Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/vamos-falar-sobre-o-privilegio-branco-de-morrer-de-morte-natural/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/vamos-falar-sobre-o-privilegio-branco-de-morrer-de-morte-natural/#respond Tue, 15 Dec 2020 00:29:20 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/parem-de-nos-matar-creditos-luna-costa-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2182 Eu poderia iniciar este texto dizendo que faz dez dias que as primas Emily Victória da Silva e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos foram assassinadas na porta de casa, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro (RJ). 

Ou pouco mais de um ano do massacre de Paraisópolis (SP), onde 9 jovens foram mortos por estarem se divertindo no espaço público.

Ou quase um mês do assassinato em público de João Alberto Freitas, em um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre (RS). Mais de mil dias que não temos respostas de quem matou, quem mandou matar Marielle Franco.

Ou algumas horas da violenta morte de…

A cada 23 minutos uma pessoa negra é morta no Brasil. Antes de você terminar esse texto, pode ser que mais uma mulher ou homem negro seja morto em algum canto do nosso país.

Dói. Chega a doer tanto que, muitas vezes, paralisa. Faz mais de duas semanas que estou tentando escrever esse texto, mas a palavra faltou, a palavra se dissipa toda vez que não dá conta da realidade. Mesmo escrevendo sobre o tema recorrentemente, nada disso é parte do ciclo natural da vida. Que sejam dados nomes aos bois. Parafraseando Chico Science, o Estado é racista e mata gente inocente.

Muitas vezes me pergunto sobre o papel de minha escrita no mundo, enquanto a cada palavra mais um de nós cai. A frustração bate forte. Recordo que para eu falar sobre isso hoje, muita gente veio antes de mim (Luiz Gama, Antonieta Barros, Almerinda Farias Gama) e tantos outros que, em seu tempo, ou também neste agora utilizam suas canetas para denunciar o racismo estrutural. Prossigo.

‘Enquanto a gente morre de bala’

Diante da morte de João Alberto entrei em contato com um texto de Tatiana Nascimento. A palavreira, doutora em estudos da tradução e brasiliense o escreveu em agosto, diante do alvejamento de Jacob Black por policiais nos Estados Unidos. “O direito à morte natural é um privilégio branco” é o verso-título do poema que se segue:

enquanto a gente morre de bala
y c diz que morre de dó
enquanto a gente morre de fome
y vc diz que morre de pena
enquanto a gente morre de raiva
y você diz que morre de culpa

mas não morre, não,
né, vossa mercê?
de soco
de susto
de medo
de sua pele

alva; que o alvo
do ódio letal, até na
boca-tua piedade blazê,

é
todo
mundo
que não
parece gente

feito o sinhô acha

que gente deva de ser.

#paremdenosmatar

O poema materializou o hiato que vejo entre mortes brancas e negras e que, tantas vezes, não dou conta de traduzir. “essa disparidade entre as vidas que são tratadas como importantes (brancas) y as que são dizimáveis (racializadas como negras, indígenas) é o ponto de percepção pra escrita desse poema, mas também pra noção de que o maior privilégio branco desfrutável quase incontestavelmente é a prerrogativa de humanidade ser branca, remeter a um sujeito branco”, explica a palavreira.

Tatiana faz questão de manter seus dizeres em caixa baixa, imprimindo na escrita a individualidade que se perde em um mundo que exige de nós, negros e negras, um único padrão. “a colonialidade é uma máquina constante atuando na produção de valores de vida e valores de morte hierarquicamente distribuídos por raça/cor/etnia”, diz.

No Ensaio “racismo visual / sadismo racial: quando (?) nossas mortes importam” (n-1, 2020), a escritora analisa como a produção imagética audiovisual, a mesma que nutre imaginários, senso comum e pedagogias sobre o viver, pode acabar se utilizando da banalização das mortes para sustentar um moralismo antirracista da própria branquitude.

“nossas mortes são oferecidas em sacrifício pra que as consciências brancas antirracistas sejam ativadas. e se isso não é o sadismo racial colonial com requintes, é o quê?”, questiona.

Segundo o Atlas da Violência 2020, 75,7% das vítimas de homicídios são pretas e pardas. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%. Segundo a ONG Rio da Paz, 12 crianças foram mortas por armas de fogo no estado do Rio de Janeiro em 2020.

Para Tatiana, a violência pode ser encarada como a metodologia de estruturação do racismo, mas que muitas vezes acontece de modo imperceptível e até banal, já que a maioria da população foi acostumada a conviver com a morte negra estampada estereotipadamente e de forma sensacionalista na televisão.

“mesmo que a alta frequência de assassinatos de jovens negros no brasil seja desesperadora pra nós, e pouco discutida criticamente, ela é transparente no que abunda: as pessoas foram acostumadas pelo “jornalismo policial” a almoçar assistindo um desfile de corpos negros mortos na tela de tv. mortes “normalizadas” e tratadas como bem público alimentam a sensação de segurança do ‘cidadão de bem'”, pontua a palavreira.

Ato Vidas Negras Importam/
Ato Vidas Negras Importam/Junho de 2020 (SP)/ Semayat Oliveira/NMP

Necropolítica: a política da morte 

Mas por que essas mortes são normalizadas? Ao longo de 2020, me deparei muitas vezes com a palavra necropolítica ou política da morte. Eu tinha uma vaga ideia do que poderia significar, mas não compreendia muito bem como aplicá-la. Cansa ter que aprender tantos conceitos para descrever aquilo que se vive na prática, ao atravessar a rua ou entrar no supermercado, mas é preciso aprofundar o assunto para debatê-lo de frente. Não apenas entre nós, alvo certeiro e cansado dessa estrutura racista, mas também a branquitude. 

O termo foi criado por Achille Mbembe, filósofo africano de Camarões, negro, historiador e teórico político que se debruça sobre isso no ensaio Necropolítica. “Mbembe diz que necropolítica é uma política da morte adaptada pelo Estado. É um fenômeno, onde o Estado vai escolher aqueles corpos que são descartáveis ou não são descartáveis. Aquelas pessoas que o Estado mata ou deixa morrer”, contextualiza a advogada, mestre e doutora em Direito pela USP, Allyne Andrade

Exemplo disso é quando o Estado deixa de construir uma política de prevenção às populações negras e pobres diante da pandemia de Covid-19. A ONG Instituto Polis divulgou um levantamento com dados de 1 de março a 31 de julho que apontam que homens negros foram os que mais morreram por Covid-19.

A necropolítica opera também quando o Estado não regulamenta normas ambientais, não impedindo que garimpeiros, grandes empresas e  grileiros avancem sobre o território indígena, levando doenças e a contaminação da água, está permitindo que a morte seja levada para povos indígenas.

Segundo a especialista, o corpo negro é visto, muitas vezes, como um corpo criminoso, em especial os homens negros. “A polícia assassina pessoas comuns porque acha que elas são perigosas e a gente já viu pessoas mortas segurando guarda-chuva, andando na sua própria moto ou carro. Nós temos uma polícia militarizada que está em constante guerra. Quem são os inimigos? Supostamente, o inimigo [para eles] seria o tráfico de drogas. Mas a gente vê que os inimigos são os corpos negros, periféricos e subalternaizados”.

‘A cor da violência policial: a bala não erra o alvo’, novo relatório da Rede de Observatório da Segurança, mostra o retrato da dinâmica racista da letalidade brasileira em diferentes estados brasileiros:  97% dos mortos pela polícia na Bahia são negros; Ceará não notifica a cor dos mortos em 77% dos casos; Nove em cada dez mortos pela polícia são negros em Pernambuco; 51% da população do RJ é negra, mas entre os mortos pela polícia negros são 86% e São Paulo vê aumento da letalidade policial e entre os mortos 64% são negros. 

A necropolítica pode operar também na educação, quando a política educacional se nega a disseminar de determinados saberes –como história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo– ou, então, quando há falta de investimento da escola pública. “Isso também ceifa vidas. Embora não seja uma morte matada, uma morte física, é uma morte das potencialidades, uma morte do espírito, é uma morte do desenvolvimento”, complementa Allyne.

É importante lembrar, no entanto, que embora o termo esteja sendo utilizado agora, as práticas de morte vêm de muito antes, com o próprio processo de escravização e colonização do território e dos corpos. “Esse não é um processo que começa hoje, é um processo que começa com a colonização, com a escravidão, a escravidão que marca esse corpo negro como um corpo descartável, como um corpo matável”, relembra a advogada.

