Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Apologia à necrofilia: sobre o abuso de corpos femininos depois da morte https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/10/06/apologia-a-necrofilia-sobre-o-abuso-de-corpos-femininos-depois-da-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/10/06/apologia-a-necrofilia-sobre-o-abuso-de-corpos-femininos-depois-da-morte/#respond Tue, 06 Oct 2020 20:51:42 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/ade312e9-c0b4-4808-ae8e-a31e946ac14e-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2124 Na sexta-feira (25) publiquei na Folha um artigo sobre grupos de Facebook e Whatsapp incentivando e glamurizando a necrofilia.
“Grupos em redes sociais incentivam necrofilia – Tanatopraxistas relatam distribuição de imagens obscenas de corpos; vilipêndio de cadáver é crime com pena de até 3 anos”.
O casal de tanatopraxistas Nina Maluf e Vinicius Cunha me procuraram para compartilhar dois anos de pesquisa sobre o assunto. Eles fizeram parte desses grupos para colher o material que está, agora, nas mãos da Polícia Federal e do Ministério Público.
Do meu lado, senti pouca repercussão. Algumas pessoas relataram não terem conseguido ler a matéria até o fim, por ser um tema tão difícil de ser abordado, “pesado demais”.
Mas, para o setor, significou um avanço.
No mesmo dia, uma investigação já em andamento levou à prisão de um funcionário do IML de Manaus. Um dos grupos retratados, o Festa no IML, foi fechado, mas logo abriram outro. Eles divulgaram a reportagem com deboche. O organizador mencionou que a página não comete crime algum, é apenas um espaço para “humor negro” (uma expressão infeliz e racista) .
Recebi prints de outros grupos, com fotos de notícias sobre a morte trágica de moças, suas imagens esbeltas de biquini acompanhadas de frases como “fará fila para funcionário fazer hora extra no IML”.   Não é apenas “humor negro”. É crime fazer apologia ao crime.

O novo grupo, “Festa no IML V” (tiveram 4 novos grupos antes do V), fez uma postagem sobre necrofobia. Dizendo ser um tabu social abordar o amor por cadáveres. A página marca o portal Quebrando o Tabu, chamando-o para analisar esse “tabu”, já que se coloca como defensor do amor livre. “Consideramos justa toda forma de amor, #foranecrofobia”, ao lado de fotos de animais que copulam com animais mortos, como os cangurus, corvos, lagartos e sapos.
Para o psiquiatria  Gabriel Becher, especializado em parafilias, escutado para a reportagem inicial, não se pode fazer tal comparação. “O animal se aproxima do corpo morto porque não entende que se trata de um corpo morto, é puro instinto biológico”, diz.
No dia seguinte da publicação, Nina me escreveu: “Hoje meu whats amanheceu cheio de ligações e mensagens. Uns agradecendo, outros dizendo que eu deveria ter ficado quieta.Não sei o resultado disso a médio prazo mas vai rolar uma perseguição,porque falar sobre sexualidade e sobre algo tão grave que os homens sabem que acontec é  mexer em vespeiro .. Eu ouvi numa ligação hj.. ‘melhor ter paz do que ter razão’, ‘você não devia ter feito isso’. Mas encontro forças no meu avô, que dizia: o bem não vence muitas vezes porque o bem não luta. Viva em verdade, seja portadora da verdade, e certamente vão te reconhecer por isso”.
Nina foi procurada por emissoras de televisão e por um jornalista do Egito, que leu a reportagem e a contactou dizendo que lá isso ocorre também.
Nina encaminhou o áudio de um profissional que não gostaria de ser identificado, relatando ter ficado chocado com a reportagem. Ele conta o caso de um funcionário do IML que foi afastado por problemas de “sem vergonhice”. Ele abusava de mulheres e tirava fotos. Descobriram um álbum de fotos em seu armário do IML. Esse homem foi afastado, mas não criminalizado.
Nina faz questão de dizer que esse tipo de atitude não ocorre em todas as funerárias, como acabou saindo em uma das frases do seu marido diretor funerário, Vinicius Cunha. Essa generalização foi errada. Concordo. Eu também faço questão de ressaltar o trabalho fundamental de pessoas nesse setor. Não canso de elogiar Gisela Adissi, presidente do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil.
A iniciativa de denunciar surge, também, dessa admiração pelas pessoas que têm feito um excelente trabalho em humanizar e profissionalizar esse setor tão cheio de estigmas.  Muitos, injustos. A única forma de acabar com esses estigmas é trazer à tona as irregularidades e enaltecer as iniciativas proativas.
Seguimos. Denunciando irregularidades e atitudes desrespeitosas com as pessoas, vivas ou mortas.
Violentar uma mulher morta não é considerado estupro de acordo com a lei, mas é um crime de vilipêndio de cadáver. E um total despreparo civilizatório.
Não é amor livre, não é humor , não é brincadeira. Não se estupra mulheres vivas ou mortas. É necessário regulamentar, fiscalizar e profissionalizar o setor funerário brasileiro.

