Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Chá virtual sobre perdas: ‘É preciso respeitar nosso estado de luto’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/11/02/cha-virtual-sobre-perdas-e-preciso-respeitar-nosso-estado-de-luto/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/11/02/cha-virtual-sobre-perdas-e-preciso-respeitar-nosso-estado-de-luto/#respond Tue, 02 Nov 2021 15:00:37 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/mirian-cha-luto-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2563 Você já imaginou tomar um café ou chá para falar sobre luto? Pensando que todas as pessoas em algum momento já viveram algum tipo de luto –morte de entes queridos, fim de relacionamentos, ou a mudança de trabalho– um chá sobre o assunto soa bem possível, não é mesmo?

Para ouvir histórias de perdas entre 2020 e 2021, a diretora teatral Mirian Fonseca lançou em suas redes sociais o convite “Vamos tomar um café/chá”, onde se coloca à disposição para escutar de maneira cuidadosa quem perdeu familiares e amigos nesse período.

Nesse tempo, Mirian perdeu o avô, uma tia, uma sobrinha e alguns amigos. Diante do próprio luto, e para tentar refletir e elaborar a dor, iniciou esse processo criativo sobre a temática junto a outros artistas.

Aluna do curso de Artes Cênicas – Direção Teatral da  Escola de Teatro da UFBA e artista colaboradora do Coato Coletivo, que pesquisa as interações entre arte e tecnologia na Bahia, a escuta integra o projeto “Dos que vão morrer aos mortos” e até o fim do ano irá se tornar um vídeo-art.

“Como parte do processo, resolvi convidar pessoas para tomar um chá virtual para compartilhar suas experiências de forma livre, me colocando à disposição através de uma escuta ativa e afetuosa”, conta. Para participar, é bem simples: envie um e-mail para mirian.fonseca97@gmail.com ou, então, uma mensagem em seu perfil no Instagram.

Mirian acredita que falar liberta e nos ajuda a entender os ciclos da vida. “Eu acredito que devemos celebrar a vida do outro, mas também devemos respeitar nosso estado de luto. Falar sobre o luto nos ajuda a entender que os ciclos se fecham, que há voos que não podem ser impedidos e que a vida é feita de encontros e despedidas. Sinto que a gente evita muito falar sobre esses momentos de passagens”.

Mirian ressignificou os próprios lutos ouvindo histórias de perdas/Arquivo pessoal
Mirian ressignificou os próprios lutos ouvindo histórias de perdas/Arquivo pessoal


Cada história é única

Até agora já ouviu 13 pessoas. As conversas são literalmente um chá virtual. A diretora artística convida a pessoa a estar com um chá, café ou água. “Sempre começa o encontro perguntando qual é a bebida que está tomando”.

Durante a prosa, Mirian escuta as histórias e também compartilha as suas, próprias. Em conjunto, pensam uma imagem que simbolize a conversa, sendo esta a figura que também irá compor o vídeo-arte produzido por Mirian.


O processo é permeado pelos mais diversos sentimentos, assim como o próprio luto. “Tive muitos momentos de riso com as pessoas,  momentos de lembrar das pessoas que se foram, com muito cuidado, com muito carinho. Há momentos tensos. Eu que choro ou a pessoa chora. Eu tô ali, com muita vontade de abraçá-la e digo isso a ela, que quero abraçá-la mesmo que seja virtualmente, para que ela se sinta abraçada”.

Em uma conversa, a pessoa narrou a perda de um parente, um jovem negro e trouxe e lamentou por ele não ter vivido seus sonhos. A imagem que sintetizou essa conversa foi a de uma árvore cortada.

“Eu fiquei pensando muito nisso, pensando nos meus irmãos, pensando sobre perspectiva e sobre quanto nós, pessoas negras também somos atravessadas. A gente não consegue falar, a gente não consegue lidar com isso. A gente também não entende esse processo de luto porque não aprendeu a lidar com nossas emoções”, diz.

Mirian não sabe com exatidão quando criou consciência da existência do luto. “Sou uma pessoa que já vivenciou inúmeras perdas (não apenas relacionadas à morte) desde muito nova, e nunca consegui falar abertamente sobre elas”. 

Nas sessões terapêuticas, percebeu que o psicólogo sempre utilizava a palavra luto para nomear situações e sentimentos. Seu interesse pelo assunto só aumentou.

No primeiro trabalho como diretora teatral, encarou o assunto de perto, já que o experimento cênico trazia o luto de mulheres negras que haviam perdido seus filhos para a violência policial.

Segundo o Atlas da Violência de 2021, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Entre os não negros (amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil.

“Fruto de uma pesquisa coletiva com o grupo de teatro do Instituto Federal da Bahia- Campus Simões Filhos, em ”Neides”, me interessava saber como as mães que tinham perdido seus filhos se sentiam, como era este luto”, conta Mirian.

O dossiê “A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil” aponta que as mulheres pretas vivem violência tanto no esforço quanto no isolamento e solidão para tentar proteger a vida de seus filhos. Por trás dos números, há também uma violência não letal, tanto no intuito de preservar a vida de seus filhos, quanto para recuperar a memória de jovens assassinados.

Mirian acredita que a morte de pessoas negras é muito banalizada na sociedade brasileira e, por isso, tem também refletido sobre necropolítica. Aqui no Morte Sem Tabu, falamos sobre isso ouvindo mães de vítimas da violência estatal e já explicamos como a necropolítica afeta de diferentes formas a população negra no país.

“Venho  também  buscando referências de outras mulheres negras  que falem sobre o luto para me guiar para e no meu trabalho em geral, venho buscando resgatar rituais de passagens muito comuns em interiores da Bahia que tem forte inspiração em rituais afro-brasileiros”, diz.

Mirian e o avô Nicolau/ Arquivo pessoal

A morte faz refletir sobre a vida

Foi apenas em 2018, com o falecimento de sua avó, que Mirian percebeu quanto a morte a fazia refletir sobre a vida, a família e os sentimentos que ficam quando alguém parte.

“Movida pelo desejo de me conectar com a pessoa que minha avó foi e de ouvir histórias de outras mulheres negras, dirigi em 2019 um experimento cênico onde reuni histórias de avós de quatro performers e da minha avó que já tinha partido para um outro plano”.

Nesse meio tempo, perdeu outras duas pessoas bem próximas, acumulando nela uma sensação de não compreensão sobre essas partidas. Em 2020, com a chegada avassaladora da pandemia, a ideia do luto a assombrou a tal ponto, que Mirian começou a ter medo de perder novas pessoas.

“Tinha muito medo de perder alguém neste momento, ao mesmo tempo que sentia um vazio gigante pelas perdas das outras pessoas. Vi relatos de muitas pessoas próximas que morreram de Covid-19”.

Ao fim de 2020, ela gravou um documentário com o avô de 92 anos para entender como uma pessoa idosa estava atravessando a pandemia diante do isolamento de amigos e família.

“Criei um vínculo inacreditável com ele e uns 20 dias depois (íamos continuar gravando), ele partiu, junto da família. Uns meses depois,  perdi uma outra tia e uma sobrinha. Foi daí que a perda da  morte começou a me atravessar de maneira muito mais avassaladora”.

Desde que começou o projeto, Mirian se sente atravessada. “As imagens que as pessoas atravessam meu corpo de forma única. Eu acho que isso é o ápice da performance, que é o ato de ritualizar e entender. Todas essas conversas vão se tornar imagens futuramente, e elas dizem muito. Dizem não só sobre mim, dizem muito sobre o coletivo. Eu acho que nesse período de pandemia, o luto é coletivo”.

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Esclerose Múltipla: luto, desafios e aprendizados de uma mulher negra https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/esclerose-multipla-luto-desafios-e-aprendizados-de-uma-mulher-negra/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/esclerose-multipla-luto-desafios-e-aprendizados-de-uma-mulher-negra/#respond Wed, 29 Sep 2021 20:36:02 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/ester-maria-esclerose-multipla-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2514 Psicóloga conta como foi descobrir e lidar com a Esclerose Múltipla em seu cotidiano e relações sociais.

Na manhã de 12 de outubro de 2016, a psicóloga Ester Maria Horta sentiu um desconforto na vista direita. Correu para um Pronto Socorro focado em oftalmologia. Descobriu que não havia nada nas retinas, mas um edema de papila, ligado diretamente ao nervo óptico. No neurologista, entendeu que o sintoma era um alerta para outra doença. Após diversos exames, o diagnóstico foi finalmente encontrado: Esclerose Múltipla (EM).

“Quando recebi o informe de que se tratava de algo neurológico que precisaria ser investigado, eu literalmente ‘gelei’. Foi um momento ali congelado, a vivência de uma pausa, de um fim. Lembro de sair da sala de exames e caminhar meio que fora do ar até chegar ao encontro do meu marido. Ele segurou minha mão e me acolheu. Era o que eu precisava. Era o sentimento de que uma nova jornada iria se iniciar”, conta.

De lá para cá, a psicóloga precisou se reinventar. Entendeu o processo de conviver com uma doença crônica também como um tipo de luto, que exige tempo para entender as mudanças.

“O luto, na perspectiva psicanalítica, é uma reação à perda de um ente querido ou de algum objeto de afeto que, neste caso, pode ser a própria saúde”, explica Ester. “Quando se recebe o diagnóstico de uma doença crônica – definida como uma doença de evolução lenta, com duração longa que, no geral, acompanha um paciente durante toda a vida – vivencia-se o luto pois perdeu-se aquele objeto amado, no caso a saúde física.”

Ela explica que o diagnóstico, apresentado de forma abrupta, gera insegurança e ansiedade frente ao futuro, surgindo assim o medo da morte e do incerto. “E isso é justamente o processo do luto, inicia-se um período de transição entre o ‘viver’ o adoecimento para para o ‘conviver’ com o adoecimento. É um processo doloroso justamente porque é preciso que o sujeito precise retirar seus investimentos de afeto do objeto perdido, no caso sua saúde. É um processo que demanda tempo para que o ego consiga transpor o afeto antes direcionado ao objeto perdido, no caso a saúde, o corpo e a vida antes do diagnóstico”.

Para quem não sabe, a Esclerose Múltipla (EM) é uma doença que atinge, geralmente, pessoas jovens, entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres. Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas no mundo têm EM.

Segundo dados da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), estima-se que, no Brasil, a cada 100 mil habitantes 15 indivíduos vivem com EM, sendo uma média de 35 mil brasileiros com a doença. Uma antiga noção aponta que a doença acomete mais mulheres jovens e brancas, dificultando o diagnóstico e o tratamento de pessoas negras.

“Estudos sugerem que o risco de desenvolver esclerose múltipla é até 47% maior em mulheres negras em comparação com homens ou mulheres brancos, e a incidência de esclerose múltipla é pelo menos tão alta em homens negros quanto entre seus homólogos brancos, conforme afirma Mitzi Joi Williams, fundador da Life Wellness Group Multiple Sclerosis Center em Atlanta”, diz a psicóloga.

Por ser considerada uma doença heterogênea, os sintomas são variados, a depender da área do sistema nervoso acometida, dificultando um diagnóstico mais rápido. Ester enxerga isso com preocupação, já que falta informação, e o acesso aos exames ainda não é uma realidade para todos os pacientes, principalmente entre negros e pobres. Por isso ela está construindo, em parceria com a também neuropsicóloga Marcela Silva, um projeto de democratização do acesso aos conhecimentos e serviço especializado de neuropsicológica às famílias periféricas.

“Num país desigual como o nosso, milhares de pessoas seguem sem acesso a um diagnóstico e tratamentos especializados. Portanto, é preciso lutar por políticas públicas e de Estado, pela defesa e manutenção do SUS e pela divulgação da informação Esclerose Múltipla e outras condições neurológicas pouco conhecidas entre as pessoas. Guardar estas experiências comigo seria contribuir para a manutenção de um estigma.  Que mais pessoas se somem nessa caminhada”.

Nesta entrevista para o Morte Sem Tabu, Ester explica o que é a esclerose múltipla e conta sua experiência pessoal de como aprendeu a lidar com a doença e com o luto após descobri-la.

