, seu jeito e seus gostos é contar a história que Nivia Raposo, 45, gostaria de ter lido nas manchetes dos jornais em outubro de 2015, quando o filho mais velho foi arrancado dela praticamente na frente de casa, pela milícia de Nova Iguaçu, com um tiro nas costas.

Ele tinha 19. Iniciava carreira no Exército Brasileiro. Queria seguir os passos do avô e da família de militares. Acreditava na justiça, mas, em um dos fins de semana de folga do quartel, foi contraditoriamente morto após se recusar a pagar “pedágio” de um policial que o acusava de roubo em um bairro vizinho. Até hoje, ninguém foi preso. Nenhuma justiça foi feita.

“Quando o Estado mata, mata até aqueles que agem corretamente. Ensinei meu filho a respeitar as pessoas e a ser um homem com todos os superlativos, para simplesmente perdê-lo para sujeitos com desvios de conduta dentro de uma instituição que, teoricamente, é destinada a nos ‘servir e proteger'”.

Nivia prefere contar em mensagens escritas essa história. “Escrevo pra não esquecer”. Conscientemente, é o jeito que encontrou para garantir o direito à memória do filho com suas próprias palavras, trazendo a verdadeira identidade de Rodrigo.

“Viver o luto a cada dia não é fácil. Pode passar até 30 anos. Vai fazer cinco em 17 de outubro e eu rememoro a cada dia, quando leio as mensagens dos amigos no Facebook dele. Ele sempre se fez muito presente na vida dos amigos e, às vezes, se estendia aos familiares dos amigos. Ele era um ser humano iluminado”.

O luto atravessa tudo. Em alguns dias, Nivia prefere ficar sozinha, mais introspectiva, mas sempre pode contar com o filho mais novo, Thiago, que também faz questão de rememorar a vida do irmão. Em outros, ela planta girassóis. “Foi Rodrigo quem me ajudou a fazer esse jardim”.

Nivia durante fala do Observatório das Favelas (RJ)

Mães de Maio, de Junho, de Julho

Para uma mulher que teve a vida do filho ceifada pelo Estado, viver o luto passa principalmente pela memória coletiva. Aquela contada junto a outras mulheres, com o ouvido perto uma da outra, mas também os olhos, as mãos, pois são corpos que vivem a mesma dor.

“Temos um Estado que já está acostumado a apagar as histórias dos nossos ancestrais. Cabe a mim, como mãe, amplificar nossas lutas e me somar a todas que perderam seus filhos”, reforça Nívia.

Débora Silva, líder do Mães Maio, diz que essa luta vem do útero e que, mulheres como ela e Nivia, irão parir um novo Brasil. “As mães dizem que luto, para nós, é verbo. Do luto nós vamos à luta. Nosso sistema é capitalista, classista, racista e patriarcal. Mas acredito que essas mulheres são intelectuais orgânicas. Damos um um giro decolonial  no momento que o sistema criminalizou e marginalizou os corpos pretos caídos ao chão”.

Além de professora, Nivia também é militante da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, onde se apoia e também acolhe outras mulheres em situações semelhantes à sua. Muitas têm conseguido romper a dolorosa barreira do silêncio e se unido para falar das tristezas ainda encostadas, das memórias das suas crianças pequenas ou mais crescidas, mas sempre cobrar por justiça aos filhos e filhas. É isso que fizeram também ao realizar uma live no dia 23 julho, quando a Chacina da Candelária, no RJ, completou 27 anos.

Em uma conversa apenas com familiares de vítimas do Estado, acompanhei as falas beiradas de saudade, mas também cheias de acolhida e companheirismo. Além de Nivia, Bruna Silva, mãe de Marcos Vinicius, Rafaela Matos, mãe de João Pedro Matos, Vanessa Salles, mãe da Ágatha Félix, e tantas outras histórias que, algumas vezes, nós, gente com caneta e câmera na mão, precisamos nos atentar mais. [Abaixo, leia alguns trechos da live]

Maternidade ultrajada

O dossiê “A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil” aponta que as mulheres pretas vivem violência tanto no esforço quanto no isolamento e solidão para tentar proteger a vida de seus filhos. O medo não é à toa.