 

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Depoimento:A funerária é o meu lar https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2018/01/11/depoimentoa-funeraria-e-o-meu-lar/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2018/01/11/depoimentoa-funeraria-e-o-meu-lar/#respond Thu, 11 Jan 2018 09:08:12 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2018/01/a-funeraria-e-meu-lar-180x180.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1478 A jornalista de 24 anos, Monique Pimentel, escreveu um depoimento ao blog. A casa onde cresceu também funcionava de sede para o local de trabalho do pai: uma funerária. É um relato que nos aproxima das pessoas que se dedicam ao setor funerário. Não deixa de ser um negócio, que tem o potencial de ser cada vez mais humanizado e profissionalizado se discutido abertamente. Nosso tabu da morte é tão grande, que pouco percebemos olhares como o de Monique, que cresceu em um ambiente intenso, respeitoso, e bonito também.

Leia mais: uma dama na morte

 A funerária é o meu lar

Por Monique Pimentel

Em muitas noites, acordei com choros inconsoláveis de pessoas que eu não conhecia. A janela do meu quarto ficava de frente para o estacionamento da funerária. Era onde chegavam as famílias de quem morria, geralmente menos de um hora depois da notícia. Enquanto a viúva (o) e os filhos se acostumavam com a ideia, escolhiam o melhor traje para entregar seus entes queridos à “vida eterna”.

Flores, coroas, cestos. Faixa de homenagem, bandeira e terço. Os últimos passos de todo mundo era decidido bem ali: na minha casa. Antes de subir as escadas para atender, vinha a ordem do meu pai “shiu, tem gente ai!”. Então, os minutos de silêncio começavam. Meus irmãos empurravam os carrinhos de brinquedo vagarosamente e em tom de cochicho se comunicavam.

Nossa vida era normal, mas gerava curiosidade nos colegas e professores de escola. Enquanto a família estava lá em cima, com meu pai, decidindo os rumos do morto, o movimento na nossa casa começava a aumentar. Estacionava o carro do motorista que tinha sido acionado para trabalhar. O puxa-puxa de caixão para ir buscar o corpo no IML, hospital ou sei lá onde. Alguém passava um café na cozinha. Chegava outro agente funerário para ajudar na preparação. Todos apreciavam o recém passado e comentavam sobre o estado do defunto. Em casos muito trágicos, eu e meus irmãos arregalávamos os olhos e começávamos a especular: “mas arrancou a cabeça? Saiu fora?”. E minha madrasta amenizava “só machucou”. “Ah bom!”, exclamávamos aliviados, sempre aos cochichos.

Era, então, que descia meu pai com as orientações para os agentes. “Usem aquele de cerejeira”, dizia, às vezes, sobre a urna vendida. Quando ele estava lá embaixo, a adrenalina começava a baixar. Ele sempre dava um jeito de nos acalmar. Quando era noite, eu deitava na cama, ele me cobria. Eu continuava ouvindo a movimentação. Ele me dava um beijo na testa e eu dormia. Fiquei maior, e ele bateu na porta do meu quarto pedindo uma base emprestada para usar nos mortos. Minha relação com os cadáveres ficava ainda mais estreita. Agora, dividíamos maquiagem.