Ester é especialista em Neuropsicologia pela Divisão de Psicologia do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP) há 10 anos. Neuropsicóloga na Baobá Neuropsicologia. Membro do conselho da Associação Aliança Pró Saúde da População Negra, membro da coordenação do Núcleo de São Paulo da ANPSINEP (Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadores), membro e co-fundadora do Movimento Afro vegano (MAV), Cofundadora da Adelinas  – Coletivo Autônomo de Mulheres Negras.

Confira abaixo!

 

ester maria horta fala sobre esclerose múltipla
‘Sem roamantizar, experienciar o adoecimento crônico me trouxe um novo olhar para a vida’/Arquivo Pessoal


Morte Sem Tabu: Ester, confesso que sei muito pouco sobre esclerose múltipla. E muita gente que nos lê também. Pode explicar o que é?  

Ester Maria Horta: O termo “esclerose múltipla” se refere a múltiplas áreas de cicatrização (escleroses) resultantes da destruição dos tecidos que envolvem os  neurônios (bainha da mielina) no cérebro e na medula espinhal. Essa destruição denomina-se desmielinização. Desta forma, a Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crônica, autoimune, desmielinizante, inflamatória, que afeta o sistema nervoso central.  Ela é autoimune pois é o  próprio sistema imunológico, responsável por combater agentes externos como vírus e bactérias, que ataca células saudáveis. No caso da EM, ataca a bainha de mielina dos neurônios. Imagine um cabo elétrico, ele tem um fio elétrico interno, mas para que a condução da energia aconteça ele precisa estar recoberto por um isolamento externo certo? A bainha de mielina funciona como a capa de um fio elétrico (um condutor, mas também age na manutenção do neurônio) que, quando perdida, acaba gerando dano na função do neurônio, tal qual um fio desencapado não conduz seu potencial elétrico adequadamente. Ou seja, dependendo da região do cérebro na qual tenha ocorrido a lesão, as manifestações serão diferentes. Atinge geralmente pessoas jovens, entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres. Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas no mundo tem EM, sendo que no Brasil estima-se que existam 15 indivíduos com EM a cada 100 mil pessoas no Brasil, uma média de 35 mil brasileiros com a doença, segundo a Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM).

Morte Sem Tabu: E quais os sintomas iniciais da EM e como ocorre o diagnóstico?

Ester: A Esclerose Múltipla é uma doença heterogênea, podendo ocasionar diversos sintomas neurológicos a depender da área do sistema nervoso acometida. Não existe uma manifestação neurológica típica, porém alterações visuais, fraqueza nos membros, desequilíbrio, descoordenação, alterações de sensibilidade e distúrbios urinários são as queixas mais frequentes. Fisioterapia e tratamentos medicamentosos que atuam na supressão ou modulação do sistema imunológico ajudam a combater os sintomas e a progressão da doença. A EM é uma doença que costuma ter um início insidioso, com sintomas iniciais  difusos que se confundem com outras doenças e, geralmente, há um longo caminho de idas a médicos e especialistas até que se ocorra o primeiro surto da doença.

Como  bem define a  Associação AME- Amigos Múltiplos pela Esclerose, de forma geral, os sintomas mais comuns podem ser: sintomas sensitivos –  como perda da sensibilidade em determinada região do corpo, formigamentos, dor inexplicável; neurite óptica –  é o segundo sintoma mais comum, ocasionando embaçamento visual, perda do brilho das cores, até perda visual; e Sintomas motores e cerebelares –   podem  causar perda de força em algum ou múltiplos membros, descoordenação motora e tonturas.

É importante observar que os sintomas devem durar mais de 24h para serem considerados de origem neurológica. Tais sintomas podem também variar, ir e vir, o que torna o diagnóstico mais desafiante. É possível que a pessoa  tenha  um sintoma e, em seguida, meses ou anos depois tenha um completamente diferente, e não notar a relação entre os dois eventos. Quanto ao diagnóstico, este necessita ser realizado por neurologista, de preferência com especialidade no diagnóstico de EM. A  ressonância magnética (RM) é o melhor exame de imagem para detectar a esclerose múltipla. De forma geral, o exame é capaz de detectar as áreas de desmielinização no cérebro e na medula espinhal. O acesso a tratamentos que atuam na supressão ou modulação do sistema imunológico e fisioterapia aliado a um cuidado na saúde como um todo, incluindo os cuidados de saúde mental,  ajudam a combater os sintomas e a progressão da doença.

Morte Sem Tabu: Ester, como foi quando você descobriu a doença?

Ester: Na manhã do dia 12 de outubro de 2016, algumas semanas antes do meu aniversário de 30 anos,  subitamente, ao despertar, notei que minha vista direita estava estranha, havia uma espécie de “borrão” bem no centro do meu campo de visão à esquerda. Assustada, primeiramente cheguei a pensar se tratar de algo nos olhos, olhando no espelho tudo estava normal. E como já tenho diagnóstico de epilepsia (controlada há mais de 13 anos) fiquei ainda alarmada quando já imaginando poder se tratar de algo neurológico. Como não tive outros sintomas fui primeiro num pronto socorro de olhos onde no dia seguinte realizei exames de campo visual (que se mostrou alterado) e o de retinografia que acusou que não era nada na retina e sim um “edema de papila” (ou seja, no nervo ótico), e sendo assim que era necessário que eu procurasse um neurologista.

Naquele mesmo dia, orientada por uma neurologista colega de trabalho, acompanhada de meu marido, fui a um hospital,  cujo pronto socorro havia  a especialidade de  neurologia na emergência. Já no pronto socorro foi detectada a neurite óptica (a desmielinização/inflamação do nervo óptico), via Ressonância Magnética, mas era preciso investigar a causa. Lá, fiquei internada por uma semana, tratei com pulsoterapia (corticoide intravenoso) e foram realizados diversos exames  como tomografia, ressonância magnética, líquor, fan e outros exames laboratoriais que descartaram causas virais, infecciosas ou cancerígenas.

O resultado do  exame de líquor, que seria decisivo, só saiu alguns dias depois que tive alta do hospital e indicou a esclerose múltipla. Eu estava aguardando este resultado para decidir o que faria em seguida. Mas anos antes, em meados de 2013, experienciei sintomas que eram até então inespecíficos: fadiga, eventos súbitos de dificuldade de manter o equilíbrio e  de caminhar. Eram sintomas que iam e vinham, e afetaram minha rotina, minha vida acadêmica e profissional, porém sem respostas médicas para o que era.  De 2015 a 2016 voltei a ter os mesmos eventos, até que em outubro ocorreu o primeiro “surto” de EM, tal como descrevi acima. Com esse histórico, tive diagnóstico fechado por um neurologista especialista na área. Hoje, quase 5 anos depois, sigo sem novos surtos da doença, graças a um diagnóstico e tratamento adequados. Mas esta  não é uma realidade para todos os pacientes de EM. Ainda mais neste ano de pandemia, que encaramos escassez de medicamentos devido ao sucessivos atos que visam desmonte do SUS, inclusive para EM, aumento abusivo dos planos de saúde e direitos sendo retirados para pessoas com deficiência.

Morte Sem Tabu: Você é psicóloga, faz diversas reflexões sobre luto, e costuma dizer sobre seu próprio luto em relação à doença. Como é isso pra você? Por que você traz esse processo também como um luto? 

Ester: O luto, na perspectiva psicanalítica, é uma reação à perda de um ente querido ou de algum objeto de afeto que, neste caso, pode ser a própria saúde. Quando se recebe o diagnóstico de uma doença crônica – definida como uma doença de evolução lenta, com duração longa que, no geral, acompanha um paciente durante toda a vida – vivencia-se o luto pois perdeu-se aquele objeto amado, no caso a saúde física. Além de amigos e familiares poderem também viver um luto antecipatório, antecipando a possibilidade de perda daquele ente querido, frente a um diagnóstico, o que acaba muitas vezes gerando distanciamento, as pessoas se distanciam daquela pessoa que ainda em vida carrega em si o estigma de uma morte em potencial, por ser a doença uma ameaça à vida.

Desta forma, o luto antecipatório envolve a família, amigos e entes queridos próximos ao paciente. Cada um desenvolve mecanismos a fim de interpretar e lidar com a possibilidade da morte e para o enfrentamento do que estará por vir. No meu caso, quando ainda nos exames iniciais recebi o informe de que se tratava de algo neurológico e  que precisaria ser investigado, eu literalmente ‘gelei’. Foi um momento ali congelado, a vivência de uma pausa, de um fim. Pois era justamente o que mais temia, até então ainda imaginava que poderia ter sido algo apenas na retina.

Nesse momento, lembro de sair da sala de exames e caminhar meio que fora do ar até chegar ao encontro do meu marido que me aguardava na sala de espera e só conseguir dizer  “A causa é neurológica…” com um misto de sentimentos, relembrando a jornada que eu já havia passado com o diagnóstico de epilepsia que, naquele momento, era algo já distante e superado. Era algo como “lá vamos nós outra vez..,”. Naquele momento, meu marido segurou minha mão e me acolheu. Era o que eu precisava, pois era o sentimento de que uma nova jornada iria se iniciar.

O diagnóstico, apresentado em nossa vida de forma abrupta, gera insegurança e ansiedade frente ao futuro, surge o medo da morte, o medo do incerto. E isso é justamente o processo do luto, inicia-se um período de transição entre o ‘viver’ o adoecimento para para o ‘conviver’ com o adoecimento. É um processo doloroso justamente porque é preciso que o sujeito precise retirar seus investimentos de afeto do objeto perdido, no caso sua saúde. É um processo que  demanda tempo para que o ego consiga transpor o afeto antes direcionado ao  objeto perdido, no caso a saúde, o corpo e a vida antes do diagnóstico.

E esta dor que tanto se refere  apesar de parecer abstrata, não está perdida em nosso corpo, ela tem uma razão e uma explicação fisiológica de ser, ou melhor, neurofisiológica. Do ponto de vista neuropsicológico, o luto, a percepção da perda desencadeia respostas psicológicas que se intercomunicam pelas vias neurológicas. Neste sentido há a participação do  sistema límbico  –  conjunto das estruturas neurais que são associadas com os comportamentos e a memória emocionais –  em especial da amígdala, uma destas estruturas,  que por meio da ínsula que está altamente envolvida no sentido do estado interno do corpo e atua no estado de consciência.  São circuitarias que se encontram em atividade diferenciada num processo de luto e estão relacionadas aos sintomas de alteração de percepção do próprio corpo no processo de luto, aquela “sensação de corpo pesado, cansado”. A amígdala também é ativada nos episódios de memórias recorrentes e ruminantes que surgem num processo de luto bem como  na fase de resolução e compreensão deste, na qual são produzidos sentimentos diversos, agradáveis, desagradáveis ou mesmo neutros. Pessoalmente, experienciar o adoecimento crônico, longe de romantizar essa vivência, me trouxe um novo olhar para a vida, mais aprofundamentos de leituras e estudos nesta temática e  em especial um olhar ainda mais cuidadoso no que diz respeito às pessoas que me deparo na minha prática profissional enquanto psicóloga-neuropsicóloga.

Morte Sem Tabu: No dia 30 de agosto comemorou-se o Dia Nacional de Conscientização sobre a Esclerose Múltipla. Muito pouco se fala como a doença acomete mulheres negras. Pode falar um pouco sobre isso?

Ester: Celebrada pela primeira vez em 2006, a data foi criada pela  ABEM com o objetivo de buscar uma representatividade nacional que aumentasse a visibilidade da Esclerose Múltipla, seus pacientes e os desafios por eles enfrentados no dia a dia. Desde 2014, o mês de agosto ganhou cor em prol da conscientização desta  doença autoimune que mais acomete jovens adultos em todo o mundo. O Agosto Laranja foi criado pela AME – Amigos Múltiplos pela Esclerose com o objetivo de ser um movimento coletivo para desmistificar essa condição crônica de doença e fomentar o diagnóstico precoce, mais qualidade de vida, acolhimento, respeito e dignidade para quem convive com a doença, seus amigos e familiares. A condição atinge geralmente pessoas jovens entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres,  então quando falamos da mulher negra sabemos que essa condição vai se somar com os desafios que o ser mulher negra, num país marcado por uma cultura sexista, patriarcal e racista.