A força do movimento negro contra a necropolítica

O cenário é desanimador, mas é imprescindível trazer o importante trabalho que vem sendo desenvolvido pelos movimentos negros e indígenas na denúncia do racismo contra nossos corpos. Se hoje os dizeres “Vidas Negras Importam” e “Parem de nos matar” ganham as ruas de todo o país, é porque há muita gente trabalhando nisso há muitos anos. Destaco abaixo o trabalho de algumas organizações que vêm ampliado a discussão antirracista no Brasil, entendendo, porém, que os movimentos são muitos e vale revisitar essa lista muitas vezes ainda:

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Quem morre são os outros https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/05/23/quem-morre-sao-os-outros/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/05/23/quem-morre-sao-os-outros/#respond Fri, 24 May 2019 01:10:25 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/Imagem_Principal_REPRODUÇÃO.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1711 E a escrita?,
se pergunta o mesmo Karl Ove em outro momento.
O que é a escrita senão a morte? Letras?
O que são as letras senão ossos num cemitério?

O escritor Rômulo Zanotto fez uma longa pesquisa sobre como a morte foi abordada na literatura e me deu a honra de publicá-la. Ele começa com Fernando Pessoa, que nos oferece a melhor definição de morte que eu já vi. “A morte é a curva na estrada”. “Morrer é só não ser visto”. É isso. Morrer é simplesmente não ser mais visto. Guimarães Rosa não fica para trás: “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. 

Rômulo tem uma inspiração forte para escrever sobre a morte. Ele é marcado pela morte prematura do pai, em decorrência de uma cirrose hepática causada por alcoolismo. Rômulo tinha 12 anos. Ele exumou os ossos do pai e se deparou com uma caveira familiar. T aí a última fala de Hamlet:  O resto é silêncio.

Boa leitura. Eu adorei.

Quem morre são os outros

Por Rômulo Zanotto

 Um ensaio sobre a vida, a morte e a literatura.

Quem sabe o que o amanhã nos trará? foi o último verso escrito por Fernando Pessoa, o poeta que escreveu também que a morte é a curva na estrada e que morrer é só não ser visto, antes de fazer a curva e ficar invisível.

A gente morre é pra provar que viveu, disse Guimarães Rosa, o homem que escreveu que as pessoas não morrem, ficam encantadas, no discurso que o tornou imortal na Academia Brasileira de Letras. Ficou encantado três dias depois.

Quando despertarmos de entre os mortos, perceberemos que nunca vivemos, escreveu o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, no último ato de sua última peça, Quando despertarmos de entre os mortos.

Morre-se sem saber pra onde, escreveu Clarice Lispector, a mulher que na certa morreria um dia. E seria como se já soubesse morrer porque antes tivesse estudado de cor a representação da morte: morrer é um instante, logo passa, eu sei porque acabo de morrer com a moça. A moça era Macabéa, personagem de “A Hora da Estrela”.

A vida é só o tempo de se contar um, calculou Shakespeare, e o resto é silêncio.

Dos parágrafos acima, os autores estão todos mortos, destroços de ossos. Nós que aqui estamos, por vós esperamos, lê-se no cemitério em Paraibuna, São Paulo. A frase virou nome do consagrado documentário de Marcelo Masagão sobre a história do século XX.

Nós, os ossos, esperamos pelos vossos, diz outra variação sobre o mesmo tema: uma inscrição no cemitério de Évora, em Portugal, apropriada como verso por Caetano e Jorge Mautner na mesma música em que eles cantam que no cemitério, pra se viver, é preciso primeiro falecer. E que morre-se assim. E de supetão.

Isso vindo de Caetano, que desde os anos 60 sabe que adiante, um dia, vai morrer; de susto, bala ou vício, e que é amigo de Gilberto Gil, aquele preto que Caetano gosta e que não tem medo da morte, mas medo de morrer sim.

A morte é tão banal, escreveu Paul Auster. E no entanto, quando ela acontece com a gente, como ela é cruel.

O homem diante da morte

Poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos, escreve Karl Ove Knausgard, escritor norueguês, em  “A Morte do Pai”. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em ambientes isolados: os corredores que levam até eles são ermos, com elevadores e acessos privativos, e, mesmo que acidentalmente topemos com eles, serão apenas corpos empurrados sobre macas, sempre cobertos por lençóis. Quando deixam o hospital, fazem-no por uma saída própria e são transportados em carros com vidros escurecidos, nas igrejas são velados em salões sem janelas, durante o funeral estão em caixões lacrados, até afundarem numa cova ou serem consumidos no calor de um forno.

E vai além: Os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em carros comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença faz? Porventura o destino que o aguarda na cova vai ser melhor só porque não o presenciamos? Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa. Ele não vai morrer outra vez.

Quando os heróis morrem

E Karl Ove não para: Mendigos que morrem congelados em bancos de praça ou debaixo de marquises, suicidas que saltam de prédios altos ou pontes, senhoras idosas que despencam de escadarias, vítimas presas nas ferragens de veículos, o garoto embriagado que cai na água depois de uma noitada na cidade, a garotinha que vai parar debaixo do pneu de um ônibus, por que a pressa em ocultá-los? Decoro?, pergunta-se.

E responde com outra pergunta:O que seria mais decoroso que permitir ao pai e à mãe daquela garota encontrá-la uma ou duas horas mais tarde, deitada na neve ao lado do local do acidente, a cabeça esmagada tão visível quanto o restante do corpo, o cabelo empapado de sangue e o casaco imaculado? A céu aberto, sem segredos, do jeito que estava. Mas mesmo uma hora na neve é impensável. Uma cidade que não mantenha seus mortos longe dos olhos, que os deixe jazer nas ruas e calçadas, parques e estacionamentos, não é uma cidade, e sim um inferno. Não importa que esse inferno reflita de modo mais realista e profundo nossa conduta. Sabemos que ela é assim, mas nos recusamos a encará-la. Eis o ato coletivo de repressão simbolizado no ocultamento de nossos cadáveres”, finaliza ele, num raciocínio tão eloquente quanto literário.

De forma menos artística e mais tecnicista, o historiador francês Philippe Ariès também escreveu sobre o tema. No livro “O Homem Diante da Morte”, perpassa os últimos mil anos da história ocidental para contar como a morte passou a este cenário esterilizado dos hospitais que conhecemos hoje, escondida e calada. A partir do Século XVIII, com a noção fortificada de individualidade em detrimento à comunidade, a morte passa a adquirir um sentido dramático e ser encarada como transgressora: considera-se que a morte “rouba” a pessoa de seu cotidiano, de sua vida, de sua família.

Depois, advinda a modernização da medicina e as mudanças dos hábitos sociais, a partir dos anos 1930, a morte “some” definitivamente. Passa a ser socialmente necessário que ela seja ocultada entre as paredes de um hospital, asséptica e imediatamente esquecida. Lava-te do rosto o assassinato, meu príncipe, e lança um lânguido olhar à nova Dinamarca, nos parece dizer a sociedade sobre a morte e sobre o luto, com a mesma pressa de Gertrudes a Hamlet: antes que se gastem os sapatos com que seguiu o enterro de seu pai. Como se o que os olhos não vissem, o coração não sentisse.

E foi assim que, se, um dia, em algumas culturas – como na antiga província de Santa Cruz, a que hoje “vulgarmente” chamamos Brasil – pai, mãe e irmãos não só matavam com as próprias mãos o parente moribundo para aliviar-lhe o sofrimento como também lhe comiam a carne a fim de que uma coisa tão baixa e vil como a terra não lhes consumisse o corpo de quem tanto amavam (que sepultura mais honrada lhe poderiam dar que metê-lo dentro de si e agasalhá-lo para sempre em suas entranhas?), hoje a sociedade isola os velhos e os moribundos naquilo que Norbert Elias chamou de “bastidores da sociedade”.

A Arte de Morrer

Até morrer, vivemos como se fossemos viver para sempre. Só nos lembramos da morte na sua presença iminente: um diagnóstico incurável, o testemunho de um acidente, uma morte na família. Antes disso, quem morre são os outros.

Não a todos, talvez, assim aconteça, diz Guimarães Rosa. Ou, quem sabe, só tenham noção disso os já mais velhos, os mais acordados, complementa. Na obra de Tolstói, Ivan Ilitch descreve de forma eloquente este salto da morte, do abstrato para o particular; do sabê-la intelectualmente para o senti-la na pele; da verdade vaga e genérica da morte para sua verdade pessoal e intransferível; da realidade em terceira pessoa para a realidade na primeira.

O silogismo, escreve Tolstói, Ilitch aprendera na lógica de Kiesewetter. “Caio é um homem, os homens são mortais, portanto Caio é mortal”, a vida toda lhe pareceu correto quando aplicada a Caio, mas nunca aplicado a ele. Que Caio, um homem qualquer, fosse mortal, era perfeitamente justo. Mas ele não era Caio, não era um homem genérico e sim uma criatura distinta de todas as outras. Ele, Ivan Ilitch, era Vânia, com mamãe, com papai, com seu irmão, com os brinquedos, o cocheiro, a babá, depois com a irmã, com todas as alegrias, tristezas e entusiasmos da infância, da juventude, da mocidade. Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listada, de que Vânia gostara tanto!? Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele, daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? Fizera um dia tanto estardalhaço na Faculdade de Direito por causa de uns pierogui? Estivera Caio assim apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal?