“Por trás destes números há também a violência não letal, mas intensa e continuada, que afeta milhares de mulheres negras, em sua maioria mães dos e das jovens assassinados. Estas violências são vividas tanto nos intensos esforços que desenvolve, geralmente em isolamento e solidão, para proteger e tentar preservar a vida de seus jovens, mas também após a morte destes, ao longo de suas ações para recuperar a dignidade dos jovens assassinados”, aponta o relatório.

Uma das lutas de Nívia é ressignificar a memória do filho Rodrigo/Arquivo pessoal

O Atlas da Violência de 2019, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que, em 2017, 75,5% das pessoas assassinadas no país eram negras — a maior proporção da última década, evidenciando o racismo estrutural de nossa sociedade.

O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) apontou em um estudo que, por dia, 32 crianças e adolescentes de 10 a 19 anos são assassinados no Brasil. Só em 2017, foram 11,8 mil, sendo 82,9% negros e do sexo masculino.

O que é morte tabu na periferia? 

Esse blog se chama Morte Sem Tabu. Mas, diferente da Nivia, falar da morte dos filhos ainda é um grande tabu para muitas das mulheres negras e periféricas que perderam seus meninos e meninas nas mãos do Estado ou outras violências que acometem nossos territórios.

“Elas têm medo das pessoas que mataram seus filhos e de serem perseguidas. Têm mais medo quando é o Estado que comete o crime, porque veem os policiais passando em frente às suas casas a todo momento”, é o que diz o jornalista Kaique Dalapola, que já passou pela Ponte Jornalismo e hoje atua no Portal R7, dedicando-se sempre a denunciar assassinatos da população negra nas periferias.

“Quando a pessoa é morta pela polícia, a família tem receio de denunciar. A maioria das famílias só aceita contar a história de maneira anônima e, mesmo assim, muitas vezes, os familiares não levam adiante”, aponta.

“Muitas vezes, a única que luta até o fim é a mãe. Em nenhum momento desacredita. Os outros familiares acabam naturalizando a morte e entendendo que o Estado está cumprindo seu papel”, diz o jornalista, que tenta sempre respeitar os tempos, os medos e os lutos de cada família entrevistada.

Na semana que conversamos, ele investigava a chacina de Embu Guaçu, extremo sul de SP, onde passou boa parte de sua adolescência. Diferente de outros jornalistas, que não têm relação direta com o território, Kaique sabe as realidades que permeiam suas reportagens.

“É sempre o mesmo perfil: jovem, negro e da periferia”, conta ele, que realiza uma postagem de 8h em 8h em sua conta no Twitter com o nome de uma pessoa negra da periferia assassinada pelo Estado. Segundo dados de boletins coletados pelo jornalista, mesmo em meio a uma pandemia, o maio de 2020 foi o maio mais letal da história de São Paulo, desde os crimes de 2006, que contabilizou 137 mortes (contabilizadas). Em 2020, o número foi de 68.

Violência em tempos de pandemia

Mesmo em meio a uma pandemia, as mortes não cessaram. Do começo do ano para cá, a polícia militar do Rio de Janeiro assassinou ao menos 741 pessoas. Em São Paulo não é diferente, até aqui foram 442 mortos pela PM.  Segundo a Plataforma Fogo Cruzado, na região metropolitana do RJ, só no primeiro semestre de 2020, 17 crianças foram atingidas por tiros na região, o que representa 70% a mais se comparado a 2019. Seis morreram baleadas.

É por isso, inclusive, que as mães vítimas de violência uniram seus lutos e dores na live citada, para pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) aprovar a ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), apelidada como “ADPF das Favelas”, construída coletivamente, e que tem como objetivo proibir as operações policiais em tempos de pandemia.

Foi já em meio à quarentena que o garoto João Pedro Mattos, de 14 anos, foi assassinado depois de levar um tiro na barriga dentro do quintal da própria tia, durante uma operação policial em São Gonçalo (RJ). “O estado não acabou apenas com os sonhos dele, mas com uma família inteira. Quero externar meu repúdio ao ato que o Estado comete com os jovens das comunidades. Se fosse na zona sul, tenho certeza que não invadiria atirando. É muito bom saber que não estamos sozinhos nessa luta”, foi parte do depoimento de Rafaela Matos, mãe de João Pedro Matos.