Com minha experiência tive contato com pesquisas que demonstram que, diferentemente do que se pensa, a EM é tão comum na população negra quanto na população branca. Ao integrar a comunidade da organização ‘We are illmatic’ – uma organização americana, sem fins lucrativos, de mulheres negras pacientes de Esclerose Múltipla, tive acesso a  estudos que demonstram ainda que ela é, na verdade, mais comum na população negra.

Acontece que há menos pesquisas investigando a EM na população negra.  Estudos sugerem que o risco de desenvolver esclerose múltipla é até 47% maior em mulheres negras em comparação com homens ou mulheres brancos, e a incidência de esclerose múltipla é pelo menos tão alta em homens negros quanto entre seus homólogos brancos, conforme   afirma Mitzi Joi Williams fundador da Life Wellness Group Multiple Sclerosis Center em Atlanta.

Desta forma, a velha noção de que a esclerose múltipla é a doença de uma jovem mulher branca continua a afetar a rapidez com que os negros são diagnosticados e como são tratados. Outra pesquisa, mencionada pela National Multiple Sclerosis Society (Sociedade Americana de Esclerose Múltipla) constatou que de 60.000 artigos publicados sobre a EM, apenas 113, ou cerca de 0,2%, se concentram nos afro-americanos. E pessoas negras têm 47% mais chances de desenvolver EM do que pessoas brancas.

Já se sabe inclusive que ela apresenta curso e sintomatologia com especificidades na população negra, como por exemplo: ter recaídas mais frequentes e pior recuperação dessas recaídas, quadro mais incapacidade e maior risco de envolvimento dos nervos ópticos e medula espinhal (EM óptico-espinhal) e inflamação da medula espinhal (mielite transversa). Essa pesquisa, que inclui uma revisão de 2019 na Current Neurology and Neuroscience Reports e um estudo de 2018 no Brain, também mostra que pessoas negras com EM têm sinais anteriores de deficiência e mais problemas com locomoção e coordenação do que pessoas brancas. Além de estudos já apontam a relação de baixos níveis de vitamina D em pessoas negras com esclerose múltipla.

Aqui estamos falando de pesquisas estadunidenses, cuja população negra não é majoritária no país. E no Brasil, no qual a população negra compõe mais da metade da população (cerca de 56%), ainda não há estudos e levantamentos amplos que incluam o quesito raça/cor. Recentemente, em uma live referente ao Agosto Laranja promovida pela ativista Alyne Sousa , a convidada a escritora Jéssica Teixeira trouxe a problematização sobre pesquisas e  plataformas de monitoramento da EM no Brasil, apesar de trazerem dados importantes sobre acompanhamento de aplicação de políticas públicas não trazerem informação do quesito raça/cor.

Ainda que quando se fala em saúde, além das pesquisas se pautarem nos corpos brancos, mesmo quando se faz levantamento dos corpos negros, em regra, são corpos cisgêneros. É preciso pensar também em como as mulheres trans e travestis negras são afetadas, em vista de que lhes é negado o direito ao acesso ao acompanhamento básico de saúde, lhes é negada a humanidade.

Por meio dos dados do relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) apontam as violências a que mulheres trans e travestis negras são alvo, bem como os levantamentos da FONATRANS – Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, nos leva a inferir que é preciso pensar no subdiagnóstico ainda maior  da EM na população trans negra. Organizações como a ‘Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam – VNDI’  e o ‘Quilombo PCD’, apesar de não serem coletivos que abordam exclusivamente sobre EM, mas trazem a discussão e a voz de pessoas negras com deficiência, também nos aponta como falar da realidade da mulher negra nos leva a pensar na multiplicidade de vivências negras e como o diagnóstico de EM irá impactar de maneira diferente em cada uma destas vivências, ao se somar a outras opressões a que àquela mulher já está exposta. São também espaços que precisamos nos aproximar e fortalecer a fim de que possamos realizar um trabalho de base que chegue à mulher preta periférica e transformemos as políticas públicas e políticas de estado para que possam de fato proteger essa população.

Morte Sem Tabu: O que fazer para ampliar o acesso à informação sobre EM? 

Ester: Para você que está lendo mas não é uma pessoa com EM, porém convive com alguém que tem (ou mesmo que seja outro quadro autoimune), em primeiro lugar: 

  • Escute: entenda como a pessoa com EM está se sentindo e procure não comparar o estado de saúde dela com o de outras pessoas. Cada pessoa experiencia a EM de uma forma diferente.
  • Pesquise: é cansativo para uma pessoa com EM ter que, a todo momento, explicar o que ela tem. Uma das coisas legais que você pode fazer é pesquisar sobre, para compreender um pouco mais a realidade dela e para que você também possa ter mais informações para levar adiante e contribuir para combater tabus e preconceitos.
  • Acolha: Há dias bons e dias ruins, dependendo do curso da doença e de tantos outros fatores, muitas vezes o acolhimento que você oferecer vai contribuir muito para a qualidade de vida daquela pessoa.

Morte Sem Tabu: Pode deixar uma mensagem para pessoas que passaram ou estão passando por situações semelhantes à sua?

Ester: Gostaria de (re)afirmar que, ao mencionar, em específico, a minha vivência com EM, falo do meu lugar, do lugar de uma mulher negra cis e profisisonal da saúde, mas as histórias são múltiplas e minha experiência não pode ser tomada como um “exemplo” ou a simples ideia de que é “possível superar a doença” como um “caso de superação”. A “superação”, se é que se pode usar este termo, não depende única e exclusivamente da(o) paciente. Tive a possibilidade de ter direito de acesso ao diagnóstico e tratamento;  ter um plano de saúde, contar com o apoio de meu marido e minha mãe, além de já ter familiaridade com o assunto, dada a minha profissão.  Ainda assim, como qualquer outro paciente, enfrento desafios diários principalmente em lidar com o preconceito e perda de oportunidades que tais diagnósticos geram, fruto da desinformação e preconceito ainda existentes. Nesse percurso, depois que falamos abertamente sobre o diagnóstico, não temos como controlar as reações alheias, como abordei anteriormente, familiares, amigos e conhecidos também vivenciam um luto antecipatório e lidam com suas próprias ideias e tabus internalizados acerca da morte e do adoecimento.  Algumas pessoas podem se afastar, outras se silenciam, outras ignoram. Mas, ao mesmo tempo, novas amizades chegam e com elas novos aprendizados. Estar num grupo de apoio contribui para encontrarmos novas soluções e perspectivas. Dê tempo ao tempo. Há e haverão desafios e sintomas benignos, incômodos que vez ou outra ocorrem. Há e haverão dias bons e dias ruins. Espero que ao ler esta entrevista, este possa ter sido um dia bom e espero que assim continue. Num país desigual como o nosso, milhares de pessoas seguem sem acesso a um diagnóstico e tratamentos especializados. Portanto, é preciso lutar por políticas públicas e de estado, pela defesa e manutenção do SUS e pela divulgação da informação Esclerose Múltipla e outras condições neurológicas pouco conhecidas entre as pessoas. Guardar estas experiências comigo seria contribuir para a manutenção de um estigma.  Que mais pessoas se somem nessa caminhada. Juntos, de fato,  vamos mais longe. Estou à disposição para dar as mãos para mais colegas de caminhada.

Organizações para acompanhar:

AME (Amigos Múltiplos pela Esclerose) 

Abem (Associação Brasileira de Esclerose Múltipla

Blogs de mulheres negras que falam sobre sua experiência com EM:

Ester Maria Horta: @ester_psi (colabore com o projeto de neuropscologia comunitária doando pelo PIX: neuropsicologiacomumitaria@gmail.com)

Alyne Souza: @aesclerosadarara

Jéssica Teixeira: @jazzeflow


Atualizado em 30 de setembro de 2021 às 10:08

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Joan Didion: o luto de uma escritora sem crença https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/joan-didion-o-luto-de-uma-escritora-sem-crenca/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/joan-didion-o-luto-de-uma-escritora-sem-crenca/#respond Mon, 02 Aug 2021 11:53:03 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/joandidion_-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2443 Julia Ferry

“O ano do pensamento mágico” e “Blue Nights” são dois livros da escritora Joan Didion dedicados ao seu marido John, e à filha, Quintana. Em um relato pungente, a autora escreve sobre a dor de perdê-los. O que vemos nesses livros, é a escrita do luto que não nos oferece um consolo, nem a promessa de um ensinamento ou reparação, mas o compromisso com uma transmissão honesta sobre a dor de viver a perda. “Este é o primeiro livro sobre o luto escrito por alguém sem crença. Joan Didion, só Deus sabe, acredita na realização humana”, diz David Hare no documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold“, dedicado à escritora. 

O corpo fino e frágil que vemos no documentário que acompanha quase 80 anos de vida da autora, é narrado nos dois livros, como depositários do medo e da dúvida. Didion conta que viver as suas perdas é viver um imenso medo. Medo de não ser mais capaz de se levantar de uma cadeira, que se estende para o temor de não conseguir pensar e até mesmo falar. “Quando digo que sinto medo de me levantar de uma cadeira dobrável em uma sala de ensaio na West 52nd Street, do que realmente sinto medo?”, ela interroga.

O medo como um afeto que antecede a experiência da perda é um sentimento  comum entre as pessoas. A ideia de perder alguém é, por si só, geradora de profundas angústias. Há vidas inteiras que são vividas atravessadas por esse  medo, que parece nos revelar não só a fragilidade que é própria da vida, mas a indeterminação que nos constitui: O que é o “eu” sem o “você”? 

Como apresentou a filósofa Judith Butler, a experiência da perda demonstra a nossa dependência em relação aos outros que amamos, não apenas para viver nossas vidas, mas para nos definirmos como pessoas. Somos sujeitos despossuídos, nos diz Butler. Não temos propriedade e posse do nosso predicado. Somos despossuídos pelos outros, desfeitos pela sua presença em nossas vidas. Nos transformamos e nos descobrimos com os nossos encontros. Como somos também, inevitavelmente, despossuídos na ausência daqueles que amamos. Perder alguém é abalar as próprias noções de si.  Em “Luto e Melancolia”, Freud afirma que não sabemos exatamente o que perdemos quando perdemos alguém. E aí está a perplexidade de uma pessoa, que não é apenas uma presença e uma ausência, mas uma alteridade inapreensível.

Didion não para de sentir medo, mesmo depois de ter perdido. Há um medo que é tão impreciso quanto a experiência que o originou. A perda é uma experiência imprecisa: o que eu perdi com essa pessoa? O eu é forçado a se encontrar com a sua inconsistência. Não só a morte, mas separações dolorosas também impõe essa experiência. Há quem a ideia de perder seja tão devastadora, que procura com todas as forças barrar inícios, relações e proximidade. Assim, quem sabe não amando tanto, evita-se o sofrimento pela perda. É a tentativa de um controle absoluto e programado do que é da ordem do contingente.

A experiência da perda é tão radicalmente devastadora, não só porque nos leva a transformar aquilo que somos, mas nos mostra, no seu espanto, o quanto nunca fomos donos de nós mesmos. Por isso é possível dizer: “não queria querer o que eu quero”, ou nas palavras de Simone Weil: “a contradição, por si mesma, é a prova de que nós não somos tudo”. Não temos escapatória às coisas que nos atravessam. Algo nos escapa, o outro, a própria vida.

Didion se interroga se não perdeu, junto com o marido e a filha, até mesmo as funções motoras e cognitivas, descrevendo a desconfiança nas suas capacidades mais familiares e primárias. As habilidades do seu corpo e a sua capacidade de comunicar sobre esse estado de desespero lhe parecem instáveis: “E se eu nunca mais conseguir localizar as palavras que contam?”. Não só sua própria fragilidade, mas também o dispositivo de narração que se expressa é colocado em questão.