Caio é realmente mortal, pensava Ilitch, e está certo que ele morra. Mas quanto a mim, Vânia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e ideias, o caso só pode ser outro! Era assim que ele se sentia: não poderia ser que Ilitch tivesse que morrer. Seria terrível. Como se a morte fosse uma aventura pertencente a Caio apenas, e de modo algum a ele.

Juiz de Direito, vaidoso, Ilitch pensava pela primeira vez na sua pequenez. Ele, que tinha todo mundo em suas mãos  (mesmo as pessoas mais importantes e convencidas), a quem bastava escrever determinadas palavras para que aquelas pessoas importantes, autossuficientes, fossem conduzidas à sua presença na qualidade de acusados ou de testemunhas; a quem, se ele não convidasse para sentar, ficariam em pé, na frente dele, respondendo as perguntas que ele fizesse, se via agora vulnerável, pequeno, ínfimo, infinitesimal.

Tolstói

De tanto descrever pormenorizadamente o trespasse de seus heróis, Tólstoi se tornou uma espécie de especialista em morte da literatura. Em “A Morte de Ivan Ilitch”, além de ilustrar muito bem que quem morre são os outros, o russo também consegue evidenciar com precisão como a iminência da morte destrói todos os véus (ou biombos, como chama o escritor) que a separam da vida.

Durante um conserto doméstico (Ilitch foi retirar uma cortina), o personagem cai, acidenta-se num móvel, e tem início a sua saga moribunda. Num dos capítulos, em um flashback, o personagem remonta obsessivo ao momento em que tudo – a sentença de morte – aconteceu, tentando concertar tudo (concertar mesmo, orquestrar, colocar ordem e sentido): Então é verdade que aqui, junto a esta cortina, eu perdi a vida?, pergunta-se el.Será mesmo? Como é terrível e estúpido. Isso não pode ser.

Ao pensar na morte, Ilitch sai evocando, um após outro, pensamentos que substituam aquele. Enxota-os como falsos, incorretos, doentios, colocando outros em seu lugar.

Tentava voltar aos velhos caminhos de pensamento que anteriormente ocultavam para ele a ideia da morte, escreve Tolstói, mas, fato estranho, tudo o que antes ocultava, escondia, anulava a consciência da morte, não podia mais ter este efeito.

Já que tantas vezes era o trabalho que tinha dado sentido à sua vida, Ilitch chega a se ocupar do trabalho para esquecer: ia para o tribunal, conversava com os colegas, sentava-se e dava início ao julgamento.

Mas, de repente, em meio à sessão, a dor do lado iniciava. Sem dar nenhuma atenção ao desenvolvimento do caso judiciário, iniciava o trabalho com o seu caso. Ivan Ilitch prestava atenção, entoava o pensamento a respeito dela, mas ela continuava sua faina, e ela vinha e parava bem diante dele, e olhava-o, e ele petrificava, o fogo se apagava em seus olhos, e ele começava de novo a interrogar-se: “Será possível que somente ela seja verdade?”. E seus colegas e subalternos viam com espanto e desgosto que ele, um juiz tão brilhante e sutil, se confundia, errava. Ele se sacudia, se esforçava em voltar a si, conduzia a sessão de qualquer maneira até o fim e regressava para casa com a triste consciência de que a sua função judiciária não podia mais, como outrora, esconder dele aquilo que ele queria esconder.

Procurando escapar a esta condição, Ivan Ilitch procurava outros biombos além do trabalho. E eles apareciam. E, por algum tempo, pareciam salvá-lo. Mas, depois, não é que os biombos desaparecessem: tornavam-se transparentes. Como se ela, a morte,atravessasse a tudo e nada pudesse encobri-la.

É o que acontece quando há algo de podre no Reino da Dinamarca. Quando as máquinas (o corpo) param. Quando o que era doce se acaba. Quando um indivíduo, por algum motivo, como à queda de uma cortina (véu?), se vê à margem da sociedade, à margem do corpo, à margem da vida. Quando, por motivos alheios à nossa vontade, somos impedidos de continuar nossas escalada social e obrigados a repensar nossos valores, nossas escolhas, nossas condutas, nossos limites, nossas ambições. Quando já nada – família, posses, livros, trabalho – pode nos distrair de uma condição: se não estiver por vir, será agora. E se não for agora, mesmo assim virá. Estar pronto é tudo.

E o pior era que ela não o atraía para si não para que ele fizesse algo, mas unicamente para que a olhasse. Bem nos olhos. A olhasse e se atormentasse, frente a frente, mas sem ter o que fazer com ela. Somente olhá-la e gelar.

 A Hora da Estrela

Outro que viu a cara da morte – desta vez sendo autor, não personagem – foi Caio Fernando Abreu. Ao ser diagnosticado com AIDS, um sentença de morte em 1994, o escritor gaúcho publicou uma sequência antológica de crônicas em sua coluna quinzenal no jornal O Estado de São Paulo chamada “Cartas para Além dos Muros” – crônicas que se preparam para virar filme em 2019.

Nelas, Caiovê a cara da morte. Tão próxima que consegue ver o rosto inteiro dele, refletido nas pupilas dilatadas dela. Não é medonha, só que não aceito seu convite para dançar. Pelo menos por enquanto, escreve ele.Até concluir que não há outro jeito: é preciso suportar e beijá-la na boca.

Em quem está com Aids o que mais dói é a morte antecipada que os outros nos conferem, vaticina ele na terceira e última das cartas. Talvez por isso o autor conseguisse contar com tanta força o que visse, como a visão do próprio rosto dele refletido nas pupilas dilatadas da morte: porque já estivesse lá, sem que ainda tivesse deixado de estar aqui.

Tal qual o personagem de Tolstói se entregando ao seu ofício para fugir do pensamento-morte, Caio também mergulha na escrita, o seu ofício, na hora da morte. Mas, diferente de Ilitch, o seu mergulho ao trabalho não tem a ver com negação, e sim com entrega. Pensar na vida, na existência, no ser ou não ser, no ser e re-ser.

Eis a questão: em um de seus contos, Caio explica que contar uma história é desemaranhá-la aos poucos,como quem retira um feto de entre vísceras e placentas, lavando-o depois do sangue e das secreções para que se torne preciso, definido, inconfundível como uma pequena pessoa. E finaliza: O que conto agora é isso: uma pequena pessoa tentando nascer.

Pois na hora da morte, o que Caio nos mostra é isso: uma pequena pessoa querendo morrer. Em paz, de bem com a vida.

Me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé, escreve. Chorei algumas vezes porque a vida me dá pena, e é tão bonita. Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo.

Em outras cartas pessoais, reunidas postumamente em uma bibliografia epistolar, Caio escreve que se sente estranhamente bem, se respeita como nunca, e que depois de toda aquela saia justa, viver lhe parece um luxo. Mesmo nos detalhes mais aporrinhantes. Sou um tigre ferido defendendo a patadas furiosas o que me resta da vida, escreve. O tempo que temos, se estamos atentos, será sempre exato.

Jung escreve que à noite, quando dormimos, a consciência se liberta do corpo planando sobre nossas cabeças. Toda essa consciências dos dormentes planando juntas, na mesma hora do dia, sobre nossas cabeças, torna mais “visível”, nessas horas, o inconsciente coletivo. Por isso mais escritores tendem a criar em horas elevadas da noite: por captar, nesse contexto, os segredos da humanidade.

Sendo a morte a grande noite da alma, não estariam eles, à beira da morte, captando segredos do outro mundo?

Fim de Partida

O show (a vida) não pode parar. Morrer? É pra depois.

Viver, escreve Guimarães Rosa, éobrigação sempre imediata.Talvez por isso Maria Alice Vergueiro, a octagenária atriz de teatro, tenha querido “ensaiar a própria morte” no espetáculo “Why the Horse”.

Após ter tido um AVC, ser diagnosticada com Parkinson, perder a irmã e passar por uma série de internações e infecções, Maria Alice quis “contar” o que é a morte de um ponto de vista muito particular: de quem está mais perto dela do que da vida. Não apenas porque o show tem que continuar, mas porque tinha algo a dizer.

Fábio Furtado, dramaturgo, conta que a ideia inicial era montar “Fim de Partida”, de Beckett. “Maria Alice, entretanto, não se entusiasmava”, conta ele. “O que ela queria era algo diferente. A questão da morte estava presente para ela de uma outra forma, e ela dizia que não entendíamos porque somos mais jovens.” Foi quando enveredaram, então, por um caminho novo, que partia do repertório, percepções e angústias de cada um em relação ao tema.