Os dias eram estranhamente divertidos. Minhas amigas tinham medo de dormir na minha casa. Até que se acostumavam. E aí não queriam mais parar de conhecer o meu mundo. Meu pai se escondia no meio dos caixões e nos dava susto. Elas se apavoravam. Mas ele sempre me ensinou a respeitar a dor alheia. Qualquer dor, principalmente a da morte. Não tem tabu! Na minha casa, conversamos sobre os mortos com tranquilidade. É de muita responsabilidade ouvir a dor alheia ainda fresca. As pessoas estão fragilizadas. Foi assim que aprendi. Faço analogia com isso para qualquer situação da minha vida.

Hoje sou jornalista. A funerária é no interior de Santa Catarina. Seis meses atrás resolvi morar em Salvador. Não deu certo. Fiquei uns dias na casa do meu pai até que voltasse a trabalhar em Porto Alegre. Não sinto mais o medo profundo dos caixões brancos, como quando era pequena. Aprendi que são armários que guardam mortos, e os levam para o cemitério. Só isso. Nada místico. Mas sei que, assim como quando criança, a funerária é o meu lar.

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O “Uber” da morte (um aplicativo para serviços funerários) https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/11/29/o-uber-da-morte-um-aplicativo-para-servicos-funerarios/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/11/29/o-uber-da-morte-um-aplicativo-para-servicos-funerarios/#respond Wed, 29 Nov 2017 13:17:09 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1442 Até que demorou.

Será lançado, oficialmente hoje, o aplicativo Ipax que reúne informações sobre o serviço funerário. O aplicativo oferece um passo-a-passo com providências a serem tomadas, uma lista de fornecedores de serviços funerários e cemiteriais, com direito à reputação de acordo com avaliação dos usuários e espaços para negociação.

Na introdução, há uma comparação com o efeito “uber”, justificando a criação do Ipax com uma tendência. “Foi o que a Amazon fez com as livrarias, a Netflix fez com a televisão, o que o Airbnb fez com a hotelaria, o que o WhatsApp fez com a telefonia e o que o Uber fez com o transporte de táxi nas metrópoles.”

Como falar de morte ainda é muito delicado, imagino que essa seja uma tentativa de diminuir as chances de rejeição do aplicativo, já que muitos criticam uma possível “mercantilização da morte”.

O jornalista e consultor de negócios Edvaldo Silva, idealizador do Ipax, diz ver uma forma de informar a sociedade sobre suas opções e, assim, diminuir a vulnerabilidade para agentes informais, chamados em São Paulo de “papa-defuntos”.

O Ipax (i de informação e pax de paz em grego) é fruto de uma demanda identificada por Edvaldo como uma oportunidade. “Eu ouvi muitos relatos de quem encontra complicações quando um parente morre. As pessoas acabam não sabendo o que fazer e terminam pagando mais caro do que o necessário. Alguns nem conseguem velar o corpo porque precisam ficar atrás de documentação”, diz.

Essa dificuldade de acesso à informação, apontada por Edvaldo, é muito prejudicial. Ele cita a dificuldade em saber o que fazer com os restos mortais também, como exemplo.

Como pode haver um estranhamento em ter um aplicativo sobre morte no celular, o Ipax também vai funcionar pelo site, como uma plataforma de fonte de informação.

Inicialmente, terá foco na cidade do Rio de Janeiro, com parceiras de estabelecimentos públicos e privados que pagam uma mensalidade para o cadastro no aplicativo. Seu lançamento oficial será hoje, às 14h, na Coordenadoria Geral de Cemitério e Serviços Funerários do Rio de Janeiro. Edvaldo diz desejar uma expansão nacional.

Me chamou atenção a seção “monte um funeral”, indicando o acesso à loja virtual. Há não muito tempo atrás, isso seria impensável. A elaboração do funeral era de responsabilidade de líderes religiosos, que definiam a ordem dos acontecimentos, os códigos de conduta e os textos a serem lidos.