Como escritora, ela conta que “imaginar o que alguém diria ou faria é tão natural para mim quanto respirar”. Mas imaginar o que John falaria, ou escreveria, era não apenas doloroso como ultrajante. O marido, também escritor, era o primeiro leitor e crítico de tudo que ela escreveu. Ela então se pergunta sobre uma frase que tenta completar: “como ele a teria escrito? O que teria em mente? Como queria que ela ficasse?” e conclui que “a decisão cabia a mim agora. Qualquer escolha que eu fizesse carregaria um potencial abandono, até mesmo uma traição”.

Didion “resolve” seu dilema na seguinte passagem: “Deixei como estava. Por que você sempre tem que estar certa? Por que você sempre tem que ter a última palavra? Pelo menos uma vez na vida, deixe para lá”. Essas últimas três frases foram faladas pelo marido e endereçadas a ela, em uma pequena discussão que tiveram. Ela desloca o contexto das palavras de John para as perguntas que faz para si mesma, na ausência dele. Falar com as palavras já ditas pelo outro, essa ainda é uma possibilidade. E foi a saída encontrada por Didion, que inventa através das suas palavras, e das palavras que lhe foram ditas pelos outros, uma escrita possível sobre o luto. Escrever sobre John, seu marido, e Quintana, sua filha, é um gesto de fazê-los viver em um livro, um gesto que ao mesmo tempo acena para essas vidas, e afirma as suas mortes. Dizer para nós com as palavras deles, dizer para si mesma com as palavras dos outros, o luto de uma escritora sem crença.

*Referência Judith Butler: Vida precária: os poderes do luto e da violência. Autêntica Business, 2019.

Julia Ferry (juliaferry@hotmail.com) – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP. 

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Evento online e gratuito discute os vários tipos de luto https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/26/evento-online-e-gratuito-discute-os-varios-tipos-de-luto/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/26/evento-online-e-gratuito-discute-os-varios-tipos-de-luto/#respond Mon, 26 Jul 2021 17:45:51 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/luto-lalo-de-almeida-folha-press-1-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2432 Com o Brasil batendo a triste marca de 550 mil mortos em decorrência da Covid-19, falar sobre o processo de luto se tornou fundamental, não só para aqueles que estão vivenciado diretamente a perda de um ente querido, mas para todas e todos nós, com as mudanças e lutos que a pandemia ocasionou.

Um levantamento do Google mostra que entre janeiro e julho de 2020 houve um aumento de 40%  de perguntas ligadas à morte e luto no buscador, o que demonstra como é urgente falar sobre isso e que há muita gente querendo se informar.

Pensando em como abordar a temática, o inFINITO –movimento que promove conversas sinceras sobre viver e morrer– realiza de 26 a 30 de julho a 3ª Semana do Luto. De forma virtual e gratuita, o evento contará com especialistas de diversas áreas para refletir sobre os diferentes tipos de luto, apontando caminhos para lidar com o processo de forma cuidadosa e acolhedora.

“A proposta da Semana do Luto é colocar luz em todos estes lutos para que eles possam ser validados. Queremos através das conversas sinceras oferecer informação de qualidade para que as pessoas comecem a criar mais repertório intelectual e emocional para que possam atravessar os seus lutos de uma forma mais saudável e menos solitária possível”, aponta Tom Almeida, idealizador do Movimento inFINITO.

Luto e periferia 

Para falar sobre o luto a partir das periferias, eu e a psicóloga Ester Maria Horta participamos nesta segunda (26) da abertura do evento, onde iremos refletir sobre como o luto nos territórios periféricos se encontra com o racismo estrutural e as desigualdades de nossa sociedade.

“A primeira morte por Covid-19 foi de uma empregada doméstica. O menino Miguel também foi morto por negligência da patroa. As pessoas com deficiência também são apagadas e a sociedade as empurra para um luto. Não foram sequer prioridade no início  vacinação. Começou-se a vacinar idosos 90+ sendo que a expectativa de vida na periferia é, em média, de 60 anos ou menos, sendo a maioria das pessoas pretas. Ainda mais preocupante quando se olha para as pessoas trans que têm expectativa de vida de 35 anos”, aponta a psicóloga Ester.

Para Ester, especialista em neuropsicologia e integrante do conselho da Associação Aliança Pró Saúde da População Negra, é preciso pensar a periferia e a população negra para além de uma categoria, considerando todas as suas especificidades e humanidades, como classe social, identidade de gênero, orientação sexual, neurodiversidades e necessidades de mobilidade.

“Entendendo a periferia para  além de corpos e números, mas como coletividades e agentes ativos na busca de acesso e garantia de direitos. Ao final, penso que acolher pessoas enlutadas e querer fazer algo a respeito está intimamente ligado a ter uma postura anticapitalista, anti-opressiva e também agir politicamente”, diz a psicóloga.

Veja a baixo a programação completa, que contará ainda com reflexões sobre luto na escola, com Anna Penido e Valéria Tinoco; o luto LGBTQIA+ com Carlos Tufvesson e Renan Sukevicius e o luto no autismo, com Joelma Avrela de Oliveira e Marcelo Roberto de Oliveira.

Programação
Segunda (26/07 – 19h) – Luto nas periferias com Jéssica Moreira e Ester de Paula
Terça (27/07 – 19h) – Luto na escola com Anna Penido e Valéria Tinoco
Quarta (28/07 – 19h) – Desempacotando os lutos com Mariana Ferrão
Quinta (29/07 – 19h) – O luto LGBTQIA+ com Carlos Tufvesson e Renan Sukevicius
Sexta (30/07 – 19h) – O luto no autismo com Joelma Avrela de Oliveira e Marcelo Roberto de Oliveira

Serviço
Data:
de 26/7 a 30/7 às 19h
Inscrições pelo link: https://bit.ly/SemanadoLuto3
Os inscritos receberão os links das lives por e-mail
As lives serão transmitidas pelo Youtube
Evento gratuito

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A urgência de vida em mim: 7 anos sem meu pai https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/a-urgencia-de-vida-em-mim-7-anos-sem-meu-pai/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/a-urgencia-de-vida-em-mim-7-anos-sem-meu-pai/#respond Fri, 02 Jul 2021 21:55:16 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/arquivo-pessoal-jessica-moreira-1-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2423 Desde 2014, o 2 de julho virou uma data a ser lembrada. É o dia da morte do meu pai: o Sebastião, o Tiãozão, o papishow, como eu o chamava. Já contei a história dele aquiSe estivesse vivo, faria 63 anos e já estaria vacinado. Também conheceria o Davi e o Miguel, os netos que chegaram depois da Bia, a única que ele carregou nos braços.

Mas meu pai morreu e, naquele 2 de julho, uma Jéssica também morreu dando espaço a essa que hoje eu sou. Mas  perder essa pilastra não foi, não é fácil. Não é possível reerguê-la, mas ressignificar sim.

Alguns anos antes de sua morte, sonhamos juntos o meu intercâmbio. Ele não tinha condições de pagar sozinho um curso de Inglês, então se juntou à mãe e à vó e, mensalmente, somavam as moedas na cozinha de casa para pagar o boleto da escola de idiomas.

Tião e seu irmão, Tiago crianças/ Arquivo pessoal

Foi assim até o dia que eu disse que não queria mais gastar dinheiro com o curso, pois dali em diante eu mesma iria guardar o que ganhasse para estudar fora.

O pai contou ao meu tio João: “a Jéssica vai para a Austrália”. E no outro dia minha prima Rosana já estava me dando parabéns pela viagem. Eu nem tinha dinheiro. O sonho, porém, agora não era só meu. Estava posto a toda família.

“Então, não precisa pagar conta nenhuma em casa, guarda tudo que conseguir”, foi a ajuda dele. Para quem é da periferia, sabe que apoiar em casa financeiramente é algo quase natural.

Durante dois anos, eu juntei tudo que consegui. Em março de 2014, fechei um pacote para Dublin, Irlanda, e o pai até tomou uma cerveja para celebrar.

Também convenceu a prima Camilla a também ir morar comigo noutro país. Para quem veio do interior de São Paulo, Atibaia, e viveu toda a vida em Perus, extremo noroeste de São Paulo, ver a filha e a sobrinha do outro lado do mundo era um jeito de também realizar seu sonho, mas de uma família toda.

A viagem estava marcada para 28 de julho. A ansiedade batia mais nele e nos familiares do que na gente. Era o sonho coletivo se espraiando.

Mas isso tudo mudou de forma em junho. O pai começou a sentir fortes dores por todo o corpo. Sem convênio, o levamos a uma consulta paga, onde a estupidez do médico o deixou ainda pior. Foi no Pronto Socorro que descobriram que a Diabetes havia chegado a 490 e que, em nível tão alto, estava prejudicando os membros.

A saga de hospital em hospital durou vinte dias. Eu brigava em todos eles. A frieza de enfermeiras e médicos se somava ao frio das próprias paredes. Mas o pior de tudo foi uma chefe de enfermagem que esperou eu chegar para conversar sobre o estado do pai, mesmo com minha mãe e tia na visita: “você é mais esclarecida”.

De repente, o diploma universitário, o curso de inglês, a caminhada árdua de meus pais para oferecer a mim educação, era a desculpa para não oferecer informação, um direito que deve ser garantido independente do grau de escolaridade.

Jéssica Moreira e o Pai, Sebastião /Arquivo pessoal

Num outro dia, o enfermeiro do plantão fez questão de me chamar e mostrar as costas de meu pai em carne viva por conta de um tampão que outro enfermeiro colocou erroneamente. Ele não me deu escolha de não ver.

Do nosso lado, foram dias e dias dormindo no hospital, ou nem conseguindo dormir em casa. Mesmo sendo grave, ele só conseguiu uma vaga na UTI depois de uma semana. Enquanto isso, ficou pelo menos dois dias num corredor e os outros num quarto sem nenhuma estrutura.

Naquele 2 de julho, por volta das 11h, o tempo parou, congelou. Estava a 30 km de casa. Não tive paciência para esperar o trem. Peguei um táxi. Eu tinha pressa. Pressa de estar com os meus, de viver alguma dor, mas desde aquele dia eu passei a ter pressa de viver.

No meu luto, eu não parei. Nem todo luto é igual. Pelo contrário, eu acelerei. Desde então, a idade de meu pai se tornou um limite. Parece mórbido, eu sei, mas custou para mim começar a imaginar que eu poderia ir além dos 56.

Uma pressa em aprender tudo, em me aventurar, em trabalhar e não deixar nada para amanhã. Era como se nada fosse dar tempo.

A pressa também me atropelou e me doeu. Me distanciou de algumas pessoas e me fez querer abraçar o mundo sem conseguir antes me abraçar. Gerou frustrações e o medo de não conseguir chegar. Onde? Nem eu sabia.

Passados sete anos, eu sinto que agora eu começo a me desenhar uma mulher de cabelos grisalhos. Talvez filhos, quem sabe netos. Mas contando aos mais novos a história do Tião.

A viagem atrasou e fui para Dublin em 10 de agosto de 2014, coincidentemente o Dia dos Pais daquele ano. Ele não pôde ver esse sonho-coletivo se tornar palpável, mas todas as vezes que eu caminhava no chão gelado irlandês, eu pensava: eu estou pisando no meu sonho.

Chego aos 30, sendo 7 deles em luto, mas querendo viver, pra continuar fazendo aquilo que o pai ensinou: sonhar.

“Meu pai me ensinou a sonhar”/ Arquivo pessoal

 

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Como se ama na ausência? Uma homenagem de filho para pai https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-se-ama-na-ausencia-uma-homenagem-de-filho-para-pai/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-se-ama-na-ausencia-uma-homenagem-de-filho-para-pai/#respond Wed, 05 May 2021 13:03:46 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/odilson-francisco-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2280 Há algumas semanas, me deparei com o depoimento de Paulo Ferraz nas redes sociais. No dia 7 de maio completa três meses da partida de seu pai, Odilon Francisco Ferraz.