A partir daí, os atores começaram então a explorar as suas relações com a morte (como queriam morrer e o que queriam matar), bem como a relação específica com a morte de Maria Alice, que seria velada em cena. “Como se os atores, entendendo o desejo dela de ‘morrer’ em cena, ensaiassem pequenas mortes para que Maria Alice tivesse forças para ensaiar a sua”, explicando o dramaturgo.

E já que está viva, é da própria boca que Maria Alice escuta que está morta: numa metarreferência linguística, um televisor traz à cena um  close enorme da boca imensa de Maria Alice, ainda jovem, num take gravado e usado na época para outro espetáculo, desesperada ao saber da morte de alguém, outra pessoa.

Assim, a bocarra de Maria Alice pergunta-se incrédula, em terceira pessoa, ao ver-se morrer:  Quem!? Não!? Ela!? Tal como se, como Ilitch – e como atriz que é! – também tivesse acreditado demais na própria imortalidade.

Morrendo em terceira pessoa

A morte sempre foi uma presença constante nas artes e letras. Mesmo se nos afastarmos da literatura e adentrarmos o jornalismo, “exemplos de morte” não faltam. Não aquela mortandade em massa exibida todos os dias nos telejornais e noticiários, esta sim, paradoxalmente permitida, estranhamente naturalizada. Mas exemplos que se aproximam do literário, do estético, do artístico.

Para começo de conversa há, por exemplo, o propalado romantismo dos obituários, onde só se fala sobre a morte no último parágrafo. Todos os anteriores são sobre a vida, e o resto é silêncio.

E digo romantismonão apenas no sentido estético, mas também no modus operandi e em todo o processo de feitio que envolve este tipo de noticiário. Basta imaginar o seguinte: neste instante, em todas as redações do mundo, nos principais jornais do planeta, centenas – quiçá milhares! – de famosos e personalidades têm seus obituários prontos, aguardando apenas a causa e o momentum mortepara serem finalizados.

Parece uma lógica cruel, mas trata-se, em geral, de uma maneira de respeitar figuras públicas, garantindo que o que será falado sobre elas será justo, preciso e único. Jair Bolsonaro, Donald Trump, Mick Jagger, Roberto Carlos, Sílvio Santos, Oprah Winfrey, Caetano Veloso, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, e centenas de outras personalidades, visadas demais ou com mais passado do que futuro pela frente, têm seus obituários prontos, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar.

Em 2012, o jornal carioca O Diafez história com um obituário. Morreram Chico Anysio, trazia a manchete do jornal no dia da morte do comediante. Anunciava a morte dele no plural, ao lado da galeria de fotos dos seus personagens.

Gay Talese, o lendário jornalista literário norte-americano, escreveu o perfil “Sr. Má Notícia”, sobre o obituarista mais famoso do New York Times. Talese conta a história real do editor do jornal que, ao se recuperar de um ataque do coração, recebeu por engano o próprio obituário para revisão e teve outro ataque. Talvez porque quase ninguém esteja preparado para contemplar a sua própria imagem falecida e, pior: a sua ausência no mundo.

Além do tal editor, o escritor Ernest Hemingway foi outro caso raro de alguém que pôde ler seu próprio obituário. No caso do escritor, dezenas deles. É que, dado como morto em um acidente de avião na África e tendo sua morte anunciada, Hemingway teve o privilégio de ler o que todos falariam dele depois de morto. Até tirar a própria vida, o escritor criou o hábito de, vez ou outra, ler um dos obituários acompanhado de uma taça de champanhe.

A Mulher que Alimentava

Mortos anônimos também são diariamente biografados postumamente para os jornais. Se em “Hamlet”Horácio mantém seu sopro de vida neste mundoapenas para contar a saga de vida e morte do príncipe dinamarquês, no Brasil a jornalista e escritora Eliane Brum fez “a Horácia jornalismo”: acompanhou os últimos 115 dias de vida da merendeira Ailce. Contou a história no obituário “A Mulher que Alimentava”, publicado pela revista Época.

Ailce, a personagem: merendeira, aposentada, portadora de um câncer. Eliane, a escritora: uma repórter que não sabia o que estava fazendo, descreveu a própria. Uma mulher que tinha decidido acompanhar até o fim outra pessoa com uma doença incurável, mas não tinha a menor noção de tudo que aquilo significava.

Eu escreveria sua história, e ela estaria morta, assusta-se Eliane ao dar-se conta da empreitada em que se meteu. Ninguém confiara em mim como ela. Pela primeira vez, a personagem principal de uma reportagem – por premissa, não por acidente – não estaria vivo para lê-la. Ailce se entregara inteira nas minhas mãos de escritora.

E Eliane, que em todas as reportagens tem “o defeito” – segundo a própria – de escrever mais do que cabia, sofreu ainda mais nesta com cada frase que ficou de fora.Cada corte era uma traição a Ailce,explica,um pedaço da vida dela que deixava de existir ao não se transformar em história contada.

Quando tudo era desordem na vida dela, a transtornada Ailce (palíndromo da personagem de Lewis Carrol, Alice transformada na hora da morte?), a presença de Eliane a lembrava que ainda havia essa história, ainda existia uma mulher chamada Ailce, que havia criado dois filhos, construído uma casa grande e matado a fome de centenas de crianças.

O que você quer ser quando morrer?

Shakespeare escreve que sabemos o que somos, mas não o que podemos vir a ser. Guimarães Rosa diz que a morte amedronta não por se perder o que possui, o que se é, ou o que se foi. Não pelo presente ou pelo passado. O que se teme, na morte, é perder o futuro: O possível de coisas ainda por vir, no avante viver, o que talvez longe adiante me aguardava. A vida está toda no futuro.

O que você quer ser quando morrer

É o que parecem afirmar as mortes de outros dois personagens da história da literatura. Em “A Hora da Estrela”, a maior frustração de Macabéa ao morrer acontece exatamente porque ela percebe que justamente ali, naquela hora, pela primeira vez, ela era uma pessoa grávida de futuro.

Em “Hamlet”, alguns versos finais ecoam com precisão o lamento da humanidade por tudo que há porvir, mas que não vem nunca mais quando os galos são abatidos e não há mais amanhecer. Seele tivesse vivido e ocupado o trono, teria se tornado um grande soberano, lamenta Fortimbrás sobre o cadáver do príncipe morto, que nunca se transformou num rei.

Se…partícula apassivadora que opera a vida. E como saber o que seria se assim não fosse, se assim não sendo seria uma outra história?

Hamlet teria sido mesmo um grande líder? E Guimarães Rosa? Teria ganhado o Nobel se não tivesse “encantado”? Macabéa teria sido feliz se não tivesse morrido?

Quando soube de sua morte anunciada por uma doença incurável, o filósofo oitocentista David Hume escreveu uma despedida curta tecendo odes à vida. Aos moldes dos obituários, Hume também passou todos os parágrafos falando sobre a vida, passando ao passado só no final:Eu não sou, eu fui, corrige ele, porque esta é a maneira que devo falar de mim mesmo agora: eu fui!

A morte está no meio da travessia

Adentrando o cemitério enquanto o coveiro atira para o alto um crânio, Hamlet fica perplexo ao pensar que aquela caveira já teve língua e pôde cantar um dia. Depois, com a caveira de Yorick, o Bobo da Corte que o carregou no colo nas mãos, o príncipe da Dinamarca fica estarrecido de vez: Eu o conheci, Horácio, um tipo de infinita graça e da mais excelente fantasia. Carregou-me nas suas costas mais de mil vezes e agora… como é horrível imaginar essas coisas! Aqui ficavam os lábios que eu beijei nem sei quantas vezes. Onde estão agora os gracejos dele? As suas cabriolas? As suas canções? Seus lampejos de espírito que eram capazes de fazer gargalhar todos os convivas? Nenhum mais agora, para zombar dos seus próprios esgares? Caiu-lhe o queixo? Vai agora aos aposentos de minha dama e diz a ela que, por mais grossas camadas de pintura que ela ponha sobre a face, terá de chegar a isto. Vai fazê-la rir com essa ideia.

Quarto e túmulo, túmulo e útero, útero e morte. Estas palavras não rimam, mas o escritor norte-americano Paul Auster não consegue deixar de pensar nelas juntas.

Outros, como Beckett, não conseguem mais olhar para uma criança sem pensar que ela envelhece, nem para um berço sem pensar num túmulo.