Veja outros depoimentos abaixo ou assista à Live >> Mães contra as operações: em memória das vítimas das chacinas da Candelária e de Acari

“Perdemos nossos filhos na mão do Estado, mas ainda temos mais filhos. Essa lei pode garantir a vida dessas crianças (…) Assim como essas mães, meu filho também foi morto com tiro nas costas. Para eles, não basta matar, eles têm que criminalizar. Todo dia nasce uma mãe na dor. Estamos cansadas de enterrar os nossos filhos”,  diz Bruna Silva, mãe de Marcos Vinicius, morto enquanto ia para a escola.

“O STF precisa aprovar essa lei para evitar que várias mães continuem perdendo seus filhos assim”, é o que disse também Catarina Ribeiro, que perdeu o filho há 78 dias, assassinado após uma operação policial em Nova Iguaçu, em maio.

“Poucas foram as vezes que falei publicamente. O caso do meu filho não foi para a mídia. Pode passar o tempo que for, a dor pela perda do filho será sempre a mesma. Esses meninos foram arrancados das nossas vidas. Eles também tiraram parte da minha identidade. Eu deixei de ser a Catarina para ser a mãe do Rogério. A minha vida dali pra cá, acabou (…) Ao mesmo tempo que meu filho perdeu a identidade, a cada dia que passa eu quero viver minha identidade para falar da dele”.

“Eu não sou a mãe do auto de resistência. Quando sujam nosso filho, sujam a gente. Eu deixei de ser a mãe do Lucas de Azevedo Alpino para ser a mãe do meliante. Eu não sou a mãe do meliante, eu sou a mãe do Lucas. Não vamos trazer nossos filhos de volta, mas evitamos que isso aconteça com outros Lucas, outros Matheus”, diz também Laura Azevedo, para citar a importância da lei neste momento e também de contar as memórias dos filhos.

“A dor continua aqui. É a mesma dor. Quando ouvimos outras mães falando, revivemos a dor com muita força. Há seis anos venho nessa luta por memória, verdade e justiça. Não basta apenas matar o corpo, eles precisam dar legitimidade a esses assassinatos. Eles assassinam a dignidade e memória de nossos filhos. Infelizmente, nossos filhos não vão voltar. Se a gente não morreu quando arrancaram nossos filhos da pior maneira possível, a gente tem uma missão: lembrando as Mães de Acari,  que são as pioneiras nessa luta, nesse enfrentamento: a gente tem que lutar”, diz Ana Paula Oliveira é mãe do Jonathan Lima

“Há muitas mães que seus filhos não estão mais aqui. Quando acontece com a gente, a gente consegue visualizar dentro das famílias o quão grande é essa dor e a saudade que vimos. Ágatha, menina como todas as outras crianças, que tinha sonhos e queria viver. Ágatha também foi executada. Eu sigo tentando sobreviver um dia após o outro. Eu vivo por ela. Eu sigo acreditando em Deus. O mundo é mau, mas podemos nos juntar para ficar bem. Que, um dia, a gente reencontre nossos filhos, seja em outro mundo, no céu, mas acredito que vou reencontrar minha filha. Quero dizer às mães que vivem a mesma dor: vocês estão vivas, e continuem vivendo para o amor do filho de vocês. De alguma forma, eles estão vendo a dor e batalha”, disse Vanessa Salles, mãe da menina Ágatha Felix.

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Covid-19 e um memorial para guardar as lembranças dos nossos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/07/covid-19-e-um-memorial-para-guardar-as-lembrancas-dos-nossos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/07/covid-19-e-um-memorial-para-guardar-as-lembrancas-dos-nossos/#respond Tue, 07 Jul 2020 19:45:38 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/cemiterio-creditos-leonardo-britto-agencia-mural.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2013 Por muitas vezes, a História — essa que se escreve com maiúscula — excluiu dos documentos oficiais as memórias de gente anônima, de gente que vive à margem, tanto dos direitos humanos, quanto dos grandes centros, geográficos ou sociais.