Nascido em 5 de outubro de 1944, em Cachoeira de Minas, mudou-se para Mato Grosso em 1957. Acompanhou de perto a colonização do estado e se dedicou à topografia por aproximadamente 30 anos. Nos últimos 25, se dedicou ao comércio. Faleceu ao 76 anos, em Cuiabá, após um infarto em decorrência da Covid-19.

No passado, Odilon passava dias viajando à trabalho. Paulo precisou aprender a amar na distância e na ausência. Mesmo diante da lonjura, ele e o pai continuaram próximos e grandes amigos. Nos reencontros, sentavam-se numa mesa, abriam uma garrafa de cerveja e passavam o dia conversando. Aqui em casa era igual. Meu pai era bom de prosa e de copo. Todo sábado, sentávamos na varanda, uma cerveja do lado e o rádio na voz de Moisés da Rocha, com seu samba pedindo passagem.

Escritor e professor de Literatura, Paulo faz dança com as palavras, mesmo num momento tão difícil, em um relato emocionado que traz a pergunta que muitos de nós, enlutados, gostaríamos de responder: ‘como é que vou conversar agora [com meu pai], quando o reencontro não é mais possível?’.

Como é possível continuar amando, mesmo numa distância tão mais longa que a geográfica? Numa ausência que parece tão irredutível? No livro ‘A máquina de fazer espanhóis’, de Valter Hugo Mãe, o personagem principal, Silva,  perde a companheira na terceira idade e vai morar em um asilo. Em uma das reflexões, a personagem diz assim:

“o meu projeto era esquecer tudo, era protestar contra a morte da laura convencendo-me de que, depois da morte de alguém que nos é essencial, ao menos a memória do amor deveria ser erradicada também”.

No meio da narrativa, um companheiro da casa, Anísio franco, que indica o seguinte aprendizado:

‘nada disso, senhor silva, nada disso, o que me faz correr é sempre o mesmo, uma vontade de saber mais e o de deixar contado às pessoas, nos livros. deixar nos livros aquilo que se descobre, porque um livro, com o que contém, pode ser uma fortuna eterna”.

Sabe, eu não tenho uma resposta exata à pergunta do Paulo. Mas sigo o conselho de Valter Hugo Mãe, nas palavras do senhor Anísio e entendo que, enquanto houver memória, existe amor. No mais, deixamos registrada aqui as memórias de Paulo sobre o pai Odilon:

Paulo Ferraz

Meu pai foi o meu maior modelo, o homem que mais admirei em toda minha vida e olha que tem uma penca de pessoas que admiro. Quando criança ele era pra mim um herói, eu sei que todas as crianças pensam isso e precisam acreditar em uma força sobre-humana, mas meu pai tinha poderes que eram só dele.

Passava meses na Amazônia, chegava lá por estradas de terra ou em aviões que o vento tirava da rota, e uma vez na mata enfrentava até onça, e na falta de onças tinha que se proteger dos grileiros ou das tribos que repeliam os grileiros. Com meu pai longe, tive que aprender até a falar por meio de rádio amador, câmbio.

Isso pra mim soava como aventura, mas era trabalho, e era necessidade, e era perigoso, e a gente sentia um alívio imenso quando ele voltava. Com o tempo aprendi a ver nele uma capacidade ímpar de se superar, uma inteligência rara de quem só tendo o grupo escolar aprendeu a operar um teodolito e a passar ângulos, rumos e azimutes para o papel, fechar um perímetro de quilômetros quadrados; uma inteligência que lhe permitia falar sobre todos os assuntos, e como gostava de falar, ah, como gostava.

Como aprendi com ele, e como agora puxando na memória continuo a aprender, pois tudo o que ouvi ressoa agora em mim. Por passar temporadas fora de casa, às vezes dois meses, ele me ensinou a amar à distância, a amar na ausência, a amar guardadinho no peito, pois o amor se impõe sobre o espaço, o amor se impõe sobre a geografia, o amor se impõe sobre o tempo, o amor se impõe sobre o silêncio.

Quando ele finalmente resolveu que ficaria em casa, foi quando eu saí para São Paulo e assim seguimos nos amando à distância, falando pelo telefone por mais de vinte anos, desde 1995, nos vendo nas férias, mas cada reencontro era como se nunca houvesse separação, além de pai e filho, eu já com vinte e ele com cinquenta, viramos dois bons amigos, desses que se sentam numa mesa, abrem uma garrafa de cerveja pra conversar sobre o dia a dia e o dia passa sem a gente ver.

Como é que vou conversar agora, quando o reencontro não é mais possível? Câmbio? Câmbio? Eu que há anos vinha planejando escrever um romance sobre a chegada de uma família de mineiros no Mato Grosso, uma família de mineiros com oito crianças, a nona nasceria aqui, que teve que aprender a navegar pelo rio Arinos e a extrair látex de seringueiras (eles tinham um seringal nativo, me faltou perguntar como é que acharam as árvores? Quem autorizou a extração? E aquele seringalista de Diamantino? Quem comprava a produção, o Banco da Borracha?).

Tinha tanta coisa pra perguntar… como era a vida entre os alemães? E o dia que descobri que meu pai guardava na memória palavras em alemão? Voltei a sorrir como o velho menino quando ele contou eins, zwei, drei, vier, fünf…. Como vocês se relacionavam com os “beiços de pau”? Como era mesmo a história do garoto que um dia saiu da mata gritando “Jaguaretê! Jaguaretê!”? E o dia que o Rômulo lutou com um jacaré pra salvar o cachorro? E tinha lontras, sim, eu me lembro que tinha lontras….

Ele sabia que eu andava pensando nisso, pois vez ou outra a gente tocava no assunto, falávamos do José Ferraz, militante da década de 1930 (que acabou preso em 1964, pelo visto mesmo longe de Minas seguia sendo vigiado), que aprendi a admirar, tamanha a admiração que meu pai tinha pelo meu avô.

E eu que tanto admiro meu pai, queria que meus filhos tivessem tido mais tempo com ele, que tivessem aprendido com ele tudo o que aprendi, que tivessem comigo essa mesma relação entre a fantasia e a realidade. Nessa semana, quando o medo era proporcional ao amor, eu pus os pés na Mantiqueira, pertinho de onde ele nasceu, onde estivemos juntos há alguns anos, e eu vi com meus filhos passar um bando de mutuns, mas foi como se eu os visse pelo meu pai, como se eu estivesse emprestando meus olhos pra ele, pra que ele visse a mata, pra que ele visse os pássaros pulando de um galho para o outro.

Tenho certeza de que ele foi um homem bom, foi um homem feliz e realizado, pois construiu uma vida digna com a coragem, as mãos e a inteligência, viveu mais de cinquenta anos ao lado da minha mãe, formou três filhos (a gente antes dizia, formou, hoje sei lá), dos quais se orgulhava e estava assistindo aos seus cinco netos crescerem.

Talvez por que hoje eu tenha 46 anos, há algum tempo vinha reconhecendo em mim formas e gestos do meu pai. Estávamos ficando cada vez mais parecidos, até os corações se pareciam, o dele e o meu perdem o ritmo. E num dia em que o meu disparou, ele pegou um avião e veio cuidar de mim.

Eu queria ter podido cuidar dele, estava voltando hoje justamente para ajudá-lo a se recuperar, queria pegar na mão dele e falar que estava ali do seu lado, esperando para irmos embora juntos. Mas ele partiu horas antes de eu chegar em Cuiabá.

Espero que nos seus sonhos ele tenha visto os mutuns, tenha sentido a terra úmida da Mantiqueira e as gotas de chuva que caem entre as folhas dentro da mata. Se hoje eu tenho profissão, títulos, livros é porque meu pai se arriscou por mim, por meus irmãos e, especialmente, por minha mãe (quem disse que eu estava errado ao dizer que ele era um herói?).

Não só se sacrificou, mas principalmente nos deu lições de como sonhar, lições de como vencer, lições de como respeitar, lições de como amar. Esse homem bom e amigo que partiu hoje vai deixar muita saudade e continuará sendo para mim meu modelo de pai, meu modelo de homem, a pessoa que eu sempre quis ser. Pai, como é que era mesmo a história do jaguaretê?

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O adeus a Alipio Freire, o homem que queria a Lua https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/o-adeus-a-alipio-freire-o-homem-que-queria-a-lua/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/o-adeus-a-alipio-freire-o-homem-que-queria-a-lua/#respond Fri, 30 Apr 2021 22:55:54 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/alipio-freire-creditos-ivan-trimigliozzi-memorial-da-resistencia-de-sp-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2349 por Tatiana Merlino*

Um “revolucionário de veludo”. Foi assim que um amigo definiu Luiz Eduardo Merlino, meu tio, jornalista e militante que não pude conhecer porque foi morto em 1971, aos 23 anos, em decorrência das torturas comandadas por Carlos Alberto Brilhante Ustra durante a ditadura civil-militar. Pego emprestada a expressão “revolucionário de veludo”, no entanto, para descrever Alipio Freire, meu amigo que morreu na quinta-feira passada, 22 de abril, de Covid-19.

Voz grave, sorriso largo, cabelos brancos longos amarrados num rabo. Bigodes, óculos, pele morena, dedos longos. Alto e altivo, caminhava com uma bengala, vestia calça jeans e all star. Um charme. Foi assim que o conheci pessoalmente, no início dos anos 2000, embora já o conhecesse por meio de relatos, textos, e livros sobre a ditadura, como o “Tiradentes: um presídio da ditadura”, organizado por ele próprio.

Era um homem de grandes ideais, enorme generosidade e gentileza no trato. “Rigoroso na análise e generoso no gesto”, como alguém escreveu esses dias. Tratava a todos de forma igual, sem distinção, como também contam inúmeros relatos sobre ele.

Alipio Freire ao lado de seu próprio autoretrato, na exposição "Pequenas Insurreições" que ele fez a curadoria/Daniel Garcia/Teoria e Debate
Alipio Freire ao lado de seu próprio autoretrato, na exposição “Pequenas Insurreições” que ele fez a curadoria (Daniel Garcia/Teoria e Debate)

Logo que nos conhecemos, Alipio me contou que conheceu Merlino, que haviam trabalhado juntos na imprensa. Ele foi uma das pessoas que me ajudou, ao longo de vários anos, a juntar histórias para recriar um tio que nunca conheci. Ajudou a plantar flores na lápide que habitava o meu peito. E me ajudou a conhecer mais sobre a ditadura, apresentou relatos e personagens, contou dezenas de histórias. Foi fundamental na minha formação de jornalista e defensora de direitos humanos com os temas ligados à tortura, à memória, à justiça e à militância contra a ditadura.

Foram duas décadas de companheirismo e amizade. Alipio foi e é umas das grandes referências na minha vida. Uma mistura de tio, padrinho, companheiro de luta, amigo, mestre.

Nossos primeiros anos de convivência foram no Brasil de Fato, jornal que ele ajudou a fundar e onde fui uma das primeiras a integrar a redação. Nós, os jornalistas da equipe de redação, participávamos das reuniões do conselho editorial, do qual faziam parte figuras importantes de vários setores da esquerda brasileira, entre eles, Alipio.

Eram aulas sobre conjuntura política brasileira. As análises de Alipio eram feitas de pé, voz grave, pausas, cabeça erguida. Foi também numa dessas reuniões, em 2006, que ele levantou-se quando um dos participantes fez uma consideração que desagradou a um outro. O segundo, irritado, dirigiu-se ao primeiro, de forma pouco amigável. Alipio, que estava sentado entre os dois, ergueu-se e levantou também sua bengala, impedindo que algo ali acontecesse.

Alipio começou a participar do dia a dia da redação. Todos ganhamos apelidos hilários, malucos ou impronunciáveis. Ele era o mais velho, mas o mais jovem entre nós. Foram tantas conversas no bar, piadas, risadas, histórias. Alipio chegava na redação jogando balas nas nossas mesas. E escrevia os editoriais. Ao terminá-los, pedia sempre a opinião de um de nós. Era erudito e humilde. Sempre nos tratou como iguais. Nas reuniões de pauta e do conselho, fazia desenhos e bilhetes. Nos e-mails, sempre começava com um “grande e querida camarada”.