Em outros, como Karl Ove, a visão de uma bela mulher nua logo leva a imaginar aquele corpo em decadência, apodrecendo na cama de um hospital. Como neste trecho, em que o autor conta sobre a vez em que, ainda criança, encontrou a foto de uma mulher nua: Era tão magra que as ancas mais pareciam tigelas vazias. Todas as costelas eram claramente visíveis. No meio das pernas ela tinha um pequeno tufo preto. Mais atrás via-se uma fileira de camas, onde pude notar os vultos de outras mulheres. Estremeci por dentro. Não havia absolutamente nada de atraente naquela fotografia, mesmo que ela estivesse nua, e também porque na página seguinte havia a fotografia de uma enorme pilha de cadáveres em frente a uma profunda cova onde vários outros cadáveres estavam jogados. Me dei conta do seguinte: pernas eram apenas pernas, mãos eram apenas mãos, narizes eram apenas narizes, bocas eram apenas bocas. Coisas que haviam crescido em outros lugares e acabaram jogadas na terra. A mulher parecia uma morta-vida. Ou a morte como vida.

E a escrita?, se pergunta o mesmo Karl Ove em outro momento. O que é a escrita senão a morte? Letras? O que são as letras senão ossos num cemitério?

No conto Páramo, de Guimarães Rosa, o personagem-narrador deixa no cemitério o volume de um livro que o acompanha a história e a vida inteira. Ao sair do cemitério tentando deixar o livro, não consegue: o volume é devolvido a ele por um homem que havia ajudado a carregar um morto num enterro. O gesto evidencia, de acordo com críticos, a impossibilidade de, em vida, se escapar da linguagem.

Afinal, cala a boca já morreu.

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Rômulo Zanotto é escritor, jornalista e publicitário. Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná, vive em Curitiba.

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A literatura como remédio – um projeto de vida https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2018/10/25/a-literatura-como-remedio-um-projeto-de-vida/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2018/10/25/a-literatura-como-remedio-um-projeto-de-vida/#respond Thu, 25 Oct 2018 13:04:56 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1632 O historiador Dante Gallian é autor do livro: “A Literatura como Remédio – Os Clássicos e a Saúde da Alma” (Martin Claret; 2017), em que conta um experimento tão ousado quanto natural: discutir livros clássicos em laboratórios de leituras para alunos de medicina. Esse projeto já rompeu as fronteiras da universidade, como vocês vão ver abaixo. Na minha conversa com Dante, percebi que mais do que uma iniciativa, seus laboratórios são um projeto de vida.

Há 20 anos, Dante coordena esses laboratórios, em formato de atividade extracurricular na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

A ideia surgiu de um desafio. Ele dá aulas sobre História da Medicina, área que nutre interesse há muitos anos. Seu pós-doutorado, por exemplo, foi em cima de uma pesquisa sobre a história do coração humano, desde a Antiguidade, Egípcios, Hebreus, Gregos, Romanos, Idade Média até os dias de hoje. O subtítulo: o destronamento do coração. Nesse processo histórico, o coração deixa de ser o centro da pessoa, cedendo lugar ao cérebro.

Em suas aulas, Dante percebeu que os alunos estavam mais interessados nos temas científicos e técnicos, atuais, do que em aprender sobre o passado da medicina. Ele fez algumas modificações na didática das aulas e passou a distribuir pequenos trechos sobre a medicina na antiguidade. Colocou alunos em roda, para lerem e comentarem os temas. “No começo, foi difícil, porque eles não estão acostumados a fazer isso. Os professores apenas projetam conhecimento”, comenta. Os alunos estão acostumados a aprender passivamente.

Dante insistiu e o interesse cresceu. Os alunos foram se surpreendendo ao ler textos o século 15 e 17. Quando a disciplina acabou, pediram para continuar a discussão em horário extra curricular. Assim, Dante seguiu. Como não havia mais a necessidade de apresentar textos de medicina, perguntou aos alunos o que gostariam de ler. Começaram a trazer ensaios filosóficos, textos jornalísticos. Até que um dia, um dos alunos que estudava atuação teatral em paralelo à faculdade de medicina, sugeriu seu texto de trabalho para discussão: “Antígona”,a tragédia grega de Sófocles.

Dante se surpreendeu. “O impacto foi impressionante. Lembro de uma aluna da enfermagem falando que ela mesma era a Antígona. Percebi que isso levava as pessoas a refletirem sobre a essência da existência humana, a dor, a morte… A partir desse momento, comecei a trazer textos literários e, aos poucos, fui desenvolvendo a parte teórica e metodológica”.

Surgiu então, o Laboratório de Humanidades, que expandiu dentro da universidade. Dante formou alunos da pós-graduação para coordenar o laboratório e aplicar essa metodologia, a da leitura de clássicos com potencial humanizador, com os pacientes também.

Dante vê a importância dessa iniciativa para trabalhar questões delicadas. “A literatura é um meio interessante e poderoso para abordar assuntos tabus, como morte e suicídio. A pessoa pode se utilizar de um personagem do livro, aspectos da temática e da narrativa, para comentar assuntos que são particularmente importantes para ela. Nesse sentido, serve como uma ferramenta. Não tem tabu, você está falando da vida do outro, não da sua própria vida”.

A experiência ultrapassou a universidade. Dante e sua esposa, Beatriz, fundaram a Casa Arca, onde reúnem grupos abertos para laboratórios de leituras. Atualmente, estão discutindo “Orgulho e Preconceito” (Jane Austen) e “Grande Sertão Veredas” (Guimarães Rosa). É um grupo diverso, vai de 18 a 90 anos.

Ele também tem atuado em empresas e escolas. Criou, em uma escola de negócios, a disciplina: ética e literatura. Eu me formei em administração de empresas e adoraria ter tido essa aula. Discutir os clássicos me parece bem-vindo em todas as esferas.

Hoje, Dante utiliza textos clássicos por perceber um efeito terapêutico maior. “Clássico não é clássico por acaso. Por que discutimos Shakespeare, Tolstói, Goethe, há tantos anos? Porque eles traduzema experiência humana de forma universal e permanente”. O que diferencia um best-seller de um clássico é essa perenidade.

O título de seu livro “A Literatura como Remédio” surge de uma convicção. “A leitura pode curar na medida em que abre a possibilidade para uma experiência ampla e autêntica da própria humanidade. Grande parte de nosso adoecimento decorre de uma dinâmica de vida moderna, onde funcionamos mais como máquinas do que pessoas. Temos muito pouco tempo para pensar, para questionar qual é o sentido das coisas que fazemos. A leitura é uma oportunidade de te arrancar dessa dinâmica automática e mecânica. O livro transpõe a um outro espaço geográfico, outra realidade. Num primeiro momento, a literatura não deixa de ser uma fuga, mais é uma fuga terapêutica. Ela te desperta coisas, sentimentos, afetos”.

Por fim, Dante enfatiza a importância de uma experiência coletiva, o que diferencia seus laboratórios de uma biblioterapia, no qual textos são prescritos para leitura em casa, individualmente. “A felicidade só é completa se puder ser compartilhada”, conclui citando Tolstói.

 

Bio:

Dante Gallian. Bacharel em História pela FFLCH-USP, onde também fez mestrado e doutorado. É pós-doutor em Sciences Sociales pela École des Hautes Études, de Paris. Foi professor visitante na EHESS de Paris (07-09) e no Center of Humanities and Health do King’s College London, na Inglaterra (12-14). Desde 1999, é diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Escola Paulista de Medicina, da Unifesp.

 

 

Casa Arca. http://casaarca.com.br/

 

 

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Matar ou morrer, a cultura da polícia militar no Brasil https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/25/matar-ou-morrer-a-cultura-da-policia-militar-no-brasil/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/25/matar-ou-morrer-a-cultura-da-policia-militar-no-brasil/#respond Thu, 25 May 2017 15:26:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1319 O protestos realizados na tarde desta quinta-feira (24), contra o presidente Michel Temer, voltaram a desencadear uma imagem recorrente no noticiário brasileiro: a de uma polícia fria e violenta. Há poucas semanas, eram as fotos da agressão ao estudante Mateus Ferreira, em Goiânia. Na manhã de ontem, ações na cracolândia e, hoje, temos o emblema de um policial atirando diretamente contra manifestantes no Palácio do Planalto.

Em meio a esse noticiário, Rafael Alcadipani, pesquisador da EAESP-FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e um dos maiores especialistas na questão atualmente, abriu ao blog “Morte Sem Tabu” os bastidores de como esses homens são estimulados à violência.

Alcadipani descreve uma rotina massacrante, em que policiais vivem sob péssimas condições de trabalho e constantes ameaças de morte, já que muitos são mortos apenas por carregarem a farda. O policial também luta contra um estigma ruim da sua profissão. “O polícial não é bem visto no Brasil. A presença constante com criminosos, estupradores e homicidas gera um estigma que afeta estes profissionais”, diz.