Mas é em momentos de crise, como a que vivemos agora, que essa tentativa de apagamento fica ainda mais evidente, reforçando a importância de contar as nossas próprias histórias e a dos nossos mortos.

Até esta terça-feira (7) já eram mais de 65 mil óbitos em decorrência de Covid-19 no país, sendo mais de 16 mil só em São Paulo. A letalidade da doença é muito maior territórios periféricos — onde a presença de negros é maior — não me deixa mentir: o inimigo invisível chamado coronavírus tem uma geografia muito bem localizada: periferias, cortiços, vielas, como já bem cantou Racionais MCs

Um levantamento da Rede Nossa SP mostra que os bairros periféricos de SP com maior número de negros também são aqueles com mais casos de óbitos pela Covid-19: Sapopemba, zona leste de São Paulo. Brasilândia, zona norte. Grajaú, Jardim Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís, na zona sul.

A morte, para nós, chega muito antes da hora. Ela aparece na falta: de saneamento, de saúde, de moradia, de informação. Em um processo contínuo de genocídio dos povos negros e indígenas.

Homenagens no Cemitério Vila Nova Cachoeirinha, em SP/ Léu Britto/Agência Mural

Passado e presente

Eu sou de Perus, na região noroeste da capital paulista. Por muito tempo, o local foi conhecido por conta da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, descoberta no início dos anos 1990. Das 1047 ossadas encontradas no espaço, ao menos 49 foram identificadas como de desaparecidos políticos e as demais eram de jovens executados pelo esquadrão da morte ou de vítimas de meningite durante os anos da Ditadura Militar.

Para contar essa história e mostrar como todas as mortes são políticas, é que, em tempos considerados “normais”, ativistas e moradores realizam trilhas da memória, com visitas ao cemitério e atuação no Centro de Direitos Humanos Carlos Alberto Pazzini (CDDH-CAP)que luta pelo registro da memória da época a partir da periferia.

“Apesar do alto número de óbitos, os militares negavam a existência da epidemia de meningite, assim como o atual governo, que naturaliza a morte”, conta Amanda Vitorino, estudante de Direito e integrante do CDHH. Ela aponta, ainda, como a subnotificação do passado também pode ser encontrada em tempos atuais, diante das tentativas de Jair Bolsonaro (sem partido) em não divulgar os dados sobre a pandemia: “a omissão de dados oficiais faz com que as pessoas não conheçam a real dimensão dos problema que nos atinge. Durante a ditadura, informações foram escondidas para preservar o suposto “milagre econômico”.

Um levantamento realizado pelo Opera Mundi mostra que nos anos de chumbo, mais especificamente em 1974, os casos de meningite não apenas foram escondidos pelo governo da época, como também foram proibidos de divulgação pela mídia. Só naquele ano 2.500 pessoas morreram por conta da doença.

Foto de flores em um cemitério
Cemitério São Luís (SP)/ Léu Britto/Agência Mural

Guardar nossas memórias

É nesse cenário insólito, de dor e de luto, que iniciativas como a Rede Apoio Covid-19 se faz ainda mais importante, ampliando as memórias periféricas que sempre foram silenciadas. Gestado por alguns meses, o site, lançado na segunda-feira (6) reúne uma série de iniciativas voltadas ao amparo das famílias vítimas da pandemia, entre essas o registro das histórias dos entes queridos e outros acolhimentos e cuidados, como oficina de escrita para enlutados.

Iyá Adriana T’Oluaiyê, pedagoga e uma das coordenadoras da coalizão, diz algo muito bonito sobre a existência desse espaço: “a rede tem esse papel de acolher, de dar voz a essas famílias e suas vítimas, com um papel extremamente bonito de olhar para essas famílias e fazer justiça às suas histórias”.

Para ela, as histórias são aquilo de mais valioso que que construímos em vida. “Histórias que merecem ser lembradas. Famílias que merecem ser acolhidas”, diz a Iyá, que enxerga a rede como um espaço de olhar para os nossos — negros, periféricos, indígenas –, para que a gente não repita os erros do passado e, parafraseando a poeta polonesa Wislawa Szymborska, não deixemos que a História arredonde os esqueletos para zero.

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