Além das firmes posições de esquerda e da generosidade, tinha um humor único e fazia piadas que só ele podia fazer, como bem lembrou a amiga Dafne Melo, que trabalhou conosco no jornal. Nesses dias de balanço da morte do meu amigo, fui me reencontrar com ele em dezenas de mensagens de e-mail, entre elas uma em que dizia “há duas coisas das quais não podemos abrir mão:1. De nos indignarmos. 2. De dar risada –inclusive de nós mesmos, e sobretudo dos nossos inimigos”.

Alípio Freire em uma das saídas do Cordão da Mentira. Créditos: Sato do Brasil/Jornalistas Livres.
Alípio Freire em uma das saídas do Cordão da Mentira. (Sato do Brasil/Jornalistas Livres)

Quando comecei a namorar o Igor Ojeda, que o Alipio dizia ter “o melhor texto de sua geração”, pouco depois Igor foi morar na Bolívia, para trabalhar como correspondente do jornal. Alipio, vendo-me saudosa do namorado, inventou um apelido boliviano para mim, pelo qual seguiu chamando-me até hoje, como no último recado deixado em minha caixa postal do celular, dias antes de ser internado.

Já não sei qual era o ano, mas era um dia do fechamento do Brasil de Fato. Um carro da ENEL parou na frente da casa de esquina da Eduardo Prado, no Campos Elíseos, e funcionários da empresa preparavam-se para cortar a luz. Alipio saiu à porta e subiu na escada que estava apoiada no poste, onde a energia seria cortada. Os homens ficaram atônitos e um deles disse, por rádio: “Tem um vovô aqui na escada”. A luz não foi cortada.

Alipio foi um grande lutador pela verdade, memória e justiça pelos crimes cometidos pela ditadura militar. Escreveu livros, organizou debates, fez filmes, foi a escolas, participou de atos. E esteve ao lado de nós, a família de Luiz Eduardo Merlino, durante as ações que movemos contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu assassino. Esteve nas audiências, nos atos, uma presença forte e solidária.

Em 2008, quando entramos com a primeira ação civil declaratória, que tinha a intenção de exigir que o Estado reconhecesse a responsabilidade de Ustra nas torturas e assassinatos de Merlino, no período em que as audiências aconteceram, comecei a receber telefonemas ameaçadores. “Agitados os cachorros do doutor Adalberto”, disse uma voz masculina, logo depois que eu voltei de um passeio com meus cachorros. Doutor Adalberto era meu pai, já falecido àquela época, delegado de polícia que encontrou o corpo de Merlino no IML logo após seu assassinato.

As ligações seguiram. “Seus terroristas”. Havia também chamadas insistentes de um número identificado, que não dizia nada quando eu atendia. Era uma noite de fechamento do Brasil de Fato, quando ligamos de volta para o número que me telefonava sem parar. Havia uma caixa postal e uma voz masculina dizia “xoxota estuprada”. Nesta noite, ao escrever o editorial, Alipio relatou as ameaças. E ao voltar para casa, fui ‘escoltada’ por Alipio e por Danilo Cesar. Quando chegamos ao destino, Alipio desceu do carro e disse algo ao segurança do prédio. Eu jamais me esqueci ou me esquecerei desta noite.

Dias depois, quando houve a audiência no Tribunal de Justiça de São Paulo, além de ex-presos, amigos e jornalistas, também compareceu um conhecido policial civil que cometeu crimes no Dops durante a ditadura. Foi nos intimidar e falar para os jornalistas ali presentes que éramos terroristas. Alipio também estava ali, corajoso e solidário.

A solidariedade e amizade de Alipio seguiram. Ele esteve, esteve sempre, como definiu bem esses dias Delana Corazza, também amiga de Alipio. Esteve presente à cerimônia no Tuca, quando ganhei meu primeiro prêmio de jornalismo, em 2009. Esteve presente no aniversário de um ano da minha filha Catarina, a quem, num gesto tipicamente de Alipio, presenteou com uma edição de bolso do Manifesto Comunista e uma coroa de princesa e a quem chamava de “Pequena Imperatriz Proletária.”

Assim que Alipio foi internado, foi criada uma rede imensa de amor e solidariedade, composta por amigos e companheiros. Pessoas de inúmeras gerações e trajetórias juntaram-se num grupo de Whatsapp para torcer pela recuperação do nosso amigo. Amigos da prisão, da época da fundação do PT, do teatro, dos jornais que ele ajudou a fundar e de sua linda história, de arte e literatura. Gente de várias faixas etárias.

Foi nesse contexto que conheci o relato do ator Celso Frateschi, também ex-preso, que traduz a capacidade de Alipio de lutar pela vida, e de uma forma só sua, usando o humor:  “ [….] Estávamos com mais uns vinte  companheiros jogados num cativeiro da OBAN que ficava num quartel perto do Ginásio do Ibirapuera. Alipio foi levado para uma cela contígua e barbaramente torturado durante muitas e muitas horas. Durante muito tempo fomos torturados por sua tortura. Na minha lembrança, foi na madrugada que ele chegou carregado, sem nenhum movimento no corpo. Me revoltou a deformação de seu belo rosto, muito machucado, pois seus cabelos e seus bigodes foram arrancados com um alicate. O pau de arara tinha interrompido a circulação em seus membros e Alipio não conseguia se mexer. Estávamos todos assustados,  revoltados e impotentes diante de tanta violência e requintes de crueldade. Lembro que meu irmão Paulo e eu com ajuda e ajudando os outros companheiros, conseguimos encostá-lo em uma das paredes da cela. Lentamente, ele mal conseguia esticar suas pernas, respirou fundo umas duas ou três vezes, abriu o seu largo sorriso e pronunciou com um desejo verdadeiro e um pouco de deboche: ‘Ah! Quem me dera arfar docemente nos braços argentinos de Angelita!’. Nunca soube de quem escrevera esses versos, pois para mim sempre foram do Alipio. Foi um aprendizado definitivo, além da racionalidade. Todos, apesar da situação, rimos muito, o moral se elevou e nos preparamos melhor para enfrentar o “inferno”.”

Após a luta armada contra a ditadura, quando integrou a organização Ala Vermelha, Alipio foi renovando permanentemente sua militância e luta. Foi um dos fundadores do PT, era parceiro e apoiador do MST, esteve com as Mães de Maio e Cordão da Mentira, sem nunca abandonar a “ponte para a utopia”. Em diversas entrevistas que deu sobre o que viveu na ditadura, citou os versos da música “Começaria tudo outra vez”, de Gonzaguinha: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama em meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão”. Em um depoimento ao Instituto Vladimir Herzog, seguiu: “A gente só é capaz de fazer o que está colocado enquanto alternativa pela história. Errar, nós vamos sempre errar. Só não errará quem nada fizer, o que já é um erro de começo”.

Em 2008, quando foi organizado o primeiro ato no DOI-CODI, na rua Tutoia, desde a ditadura, Alipio disse uma frase que hoje Nicolau Leonel relembra: “O nosso projeto seria muito mesquinho se ele se reduzisse ao espaço de nosso tempo biológico individual. Nós temos um compromisso com os jovens, por isso eu estou aqui. Por isso continuarei em todas as manifestações. Há um compromisso de continuidade na construção de outro mundo. É óbvio que se nós da minha geração conseguirmos assistir isso, será fantástico. Mas se não conseguirmos e soubermos que estamos colocando novos alicerces para um mundo igualitário e livre, eu acho que teremos sido vitoriosos”.   

Hoje, Alipio está morto e eu assisto chorando, em looping, a este trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós, em que ele fala sobre construir uma ponte para a utopia: ‘Nós queremos a Lua, algo que seja aparentemente impossível. E nós teremos a Lua”.

Alipio Freire em frame do trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós.
Alipio Freire em frame do trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós

Ouço Alipio e sinto uma combinação de dor, saudade, amor e revolta. Penso em algumas palavras de ordem dos movimentos de luta por memória como o “Ni Olvido, Ni Perdón”, “Sem justiça não haverá paz” e “Eu sou os que foram”, que não sei de quem é a autoria, mas que ouvi pela primeira vez no espetáculo “Morro como um país”, da então Companhia Kiwi de Teatro, hoje Coletivo Comum.

Aprendi com Alipio e demais militantes e sobreviventes da ditadura que quando um companheiro morre, os que sobrevivem tem como tarefa continuar contando a história dos que morreram. Nós ainda não conseguimos fazer a ponte para a Lua. Também não conseguimos, apesar de muita luta, punir os torturadores da ditadura. E é um dos motivos pelos quais o Brasil elegeu um homem que louva a tortura, a ditadura, a morte, que representa a ditadura. E que hoje, por meio de um projeto genocida, nos mata, mata os nossos que lutaram contra a opressão da ditadura, mata Lays Machado e Alipio Freire.

Se não tivesse morrido por conta do projeto genocida de Jair Bolsonaro, Alipio seguiria lutando, e é esse o compromisso que temos de assumir, como diz o final da música de Gonzaguinha, a mesma da qual Alípio citava o começo: “Ao som desse bolero, a vida, vamos nós. E não estamos sós, veja meu bem. A orquestra nos espera, por favor. Mais uma vez, recomeçar”.

Alipio Freire, presente, agora e sempre!

*Tatiana Merlino é jornalista de direitos humanos e escritora. É coeditora do livro “Luta, substantivo feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à Ditadura”, organizadora de “lnfância Roubada: Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil” e coeditora de “Heroínas desta História: Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura”.

 

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Marielle Franco: recordar sua morte é lutar por justiça https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/#respond Sat, 13 Mar 2021 23:10:45 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/marielle-franco-mario-vasconcellos-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2293 No dia 14 de março de 2018, eu voltava para casa de trem, quando abri o Whatsapp e em todos os grupos uma única mensagem: a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados.

Eu trazia o cansaço no corpo de quem atravessa todos os dias a cidade, rodeada de outros, sentados no chão ou correndo entre um vagão e outro para vender bala a um real. Na tela do celular, um rosto semelhante ao nosso –cabelo, olhos, boca, cor– havia entrado para a triste estatística de um país onde há um genocídio em curso há mais de 400 anos.

Que a morte nos ronda, isso não é novidade. O Atlas da Violência 2020 mostra que, em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil. A cada duas horas uma mulher perdeu a vida , 68% eram negras. 

Mas a morte de Marielle trouxe um recado muito certeiro a uma ala da sociedade à qual me vejo parte. Nos últimos anos, atravessamos algumas pontes. Chegamos ao ensino superior, graças à luta incansável do movimento negro e demais movimentos sociais no Brasil, resultando em políticas das quais me beneficiei: cotas raciais, de escola pública e o Prouni (Programa Universidade para Todos).

Também aprendemos a contar nossas próprias histórias e a escrever leis. Ressignificamos os feminismos a partir de vivências pretas e periféricas e entendemos que sonhar novas geografias também era direito nosso, assim como a arte, a cultura e a diversão.

Mas nada continuava fácil. Aliás, nunca foi. No Rio de Janeiro de 2018, o cenário era bélico, com intervenção federal maquiada de auxílio na segurança pública. No cenário nacional, estávamos literalmente dentro de um golpe que havia derrubado a primeira presidenta do país. Dali a alguns meses, aconteceria as famigeradas eleições de 2018. Entre jogos políticos e fake news, um povo sem esperança.

Eu cheguei em casa atordoada. Não consegui dormir naquele dia 14. No outro, a minha tarefa no trabalho era postar nas redes sociais os vídeos, fotos e homenagens para Marielle. Era uma dor, mas também um abraço entender seu tamanho por todo o Brasil e também no mundo. No fim da tarde, fui para a Av. Paulista, em São Paulo, onde uma multidão se reuniu.

O ato daquela noite era muito mais que apenas uma manifestação. Era um funeral coletivo. Um choro e um abraço conjunto pela morte de alguém que representava um pouco do que a gente estava tentando ser.