Acho bem-vinda a possibilidade de idealizarmos um funeral que tenha um significado pessoal. Chego a imaginar vídeos e textos desenvolvidos especialmente para aquela família, com músicas, comidas e essências que remetam a um histórico cultural específico e ajudem na composição de uma despedida, e como consequência, na elaboração do luto que está prestes a se iniciar. O Ipax ainda não chega a esse patamar, mas pode ser visto como a indicação de uma mudança cultural forte. O empoderamento de cada um de nós para elaborar rituais que façam sentido em nosso núcleo familiar. Seria a concepção de um ritual personalizado, que pode englobar características de uma determinada religião, mas que não se limite a ela, possibilitando liberdade de escolha.

Leia mais na tag “Tecnologia”. 

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Velório drive-thru – parte 2 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/09/06/velorio-drive-thru-parte-2/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/09/06/velorio-drive-thru-parte-2/#respond Wed, 06 Sep 2017 10:38:43 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/09/b-drivethru-a-20170906-870x580-180x120.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1360 Segundo o “The Japan Times News”, o Japão testará um novo tipo de serviço funerário: o drive-thru.

Ele será voltado, inicialmente, para os mais velhos, que apresentam dificuldade de locomoção, por exemplo. Na cidade onde o serviço será testado no final desse ano, Nagano, 30% da população tem mais de 65 anos.

Os amigos e familiares poderão assinar a lista de presença por uma janela, acender um incenso eletrônico e entregar o “dinheiro de condolências” por ali mesmo, conforme o costume japonês.

Talvez, seu objetivo principal seja mesmo diminuir o tempo gasto nesses rituais, em uma versão fast food da morte, indo contra toda uma tendência de humanização do setor funerário.

Mas isso não é novidade no mundo, já que nos Estados há pelo menos duas funerárias com o serviço, como comentei no post “Conheça o velório Drive Thru”, de 2015, abaixo. Vou retoma-lo aqui, porque a história de uma delas é interessante e eu sigo com o mesmo pensamento que expus no conclusão desse texto. O drive-thru é mesmo de arrepiar.

Conheça o velório Drive Thru, Camila Appel, 2015.

Existem pelo menos duas funerárias no mundo que optaram pelo drive-thru para seus velórios. O caixão fica exposto enquanto os visitantes desfilam em seus carros, dão uma espiadinha, quem sabe comentam sobre como a pessoa parece pacífica, do que morreu, se sofreu, assinam o livro de visitas e seguem para o próximo compromisso.

Hoje em dia fala-se em velórios com opção via Skype (principalmente para pets), para propiciar esse momento aos que moram longe, mas o drive-thru ainda não despontou no Brasil. A iniciativa da primeira funerária a adotar essa prática não é recente nem tem a ver com a correria que associamos à modernidade.

A funerária Robert L. Adams existe desde 1947 e o êxito de sua empreitada pode ter vindo da extrema violência do bairro onde está localizada, em Los Angeles – em uma região dominada por gangues na década de 80. Os enterros tradicionais eram perigosos devido aos tiroteios que seguiam a morte de um membro de uma gangue. Era mais seguro não sair do carro. O vidro que protege os caixões é à prova de balas até hoje.

O fundador da funerária foi exposto numa janela do seu drive-thru quando morreu, em 2005. Sua esposa, Peggy Scott Adams, cantora gospel já indicada ao Grammy, é quem passou a tocar os negócios. Ela canta nos velórios, quando solicitada.

Atualmente, essa opção encontra sua razão de ser na correria do dia a dia, ou mesmo no desconforto de ir a um velório e encarar a tristeza da finitude.

A notícia da Reuters – fonte das fotos abaixo – indica que a cultura do sul da Califórnia é dominada por carros e não ter que procurar por um estacionamento seria visto como uma vantagem.

Uma funerária de Michigan, Paradise Funeral Chapel, que adotou a prática em 2014, coloca como seu motivo principal propiciar maior conforto àqueles com limitações físicas, como a dificuldade de locomoção dos mais velhos. E aposta nessa tendência para o futuro, por ser mais confortável para as famílias e conveniente aos visitantes – eles assinam um livro constatando sua presença e condolências. Em reportagem para o “Global News”, seu diretor atira: “experimente antes de julgar”.