Um apontamento importante é que, entre os policiais, há muita ansiedade e depressão. Como ganham pouco, a grande maioria faz bicos em segurança privada, shoppings, casas, escoltas, etc. E acabam exaustos e impacientes.“A maior parte está endividada. Eles têm psicólogos, mas ir na psiquiatria é suicídio moral”, comenta o pesquisador. O que os levaria a um sentimento maior de isolamento, reforçando suas atitudes violentas.

Alcadipani afirma que a polícia militar brasileira está entre as que mais mata no mundo. É uma atitude justificada como “resistência seguida de morte”. A impunidade acaba influenciando, “se o caso chegar ao júri, é comum serem absolvidos diante da ficha criminal daquele que foi morto”. Ele diz que “a sociedade incentiva que ele mate, mas no final das contas ela abandona o policial que tem que tirar comida da sua família para pagar os altos custos dos advogados”.

Além disso, o policial militar que mata é bem visto dentro das sub-culturas da corporação. Ele é chamado de “Billy”. Dentro dessas sub-culturas das PMs, os colegas reforçam informalmente que ele tem que matar, que ele tem que bater para ser respeitado ali dentro. “Para ser visto como macho, o policial  militar precisa humilhar”, aponta Alcadipani.

O especialista também diz já ter escutado falarem que “matar é como trair, quando você começa, você não para mais”. A atitude envolveria um sentimento de onipotência, “eles sentem pouca culpa, mas se sentem deuses, porque na nossa civilização ocidental, quem tira a vida é Deus”. Outra frase marcante é: “não fui eu quem matou, eu só apertei o gatilho, quem tira a vida é Deus”. Muitos PMs se sentem como os “vingadores da sociedade”, os que irão livrar “a sociedade de todo o mal”.

Um possível mecanismo para melhorar essa situação, segundo Alcadipani, seria a mudança das culturas das PMs. A polícia civil, por exemplo, não teria esse comportamento, ao passo que a militar sim, como uma herança da ditadura que é reforçada internamente.

E o desenvolvimento de uma política pública eficaz, que possibilitasse uma mudança de paradigma na nossa sociedade, que hoje vê a criminalidade como um problema individual. “Uma consequência disso é a ideia de que o criminoso é uma pessoa do mal que deve ser combatida individualmente, levando os policiais militares a entenderem seu papel como justiceiros da sociedade, aqueles que resolvem os problemas com as próprias mãos. A sociedade acredita no mito de que matar resolve. Não que o criminoso não precise ser punido, mas pela lei e não pela vingança”, comenta o pesquisador.

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Você é normal? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/03/22/voce-e-normal/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/03/22/voce-e-normal/#respond Wed, 22 Mar 2017 16:28:05 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/03/foto-180x96.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1279 E aí, você é uma pessoa… normal? Você se considera típico, mediano, adequado? Você estaria na média de uma curva estatística? O que é uma pessoa normal, afinal de contas?

Às vezes me questionam se eu sou uma pessoa normal, por ter um blog que fala sobre morte. Não tenho dúvidas de que o conceito de normalidade é uma construção histórica e social. O normal muda conforme a cultura e o tempo em que estamos inseridos. Mas, no fundo, é na minha opinião, uma definição que deveria ser abolida.

Poucas pessoas responderiam que são normais. Mas se invertermos a pergunta para “de zero a dez o quão esquisito você é?” a maioria chutaria um número. Nos sentimos estranhos, quase sempre. Somos um pouquinho bizarros, temos manias um tantinho bizarras, e às vezes brota um sentimento que não seria muito bem aceito se compartilhado e quase sempre vem à cabeça um pensamento “fora da caixinha”.

Na medicina, o conceito de normalidade é tido como necessário. Um exame de sangue diz se a contagem das coisas todas que ali existem estão dentro da faixa esperada para um indivíduo de determinado sexo e idade. Se estão fora da faixa normal, os médicos investigarão a causa disso e chegarão a um diagnóstico. O corpo que foge dessa faixa de normalidade é considerado doente.

Esse conceito pode ter derrapado para áreas que não o pertencem e daí passamos a considerar doentes aqueles que não se encaixam na faixa do que é socialmente aceito. Até a homossexualidade já foi considerada doença pelo próprio Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM. Até 1973, estava no grupo da pedofilia, necrofilia e zoofilia. Os gays não eram só socialmente anormais, eles eram também vistos como doentes.

Nesse sentido, podemos acabar transformando em patológico o que não deveria. A pedofilia e o assédio não podem ser considerados anormais.  O portador de um distúrbio mental não é anormal, ele é doente. Uma pessoa com depressão crônica não está anormal. Ela está doente.

E o que passa pela nossa cabeça para categorizarmos algo como normal ou não? Artigo recente publicado no “Journal of Cognition” argumenta que as pessoas combinam um senso do que é típico com o que é ideal na hora de definir a normalidade. Seria uma mistura de noções estatísticas com conceitos morais.

Em reportagem do “New York Times”, os pesquisadores comentam:

“Nosso achado principal pode ser ilustrado com um simples exemplo. Se pergunte: qual é a média de horas que uma pessoa vê TV em um dia? E depois se faça uma pergunta que pode parecer muito similar: qual é a quantidade normal de horas de TV que uma pessoa vê por dia? Se você for como a maioria dos participantes da nossa pesquisa, não dará a mesma resposta para as duas perguntas. Nossos participantes falaram que o número médio era de quatro horas, enquanto que o normal era de três horas. Adicionalmente, eles falaram que o número ideal seria de 2,5 horas. Isso tem uma implicação muito interessante. Sugere que a concepção de normalidade deriva do normal para o que eles acham que deveria ser”.

A pesquisa indica que o ser humano tem duas formas de pensar. De um lado, consideramos como as coisas tipicamente são. Do outro, como elas deveriam ser. E o conceito de normalidade seria uma mistura desses dois, em um julgamento aparentemente instintivo.

Uma consequência importante é que começamos a considerar mais normal aquilo que está cada vez mais frequente. É a tal da normalização. Ela tem um lado bom, como ser cada vez mais aceito o casamento gay conforme aumenta em frequência, e um lado ruim, como as ações racistas de Trump passarem a ser consideradas normais, conforme aumentarem em frequência.

A famosa expressão, já atribuída a tanta gente, “de perto ninguém é normal” indica que de longe parecemos ser todos mais ou menos iguais e, de perto, mostramos nossas peculiaridades. Mas nem de longe somos normais. Ninguém é normal sob nenhuma possível perspectiva. Porque o ser normal não existe.

 

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Vamos começar pelo fim? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/24/vamos-comecar-pelo-fim/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/24/vamos-comecar-pelo-fim/#respond Tue, 24 Jan 2017 11:12:56 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/01/00021-119x180.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1237 Foi pensando no “adolescente virtualizado” que a pesquisadora Kate Rigo criou a pedagogia cemiterial. Sua teoria é descrita no livro “Vamos Começar Pelo Fim?”, lançado pela editora Chiado. O adolescente virtualizado é descrito pela autora como aquele que prefere interagir emocionalmente e racionalmente pela internet e acaba se distanciando cada vez mais da realidade.

Uma consequência brutal desse comportamento é não conseguir perceber a morte como concreta, o corpo como finito, e também seria um dos motivos para o crescimento das taxas de suicídio e de comportamentos autolesivos entre os jovens. “As coisas acontecem tanto no plano virtual que ao se cortar e ver o sangue escorrendo, eles se sentem vivos. São os adolescentes que precisam urgentemente de ajuda. Eles não se sentem vistos pelo outro, pelos pais e pelos professores”, comenta Kate.

Uma forma de lidar com esse problema social é, conforme sua sugestão, a pedagogia cemiterial, que se baseia no uso de cemitérios como forma de ensino. Kate levou seus alunos para esses espaços para discutir temas como geografia e história.

Apesar de haver muita superstição envolvida (um pai chegou a pedir para o filho ir banhado em sal grosso), Kate considera a recepção muito positiva. “O que me chamou atenção é que era um local para perguntarem coisas que na escola não há espaço. Eles conseguiam chegar a conclusões entre si respeitando a fé de cada um. Tinha uma troca social riquíssima”.

Comportamentos autolesivos seriam motivados por transtornos psicológicos, pela busca do alívio do sofrimento e também haveria um componente de modismo forte, com a influência de vídeos no YouTube com adolescentes se cortando. Mas a internet também pode ser uma fonte de consolo, por oferecer várias páginas no Facebook que acabam virando terapêuticas, unindo outras pessoas com essa dor.

Há alguns sinais de alerta, como mudanças de vestimenta. O adolescente passa a usar roupas de inverno mesmo no verão, para esconder as marcas. Ele começa a se retrair, tanto em casa quanto na escola. Kate orienta buscar auxílio na psicologia e fazer o encaminhamento necessário em cada caso.