Ao encontrar outras mulheres, a gente não dizia nada, só se abraçava. Havia um lamento profundo e sem adjetivos. Essa tristeza não foi só minha. Fiz uma pergunta nas minhas redes sociais essa semana, e algumas amigas autorizaram que eu compartilhasse com vocês os sentimentos que também as marcaram:

Estávamos hospedados no Rio Vermelho, Salvador (BA), para participar no Fórum Social Mundial. Um grupo imenso estava exausto esperando a janta. Uma pessoa da mesa do lado de fora começou a chorar muito sentida. Fui olhar no celular e li bem devagar em voz alta: ‘uma vereadora do Rio morreu. Uma tal de Marielle’. As pessoas da mesa que conheciam Marielle ficaram mal. As pessoas estavam chorando na rua, escoradas nas paredes, na mureta de retenção do mar. Eu não sabia quem era Marielle. Acordei no outro dia chorando. Eu não conhecia nada, mas no dia seguinte ela era uma mulher preta e lésbica, igual eu.” (Gisele Brito)

Lembro de estar em casa sozinha, abrir o Facebook e ler a notícia e começar a chorar. Lembro das paredes encolherem e eu sentir que estava sem esperança para o futuro. Na manifestação eu me senti menos só, com mais possibilidades de pensar alternativas. Senti muita vergonha por não conhecer o trabalho da Marielle antes dela ser assassinada, e de firmar o compromisso de conhecer as mulheres que estavam lutando enquanto vivas, enquanto produtoras de política e conhecimento.” (Cecília Garcia)

“Entrei num surto de depressão muito fundo, a ponto de ser segurada enquanto batia minha cabeça na parede gritando que queria morrer. Comecei a me tratar com antidepressivo. Era a junção de tudo que essa morte significa: uma mulher negra, uma mulher que ama outra mulher, uma mulher de esquerda, uma mulher periférica, uma mulher num cargo público.”  (preferiu não se identificar).

ato marielle franco
Ato na Avenida Paulista em homenagem a Marielle Franco/Renato Schincariol/AFP

MEMÓRIA COLETIVA

Me encontrar com as memórias dessas mulheres é um jeito de compreender e ressignificar a morte de Marielle, assim como somar forças contra aquilo que nos afeta, como o genocídio da população negra, a violência estatal contra nossos corpos e a desigualdade social. 

“Nesse cenário que vivemos, onde temos discursos de ódio e intolerância, o trabalho de memória é de extrema relevância, porque permite que esses grupos possam denunciar as violências que sofrem. A memória coletiva funciona como uma denúncia”, é o que explica Soraia Ansara, docente da USP e doutora em Psicologia Social.

Sendo as memórias coletivas as vivências que recordamos junto às outras pessoas, no momento que recordamos alguém como Marielle, reconhecemos o crime político e garantimos que sua trajetória não seja esquecida.

“Recordar isso potencializa a luta contra o genocídio. E a favor dos Direitos Humanos. Tomar as bandeiras que ela defendia — da população negra, periférica, das mulheres, da população LGBTQI+ — tudo isso é potencializado quando é recordado”, explica Soraia.

“Chegando em casa, dei uma olhada no celular, e a primeira imagem foi a de Marielle sorrindo e a notícia. Não consegui abrir a porta, fiquei parada, imobilizada, as luzes se apagaram. Lembrei de todas as mulheres que estão ou estavam em luta. Queria estar com elas. Chorei. Era um choro de medo e revolta. Naquele dia, não liguei a TV, me desconectei da internet e fiquei com o sorriso de Marielle por muito tempo no meu olhar, na cabeça.” (Carina Zacarias)

“Lembro que estava nos meus primeiros meses em Dublin, Irlanda, no 7º mês pra ser exata. Fiquei muito chocada e triste com a notícia. Lembro que fui tomar café com uma amiga e falamos sobre a importância de fortalecermos umas às outras, mesmo na distância, e do poder curativo da escuta” (Thaís Santana)

“Estava acompanhando a mesa mediada por Marielle, morava sozinha em Buenos Aires e fui tomar banho. Quando me conectei de novo, soube da notícia e me esvaziei.” (Ariane Aboboreira)

“Um sentimento de desesperança e a pergunta de como seria dali pra frente, quando calam a voz de alguém como Marielle. A semana e o mês seguinte foram muito angustiantes.” (Jaqueline Barreto)

Como disse Thaís Santana no relato acima, a escuta tem poder curativo. A memória também. Por isso, é tão importante falar dos nossos mortos e manter o legado daquilo que realizaram em vida presentes. Marielle não vive mais. Não fisicamente. Mas suas ideias e ideais estão agora impressos em leis, escolas, movimentos, nomes de ruas,  praças e o Instituto Marielle Franco reivindica também uma estátua para preservar seu legado.

O Instituto Marielle Franco lançou a campanha #MarçoporMarielleeAnderson para continuar cobrando justiça por suas mortes. Em 12 de março de 2019, aconteceu a prisão de Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, o primeiro como executor e o segundo como motorista do carro. A organização produziu um dossiê sobre os três anos de investigações em torno do assassinato, em uma linha do tempo contando os fatos e uma lista com 14 perguntas sobre o caso.

Rememorar a morte de Marielle é relembrar que esse crime não está congelado no passado. Ainda não temos uma resposta à pergunta ‘Quem mandou matar Marielle?’ e, por isso, ele está acontecendo aqui e agora.

Leia também:
Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural?

O luto como política de resiliência
Precisamos falar sobre o luto das mulheres negras 

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Dois anos depois de Brumadinho: luto, lama e luta https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/dois-anos-depois-de-brumadinho-luto-lama-e-luta/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/dois-anos-depois-de-brumadinho-luto-lama-e-luta/#respond Mon, 25 Jan 2021 22:55:51 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/rompimento-barragem-brumadinho-isis-medeiros-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2247 Joeliza Feitosa trabalhava em Belo Horizonte (MG) quando ouviu as primeiras notícias sobre o rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em 25 de janeiro de 2019. Sua maior preocupação era a filha, moradora das margens do Rio Paraopeba, em Juatuba.

Saiu correndo, com receio da chegada do rejeito no local. Pediu para a filha desocupar a casa. Ela ficou, a lama não atingiu a residência. Desde aquele dia, no entanto, tudo mudou na vida da família.

“Logo que a lama chegou, a cor do rio Paraopeba mudou. O cheiro do rio mudou. A gente não chegou perto porque ficou com medo. Mas dava pra perceber a devastação da fauna, dos peixes, da flora e, quando os dias foram passando, a morte das plantações”, relembra Joeliza, que hoje é aposentada e milita no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Já havia se passado três dias da tragédia quando a jornalista Lu Sudré chegou a Brumadinho. Era segunda-feira à tarde, as pessoas começavam a mensurar o tamanho da tragédia. Havia uma estrutura no Córrego do Feijão onde as pessoas podiam checar a lista de corpos encontrados, o que marcou sua cobertura.

“Uma das coisas mais perversas desse processo de luto era a espera e a falta de informação, porque você via as pessoas exaustas esperando algum tipo de dado e, às vezes, demorava para chegar a lista. Entrei em contato com a espera e falta de informação, que era o que mais atormentava as pessoas”, conta a jornalista do grupo Brasil de Fato.

Rio Paraopeba (MG)/ Nilmar Laje
Rio Paraopeba (MG)/ Nilmar Laje

Até hoje, foram contabilizadas 272 vítimas fatais, com ainda 11 desaparecidos. Mas não há número ou descrição que dê conta da dor e perda dos entes e também de todo um estilo de vida subsidiada por meio do rio. 

Um levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica realizado alguns dias depois do rompimento, mostra que pelo menos 305 dos quase 550 quilômetros do Rio Paraopeba foram contaminados por rejeitos. Foram 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que não apenas poluíram o rio, mas também toda uma comunidade que vivia à base da agricultura e pesca. A Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg) estima que entre 350 e 400 produtores rurais foram impactados. 

“Depois do envenenamento do rio, a Vale acabou com a nossa vida, com o nosso futuro, com nossos sonhos, com os nossos investimentos. Nosso sonho foi desmoronado. Nós temos um ao outro. Aos dois anos do crime, o que nos move é a luta, a esperança pela punição e, principalmente, para que a vida comece a valer mais do que o lucro”, diz Joeliza, que, assim como outros moradores e movimentos sociais, entende a mineradora como a verdadeira culpada da tragédia.

O custo de vida é alto e, com a pandemia, os preços dos alimentos subiram ainda mais. Antes da contaminação, ainda era possível se alimentar das plantas ou animais. “Não se pode mais nem chegar próximo ao rio, há placas recomendando que não se tenha nenhum contato”.

Mesmo passados dois anos, ainda não houve justa reparação à comunidade atingida. Havia uma ação no valor de R$54 bilhões, sendo R$26 bi para os danos sofridos pelo Estado e 28 bi aos danos morais e sociais da comunidade. 

A mineradora Vale tenta agora negociar o valor com o Estado a portas fechadas, sem a participação dos atingidos. Em nota, a empresa reconhece sua responsabilidade e diz que até o momento foram pagas 8.700 indenizações individuais.

Em dezembro de 2020, em torno de 1 mil atingidos realizaram manifestação no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para reivindicar participação nas negociações com a Vale, prorrogando o auxílio emergencial para a população até janeiro de 2021. Hoje, é a Vale que decide quem recebe ou não a ajuda.

A água para beber precisa ser comprada, pois mesmo quando ela escorre da torneira fornecida pela Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), vem suja e com mal cheiro. “Nós temos diarreia, dores estomacais, alergias, incômodos diversos. E obrigados a ter uma despesa a mais com água mineral”.

Joeliza Feitosa durante manifestação em prol dos atingidos em Brumadinho/Nívea Magno

ATINGIDOS A LONGO PRAZO

Poucos meses depois, a filha de Joeliza engravidou. Seu bebê tem oito meses, mas ao contrário dos outros dois filhos, a criança sofre com inúmeros problemas de saúde, que a família entende como resquício da contaminação local. 

“Ele tem manchas na pele, problemas constantes nos rins, infecção de urina. Temos medo que seja em função da contaminação por metais pesados dada a proximidade que eles moram do rio Paraopeba. Até hoje os médicos não conseguem identificar, temos fé em Deus que não seja algo muito grave, mas o medo existe”.

Problemas de pele, coceira, alergia e outras doenças respiratórias são os problemas mais comuns, mas a depressão também assola a vida das comunidades atingidas. “Muita gente com depressão e houve muitas tentativas de suicídio, pois muitas pessoas estão sem nenhuma expectativa. Não conseguem mais planejar, sonhar ou resolver seus problemas diários. Aqui é uma cidade onde o emprego já era escasso. A situação foi se agravando com o crime da Vale e só piorou com a pandemia. As pessoas sentem na pele, na mente e no corpo a falta d’água, de comida e de trabalho”, relata Joeliza.

LUTO COLETIVO

A psicóloga Camilla Veras, mestre e doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP, lançou na última semana o livro “Lama, luto e luta” ( disponível para venda pela Editora Dialética), onde narra sua experiência de campo diante do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG),  no ano de 2015. O livro reflete sobre os lutos coletivos e a ressignificação por meio da luta comunitária.

“O sofrimento não é apenas individual, e poderia ter sido mitigado e minimizado com prevenção, segurança e monitoramento”, afirma. “Há muitas perdas em um processo como esse. Perda do modo de vida antes do rompimento; perda do rio, perda da terra, do trabalho, da casa onde fazia o jantar com a família ou de uma fase da vida. Existe um antes e um depois na vida das pessoas. São vários lutos, é difícil falar de um só. Este luto do campo mais simbólico afeta a vida das pessoas, pois fica como registro e marca do acontecimento, resultando em sofrimento psíquico”, explica.

O livro traz o conceito de trauma psicossocial, do salvadorenho Ignácio Martín Baró. Ele explica que, diferente do trauma individual, o trauma psicossocial é projetado como mecanismo de Estado, que além de produzir as políticas de morte, também se baseia nas políticas de destruição simbólica. 

“A própria  pandemia mostrou como o Estado brasileiro tem banalizado a morte. Não existe somente uma irresponsabilidade, mas um projeto que aposta na ausência de qualquer proteção social. O sofrimento não é de ordem natural.