Na essência de tudo, estaria o aumento da depressão e da ansiedade, como um sintoma da falta de espaços para reflexão e da falta de afeto em casa e na escola.

Um ponto importante é a carência de escuta que ela vê no tratamento com o adolescente. “As pessoas não têm mais tempo para conversar umas com as outras. Os pais não têm mais tempo para os filhos. É só olhar no restaurante, ninguém conversa entre si, só com o smartphone. A solidão acaba se propagando”.

A falta de apoio na fé tradicional do Deus cristão também contribuiria para essa solidão. “O adolescente virtualizado quer informação, quer imagem, ele quer provas, e a teologia não dá essa perspectiva para ele”, comenta. Como alternativa, buscam o que Kate chama de o “Deus Google”, onde encontram todas as repostas para suas perguntas. Mas ela considera ser importante o adolescente buscar algum tipo de espiritualidade que sirva como apoio. “Pode até ser a ciência, o importante é ter um foco, um objetivo, algo que dê sustentação para ele continuar vivendo”.

A pedagogia cemiterial de Kate é uma proposta de ferramenta para tratar dessas questões, na medida em que mostra ao adolescente que a morte é algo concreto e “não um videogame onde você tem várias vidas”, como ela mesma coloca. Acima de tudo, é uma forma de interação real.

Quando falamos sobre morte, sinto que se estabelece uma conexão especial, como se estivéssemos transgredindo, tocando em um assunto proibido. Talvez esse seja um ponto importante na pedagogia de Kate. O adolescente cria intimidade e vê uma oportunidade para se abrir. Arrisco dizer que todo mundo busca relacionamentos profundos e significativos na vida. O que pode faltar é um ambiente que promova isso. Usar o cemitério me parece uma ótima sugestão.

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Raiva e luto na direita americana https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/16/raiva-e-luto-na-direita-americana/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/16/raiva-e-luto-na-direita-americana/#respond Wed, 16 Nov 2016 11:44:58 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1191 A socióloga americana Arlie Russel Hochschild passou os últimos cinco anos entrevistando grandes apoiadores de Trump em uma região ultra conservadora dos Estados Unidos, a Luisiana, para tentar entender suas posições.

O livro “Strangers in Their Own Land” (estranhos em seu próprio país, em tradução livre) é o resultado desse estudo e foi considerado pelo “New York Times”, um dia após as eleições, um dos seis livros necessários para se compreender a vitória de Trump.

Ele chama atenção pelo subtítulo: “Anger and Mourning in The American Right” (raiva e luto na direita americana, em tradução livre). É comum vermos notícias sobre a raiva dos grupos de direita que crescem no mundo. Nos apressamos em tachá-los da mesma forma que não aceitamos sermos tachados. De uma forma generalista, eles são conservadores, racistas, misóginos, ufanistas e retrógrados. Não é de se admirar que tenham tanto recalque em assumir suas posições em público e nas pesquisas eleitorais.

O que Arlie notou em sua pesquisa foi um pouco diferente disso. Foram pessoas com raiva sim, mas também em processo de luto profundo. Elas perderam qualidade de vida, estilo de vida, acham que seus filhos terão uma vida pior do que a deles e perderam sua identidade como grupo.

Finalista do “2016 National Book Award”, o livro traz entrevistas com 60 “personagens”, suas histórias, desejos e receios. A maioria não se vê como racista e teme ser considerada assim. Há uma preocupação em serem apontados como retrógados porque são de direita. Trump não é venerado por esse grupo, mas é uma opção dentro de um contexto. E que contexto é esse?

Arlie disse ter visto um grupo de pessoas que se sente marginalizado pelo governo atual. Esse grupo não vê sua vida melhorar economicamente e observa “outsiders” furando fila na linha da prosperidade com a aprovação de Obama. Os outsiders seriam negros, imigrantes e mulheres. A questão levantada não é o fato dos (assim vistos) “outsiders” terem acesso a diretos e oportunidades, mas sim conquistá-los enquanto esse grupo se vê estagnado. “Furando a fila” é uma expressão que Arlie usa bastante.

Ela defende que esses eleitores acabam escolhendo líderes que não beneficiam seu grupo social. São prejudicados, por exemplo, por desastres naturais causados pela falta de regulamentação de empresas de petróleo – situação que ocorre com a conivência de políticos republicanos e acabam votando neles mesmo assim.

Para a autora, há lugares comuns entre a esquerda e a direita que deveriam ser trazidos à tona e usados como o início de uma conversa. Ela identificou questões semelhantes e necessárias para fazermos uma “ponte” entre esses dois pensamentos.

A empatia é fundamental. E certa autocrítica em analisarmos o discurso liberal de 2016 sem que ele seja a única forma possível de pensar. As eleições americanas mostraram que a arrogância da mídia em não dar voz aos descontentes, aos que discordam desse discurso e da globalização, por sentirem-se marginalizados a ela e aos princípios liberais, pode ser um tiro no pé.

É importante buscar compreender o que está por trás do pensamento daqueles que parecem votar sem ponderar o que seria melhor para si e para os outros, os que votam no impulso, motivados pela raiva e pelo luto. A raiva, inclusive, é tida como um dos estágios do luto.

Temos que ter cuidado para não cairmos nessa mesma onda e acabarmos empoderando líderes que não desejam o bem comum, que chegaram lá porque foram eleitos por um grupo que queria, antes de mais nada, se fazer presente. E vê no voto uma espécie de “declaração”, de negação a tudo ao invés de uma afirmação de desejo. Infelizmente, já estamos nesse caminho, mas ainda dá tempo de ouvir.

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Vivemos em um mundo simulado? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/21/vivemos-em-um-mundo-simulado/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/21/vivemos-em-um-mundo-simulado/#respond Fri, 21 Oct 2016 18:39:26 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/10/tumblr_mlu8qijgO31s9816mo1_r1_500-180x100.gif http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1148 O criador do PayPal, Elon Musk, fez uma afirmação polêmica em certa entrevista:“A chance de não vivermos em um mundo simulado por computador é uma em bilhões”. Para minha surpresa, Elon Musk não só pensou e pensa nisso constantemente, como considera a simulação uma probabilidade real.

O Bank of America foi mais longe e afirmou, em comunicado oficial, acreditar haver de 20 a 50% de chance de estarmos vivendo em uma simulação do tipo Matrix. O relatório, enviado a clientes, também diz que, se o mundo for mesmo uma simulação, nós nunca saberemos disso. E aborda a possibilidade dessa simulação ser feita por nossos descendentes.

Esse é o tipo de conversa que temos em um bar com metade da mesa torcendo o nariz para o esquisito que levantou o assunto. Só que Elon Musk vai bem além da figura do adolescente apaixonado pela trilogia Matrix. Ele é um empreendedor visionário, fundador da Tesla Motors – de automóveis elétricos, da XSpace – seu projeto de construção de foguetes reutilizáveis, e da SolarCity – empresa voltada para energia solar. Em 2015 lançou a OpenAI – empresa sem fins lucrativos que se propõe a democratizar o acesso à inteligência artificial.

O homem que inspirou Robert Downey Jr para seu “Homem de Ferro” , construiu um império de 44 bilhões de dólares apostando em uma economia de energia totalmente sustentável, renovável e interplanetária. Recentemente, Musk apresentou seu plano para colonizar Marte a partir de 2024, com o envio de missões tripuladas a bordo de naves da SpaceX e a criação de uma cidade autossustentável no planeta.

Sobre a questão do mundo simulado, Musk justifica seu raciocínio: “Há 40 anos, tínhamos o Pong – dois retângulos e um ponto (o videogame que inaugurou a indústria de games), hoje temos simulações em 3D com milhares de pessoas jogando simultaneamente, e em breve teremos realidade virtual, realidade aumentada… é uma tecnologia que se aprimora a cada ano. Se assumirmos um mínimo de taxa de melhoria no futuro, os games se tornarão indistinguíveis da realidade”.

Seu conceito é estatístico. Se o homem for capaz de criar uma inteligência idêntica a ele mesmo (hipótese da singularidade tecnológica), essa inteligência fará o mesmo reproduzindo milhões de realidade simuladas, uma dentro da outra. A chance de estarmos na realidade original seria muito baixa.

Musk considera provável já estarmos vivendo nessa tipo de imersão, mas obrigatório que ele faça parte do nosso futuro. Ele chegou a dizer: “Há duas opções: ou criaremos um mundo virtual indistinguível da realidade ou a civilização deixará de existir” – se não chegarmos a esse avanço é porque algum evento calamitoso brecou nosso desenvolvimento e nos extinguiu.

Essa discussão encontra aparato acadêmico no campo do transumanismo. O filósofo Nick Bostrom (leiam esse artigo aqui), da Universidade de Oxfort, Inglaterra é um dos grandes nomes da área. Autor do best-seller “Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies” (2014), ele defende existir 20% de chance de já estarmos imersos em uma simulação criada por nossos descendentes.

O vídeo abaixo aborda o modelo das três possibilidades para o futuro da humanidade.

Há diversos vídeos no Youtube buscando explicar a teoria do mundo simulado. Separei esse daqui para vocês.

Musk já disse, também, que a ausência de notícias de vida fora da Terra é um argumento a favor da simulação. “É como quando você está jogando um game de aventura, você consegue ver as estrelas no fundo mas não consegue alcançá-las”. O Paradoxo Fermi tenta traduzir o conflito entre a alta probabilidade de vida extraterrestre com a falta de evidências.

Outro que trouxe leve credibilidade aos “doidos” da ficção cientifica foi Stephen Hawking. O famoso cientista disse que nosso planeta deve se preparar para uma invasão alienígena.

Um ponto que me chama atenção é imaginarmos alienígenas como uma referência de nós mesmos, como uma projeção humana. Consideramos alienígenas como “um reflexo em um espelho distorcido”, como argumenta esse vídeo aqui. Buscamos sinais de seres que se comportariam como nós, se comunicariam como nós e precisariam dos mesmos nutrientes para sobreviver. Mas “é possível encontrarmos ideias mais criativas de imaginar como alienígenas inteligentes possam existir, ainda que não sejam detectáveis por nós”.

Estranho, não?

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“Antes de morrer eu quero…” https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/30/antes-de-morrer-eu-quero/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/30/antes-de-morrer-eu-quero/#respond Tue, 30 Aug 2016 12:03:02 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/book-910x300-180x59.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1081 Lousas gigantes espalhadas pelo mundo convidam o público a completar a frase “antes de morrer eu quero…”.  As respostas variam, mas algumas são semelhantes, em diferentes línguas: “antes de morrer eu quero me amar”, “eu quero viajar”, “eu quero viver intensamente”, “eu quero mudar meu jeito de ser”, “eu quero aprender uma língua nova”, “eu quero ser avô”, “eu quero realizar todos os meus sonhos”, “eu quero pedir perdão”.

O geriatra André Filipe Junqueira conheceu essa iniciativa em um congresso americano de cuidados paliativos, sua especialidade. Ficou fascinado ao ver pessoas amontoadas ao redor de um painel preto para escreverem o que elas gostariam de fazer antes de morrer, de forma sincera e à vista de todos ao redor.

O projeto foi criado pela artística plástica norte-americana Candy Chang. Em 2011, Candy perdeu uma amiga e buscou transformar a dor desse luto em um momento de reflexão. Ela encontrou uma casa abandona em sua cidade, New Orleans, montou um quadro-negro gigante com a ajuda de amigos e escreveu a frase “Antes de morrer, eu quero _____”. A aderência dos moradores do bairro foi imediata e surgiram muitas frases comoventes, divertidas e inesperadas. Um vídeo da artista sobre o projeto pode ser visualizado nessa palestra do TED.

O movimento criado por Candy cresceu e foi reproduzido mundo afora, inclusive no Brasil. O objetivo é sempre o mesmo: estimular as pessoas a refletirem sobre suas vidas. As respostas podem ser visualizadas no site do projeto “Before I Die”. Lá também é possível acessar as orientações para criar um mural em sua cidade.

André considerou que essa simples iniciativa poderia causar um impacto muito positivo em ambientes como o hospital, por ser um espaço que dá pouca voz ao paciente. “Infelizmente, muitos médicos não querem se envolver com os pacientes, eles não querem ouvi-los”, diz. “Por mais que o tratamento dos sintomas físicos possa ser plenamente atingido em hospitais, muitas vezes, os sintomas emocionais, espirituais e sociais são negligenciados e o tratamento para a pessoa doente e sua família é incompleto, apesar da equipe médica acreditar que tudo está sendo feito. E conversar sobre desejos e visões de vida em situações de doenças sem cura permite alcançar um tratamento completo”, complementa.

André pretende replicar a lousa em instituições de saúde como uma forma de iniciar uma conversa sobre a morte, abrir um canal de comunicação e uma possibilidade de reflexão sobre a vida. “A morte é mais um passo da vida. O antes de eu morrer valoriza muito mais a vida do que pensar na morte em si. É ver a morte como um ponto na vida e não como o sentido final dela”.

O debate sobre o morrer não seria apenas voltado para pacientes, mas também para os profissionais de saúde. “Pode parecer contraditório, mas a realidade é que não se fala sobre morte no hospital, nem na faculdade, de maneira ampla. Geralmente, são comentários pessoais, desabafos, um médico chegou a me dizer que esse tipo de quadro não caberia em um hospital justamente por haver pacientes terminais ali”. O que não parece fazer sentido, porque não é falar sobre a morte que vai atrai-la ou fazer você morrer mais cedo.

A geriatra Ana Claudia Arantes diz ser imaturidade acharmos que se não vemos a morte, ela não está lá. “As pessoas que não gostam de falar ou pensar sobre a morte são como crianças brincando de esconde-esconde numa sala sem móveis. Elas tapam os olhos com as mãos e acham que ninguém as vê. Pensam de um jeito ingênuo: se eu não olho para a morte, ela não me vê. Se eu não penso na morte, ela não existe”, escreve no livro “A Morte é Um Dia Que Vale A pena Viver” (ed. Casa da Palavra), com lançamento previsto para hoje, terça-feira (30), na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, com apresentação minha.

Convido o leitor a me responder nos comentários desse post: O que você gostaria de fazer antes de morrer?

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A morte de Lou Reed https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/10/a-morte-de-lou-reed/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/10/a-morte-de-lou-reed/#respond Wed, 10 Aug 2016 20:47:27 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/Unknown-180x180.jpeg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1040 “Hey baby, take a walk on the wild side” é o refrão da clássica música de Lou Reed, morto há quase 3 anos. Sua esposa, Laurie Anderson, contou em uma entrevista à revista Rolling Stones americana, como foi acompanhar os últimos momentos do homem que mudou a história do rock e foi seu companheiro por 21 anos. David Bowie chegou a reconhecê-lo como a pessoa mais importante do rock’n roll.

Lou morreu de câncer no fígado, aos 71, agravado por outras complicações, como uma diabetes avançada. Praticantes de Tai Chi, Laurie menciona um ensinamento que foi importante para o casal nesses últimos anos da doença: “você precisa dominar a habilidade de se sentir triste, sem ficar realmente triste”. Laurie não desenvolveu o assunto, mas eu posso interpretar isso como a postura de sentir tristeza sem ser dominado por ela. Deixar o sentimento ir e vir, ser passageiro como a chuva. A água molha e seca, ela corre, não estagna.

Lou teve um transplante de fígado que funcionou por um breve momento mas não o suficiente. Quando o médico disse que ele estava sem “opções”, não se resignou e, segundo sua esposa, só aceitou a morte na última meia hora de vida. E se entregou completamente. Eles estavam em casa, juntos.

Em sua última entrevista, um mês antes de morrer, Lou conta que dorme com a guitarra no quadril e oferece respostas poéticas, como “eu toco com o coração”. Ele chama atenção para um fato bonito da natureza humana: “O primeiro som que qualquer pessoa se lembra é o batimento do coração da mãe. Você vai se desenvolvendo, desde um amendoim (o primeiro formato do feto se assemelha a um amendoim), escutando um ritmo”.

Laurie testemunhou a morte de Lou, e sobre essa experiência diz:

“Como praticantes de meditação, tínhamos nos preparado para isso – como mover a energia do umbigo para dentro do coração e sair pela cabeça. Eu nunca tinha visto uma expressão tão cheia de encantamento como a de Lou quando morreu. Suas mãos estavam fazendo a forma fluxo-de-água 21 do Tai Chi. Seus olhos estavam bem abertos. Eu segurava em meus braços a pessoa que eu mais amava no mundo e conversava com ele enquanto ele morria. Seu coração parou. Ele não estava com medo. Eu pude andar com ele até o fim do mundo. Vida – tão linda, dolorida e fascinante – não tem como ser melhor do que isso. E a morte? Eu acho que o propósito da morte é a libertação do amor”.

Outra companheira que acompanhou a morte do marido foi Laura, esposa de Aldous Huxley. Ela relata, em uma carta, a experiência de ter injetado LSD em Aldous em seus momentos finais e oferecer ao amado uma “última viagem”.

Leia mais no post: Morte psicodélica – drogas alucinógenas para pacientes terminais e a morte de Aldous Huxley.

Outro artigo recomendado: EQM: experiências de quase morte

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