O livro denuncia o modelo colonial e predatório da mineração brasileira, que, segundo Camilla “arranca da nossa terra riquezas, destrói territórios, contamina o solo e as águas, explora trabalhadores e despeja rejeitos e dejetos sob populações campesinas, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. Mesmo depois de 5 anos, há pessoas lutando para serem reconhecidas como atingidas, lutando por indenizações, reassentamento. São situações que não foram resolvidas e que agravam o luto”.

ESCUTA ATIVA

Camilla alerta que em situações como essas os voluntários devem agir em consonância com a política pública local, até mesmo para evitar mais especulação da dor da população. “Há, muitas vezes, uma fetichização do sofrimento. Existem órgãos coordenados pela política pública. Caso se proponha a ajudar, é importante estar respaldado e integrado às diretrizes e orientações da política de saúde local. É importante tratar com respeito as populações e histórias, para não ser mais um agente de violação. Estabelecer uma escuta sensível que não abra questões que sejam difíceis de acompanhar e ajudar a dar o contorno necessário”.

Parece óbvio, mas é preciso pedir autorização antes de gravar ou fotografar uma pessoa. “Perceber o território, muitas vezes, é tão valioso quanto um relato. O relato é pré-moldado para o que se espera, já que há tanta gente fazendo as mesmas perguntas. Às vezes, numa caminhada ou uma procissão você consegue perceber ainda mais coisas”, diz a psicóloga.

Com o passar dos dias, a jornalista Lu Sudré entendeu que tinha que tomar cuidado com algo muito simples, mas que ainda não tinha se dado conta: o tempo verbal de suas perguntas. “Percebi que elas estavam no meio fio entre entender que a morte havia chegado para o filho e ter uma esperança de que ainda havia vida. Dizer ‘quantos anos tem seu filho’ e não ‘tinha’, por exemplo. Na primeira vez que eu falei no passado, a pessoa respondeu no presente. Comecei a tomar cuidado com o tempo verbal das coisas que estava falando para não fazer aquela pessoa sofrer ainda mais, não antecipar o processo de luto que ela estava vivendo”, relembra.

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O luto como política de resiliência https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/27/o-luto-como-politica-de-resiliencia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/27/o-luto-como-politica-de-resiliencia/#respond Sun, 27 Dec 2020 13:00:43 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/cemiterio-vila-formosa-creditos-leubritto-agencia-mural.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2192 por Beatriz Prates e Julia Ferry*

O clássico da nouvelle vague francesa, “Hiroshima Meu Amor”, ressignificou através do olhar cinematográfico as noções de memória individual e coletiva. Com uma construção narrativa que transita entre o documentário e a ficção, o filme de Alain Resnais registra o movimento de uma câmera que percorre museus, fotografias e documentos que delatam a devastação da bomba atômica, acompanhada por um encontro entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês.

Em uma das cenas mais paradigmáticas do longa, os corpos dos amantes, entrelaçados na cama, aparecem envoltos por poeira nuclear. Os diálogos dos personagens são infalivelmente interpelados pela persistência da memória. Para ele, memórias da guerra e suas sequelas, para ela, a insistente recordação de tragédias pessoais. 

“Você não viu nada em Hiroshima” é o que diz o arquiteto à atriz, ao que ela lhe responde: “Eu vi tudo”. Ela descreve o que pôde ver nesses registros que ficaram, ao que ele reforça que ela não viu nada, pois não se tratava da verdade do vivido, mas de registros restantes do trauma. Esse jogo discursivo entre o ver e o não ver, o vivido e o imaginado, a memória e o esquecimento e a presença e a ausência, são confrontados e desmontados no diálogo entre os dois amantes.

Esse encontro entre anônimos, ambos marcados pelas suas perdas pessoais e históricas, alicerçado na memória coletiva dos acontecimentos de Hiroshima, realiza-se através da constatação da condição de vulnerabilidade que marca suas existências. 

Há presente, antes de uma hierarquização do sofrimento e da dor, uma partilha da perda, em que cada um tenta endereçar e dizer ao outro a sua experiência singular, atravessada pela catástrofe de dimensão política, que possibilita o encontro de alteridades.

O filme, nesse sentido, inventa uma linguagem para retratar a perda, um recurso que se faz urgente e pertinente para o contemporâneo, especialmente neste ano disruptivo decorrente da pandemia da Covid-19. A grave crise sanitária e econômica atual nos reposiciona irremediavelmente frente a desassossegos humanos fundamentais.

Luto como elaboração da perda

Como falar de uma perda? Como realizar o luto? Questões ontológicas que tocam não só a vida de cada uma das pessoas, mas se estendem como enigma, referência e preocupação da cultura, do social e do político. Afinal, a experiência da perda se faz presente na realidade de todo o planeta, em diferentes proporções e formas de afecção.

Muito se tem falado e escrito sobre o luto como um processo imprescindível e necessário na fratura do contemporâneo. Há a reivindicação e apelo para que possamos inventar, enquanto coletivo, formas sociais de elaboração e simbolização da perda, sejam das que nos tocam singular e intimamente, sejam as que envolvem aqueles que desconhecemos e nos são distantes.

A reivindicação do luto como um recurso político e universal, desmonta formas de organização das subjetividades e da vida coletiva estruturantes da política do cotidiano. Esta reivindicatória se estende em assumir os laços substancialmente relacionais que nos envolvem, em que somos todos condicionados e atravessados pela perda, tanto de si mesmo, como dos outros. O luto como bem comum e compartilhável assume uma valorização e consideração pelas mortes, ao mesmo tempo em que denuncia as desigualdades de enquadramentos que condicionam o conjunto das vidas.

A desumanização política de corpos

Como argumenta a filósofa contemporânea Judith Butler, as vidas que não são passíveis de serem enlutadas são consequentes das formas de violência que organizam as sociedades capitalistas neoliberais, em que segmentam os sujeitos entre corpos que pesam e corpos que importam.

A desumanização política de corpos e a obstaculização do luto, portanto, não têm início com a pandemia, sendo antes produtos da forma mercadoria que marca a sociabilidade capitalista. No Brasil, agravado pela condição de país periférico e dependente, essa constatação é amplamente verificável. Em 2019, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou indicadores sobre saúde no planeta e declarou que o país ostentava o maior número absoluto de assassinatos no mundo.

E segundo o último Atlas da Violência, que analisa dados divulgados pelo Departamento de Informática do SUS – DATASUS, uma das principais expressões das desigualdades raciais no Brasil é a forte concentração dos índices de violência letal na população negra.

Enquanto jovens negros figuram como as principais vítimas de homicídios do país e as taxas de mortes de negros apresentam forte crescimento ao longo dos anos, entre brancos os índices de mortalidade são muito menores (e em muitos casos apresentam redução). Ainda de acordo com as informações do Atlas, em 2018, a cada duas horas uma mulher foi assassinada no Brasil, totalizando 4.519 vítimas, com preponderância de vítimas pretas ou pardas.

Parte significativa dessas mortes decorre da própria forma de organização do Estado. As desigualdades nos indicadores de acesso a serviços de saúde e assistência social são abissais e aprofundaram-se com a pandemia, abreviando de maneira perene inúmeras vidas. Além disso, a lógica de hipertrofia da punição e o encarceramento em massa são responsáveis pelas mortes diárias de incontáveis jovens periféricos e policiais. 

O penúltimo Anuário de Segurança Pública, divulgado em 2019, destaca que, naquele período, enquanto o número de assassinatos no Brasil caiu pela primeira vez em três anos, o número de pessoas mortas pela polícia bateu recorde, chegando a 6.220 casos, o que significa dizer que 1 em cada 10 mortes violentas no país foi causada por um policial. A título de comparação, a polícia dos Estados Unidos da América, que foi alvo de protestos recentes em cidades de todo o mundo dado o caráter letal e racializado que também marca sua atuação, matou 17 vezes menos do que a polícia brasileira em 2019.

Interpretar essa seletividade e a aparente contradição que reside no fato dessas mortes serem operadas pelo Estado (e se justificarem juridicamente) demanda uma compreensão a respeito de outra categoria, a assim denominada forma jurídica. 

Isso porque o direito é uma das formas engendradas pela sociedade capitalista para organizar e garantir a produção e reprodução da sua vida material em relações de produção (capital e trabalho). E dado que a propriedade escrava e o tráfico negreiro foram o eixo da economia que se montou no Brasil, a arquitetura de formação do nosso arcabouço jurídico relacionou-se diretamente com essa forma de organização do trabalho e suas nefastas consequências. 

Aliás, chama a atenção que no contexto de construção e legitimação do Estado-Nação, a codificação do poder punitivo estatal tenha sido priorizada, resultando na elaboração de um Código Criminal em 1830, antes mesmo do Código Comercial e da Lei de Terras.

Ou seja, o desenvolvimento desse instrumento foi indispensável para assegurar estabilidade interna e o controle da ordem pública, operando, até os dias atuais, como garantidor da distribuição desigual (e, repise-se, legal) da riqueza e da execução de negócios e relações contratuais.

É preciso insistir no luto

Por isso, a construção de uma política baseada no luto como recurso primordial da vida social precisa partir também de uma constatação a respeito das limitações do direito e dos operadores jurídicos. Nesse sentido, pertinente questionar e problematizar a crença de que as medidas institucionais e jurídicas existentes são capazes de antecipar e resolver na totalidade a garantia da vida e a reparação pela perda.

Em novembro desse ano, pouco após o dia dos finados, esse país que mata cidadãs e cidadãos em proporções maiores que as de países em guerra impôs seu destino trágico às histórias de João Alberto, Emily e Rebecca. Três vidas e trajetórias diferentes, violentamente entrelaçadas pelos crimes de raça e classe que as acometeram. 

João Alberto foi assassinado pelos seguranças da rede de supermercados francesa Carrefour, e Emily e Rebecca vitimadas pelo estado enquanto brincavam na porta de casa no Rio de Janeiro. Nesse ano em que o cotidiano teve sua programação interrompida pela pandemia, o genocídio da população negra segue aflitivamente desestruturando vidas no Brasil.

Escrever e contar sobre essas mortes é, de algum modo, assumir como verdade o fracasso em dizê-las. Isso porque diante do absurdo, do traumático e do inconsolável, a linguagem sempre fracassa.

Como lidar com essas perdas sem evocar uma enunciação melodramática, condenatória ou meramente denuncista? Como tornar a dor, a história e a emoção, como apontou Didi-Huberman, nossos bens comuns? Como contaremos coletivamente essas histórias, essas vidas, essas mortes?

Como mostra a própria Psicanálise, o luto, muito ao contrário de um processo natural e inevitável que sucederia uma perda, mais envolve um movimento de simbolização complexo que implica o sujeito e o coletivo em uma invenção e reinvenção da linguagem.

É uma necessidade e urgência do presente insistirmos em contar sobre essas vidas, na insistência de que o afeto aflitivo e inconsolável que suas mortes evocam mobilizem as subjetividades, a política e a realidade.

Torna-se urgente transformar o luto em recurso político, como colocou Judith Butler, pois isto implicaria em criarmos laços sociais a partir do senso da perda, transformando as relações de alteridade e nossas sensibilidades. Pois, ainda com Butler, se há uma verdade sobre o luto, é que jamais sairemos os mesmos neste processo inevitavelmente transformador. Como demonstrou Freud, o luto, ao contrário da paralisia melancólica, exige um movimento, uma atividade dos sujeitos, uma aposta na linguagem, embora sempre precária, mas resiliente.

Se o historiador Didi-Huberman expressou que diante do inimaginável, imaginar é um compromisso ético e político, fica como desafio e necessidade, diante destas perdas, nos implicarmos coletivamente com suas memórias, reivindicar justiça, dizer sobre o indizível, insistir no luto, apesar de tudo.

 

*Beatriz de Santana Prates – Graduada em Direito, especialista em Criminologia e Direito Penal pelo ICPC e mestranda no Programa de Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Julia Ferry – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP.

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