Eu vou ser um pouco mal-educada e partir direto para a segunda parte. Essa versão fast food da morte é de arrepiar e poderia ser mesmo uma tendência se pensarmos na história da morte no Ocidente e a transferência do morrer da casa das pessoas para o ambiente hospitalar. O que já indica um afastamento do morrer e o isolamento gritante daqueles em fase final da vida. Torço para que o futuro delineie outro cenário. Ao invés de fast food, tenhamos um velório mais para gourmet, personalizado e desenhado especificamente para ajudar aquela família e seus amigos e elaborarem o luto e a finitude com a mesma grandeza que procuram elaborar um nascimento.

 

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Uma música indecente https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/08/03/uma-musica-indecente/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/08/03/uma-musica-indecente/#respond Thu, 03 Aug 2017 19:29:03 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1335 Sobre a “Marcha Fúnebre” de Chopin

Estava eu no trânsito, escutando a Rádio Cultura FM (103,3 em São Paulo) quando começou a tocar a “Marcha Fúnebre”, do compositor polonês-francês Frédéric Chopin (1810-1849). Um lindo dia de sol e eu enfurnada numa lata de rodas ao som da famosa trilha da morte.

Quando começou aquele tan, tan, tantan dramático, tão característico da música, minha barriga gelou. Fui num ímpeto trocar de estação. Tive a sensação de ter escutado uma música indecente e obscena. Aí, eu pensei: Oras bolas, se eu, que tenho um blog chamado “Morte sem Tabu” vou rejeitar esse som, quem é que vai dar uma chance para um dos ritmos mais conhecidos do mundo, todo marcado por uma aversão cultural?

Deixei tocar. Aos poucos, fui tomada por um deslumbramento. A composição é realmente linda, e para meu espanto, alegre.

Fluida, ela faz a gente querer fechar os olhos e se deixar levar pela dramaticidade de uma narrativa musical genialmente composta. Há ali um texto, uma história, movimentos, falas, a tradução mais pura de um sentimento. Essa marcha, infelizmente, tem um estereótipo de algo negativo, mas ela é, no fundo, uma grande homenagem.

Segundo os relatos da época, Chopin não nomeava suas composições. Indicava apenas o gênero e o número. A sonata Op.35 teria recebido o apelido de “Marcha Fúnebre” por outros. E nada consta sobre ter sido escrita como uma referência a alguma perda pessoal do compositor.

Chopin morreu aos 39 anos, provavelmente de tuberculose. Como ele tinha pavor de ser enterrado vivo, dias antes de sua morte pediu para que seu coração fosse retirado antes do enterro.

O receio fazia sentido porque esse tipo de coisa acontecia na época. Os batimentos cardíacos muito suaves podiam passar batidos (me desculpem o trocadilho) e algumas pessoas acabavam acordando debaixo da terra.

Edgar Allan Poe abusou dessa temática. Seu conto “O Enterro Prematuro” é narrado em primeira pessoa por um homem que sofre de catalepsia e teme ser enterrado vivo. Sendo Poe, imaginem o que acontece com o homem. “Em A Queda da Casa do Uscher”, a irmã do protagonista tem crises de catalepsia e acaba sendo enterrada viva pelo próprio irmão. Já no conto “ O Barril de Amontillado”, Poe explora uma espécie de “enterrada” como uma forma de vingança contra uma ofensa. Esse conto é terrivelmente incrível.

Na procissão do enterro de Chopin, tocou-se Réquiem de Mozart, seguindo seu desejo explicitado pouco antes de morrer. Ao lado do túmulo, sua “Marcha Fúnebre” foi tocada. Três mil pessoas assistiram o compositor ser enterrado no famoso cemitério de Paris, Pére-Lachaise. Amigos teriam jogado terra de sua cidade natal, na Polônia. O coração foi mesmo retirado e está até hoje na catedral de Varsóvia, na Polônia. Provavelmente, no mesmo frasco de cristal no qual foi lacrado.

Tudo isso para concluir que a “Marcha Fúnebre” é uma música linda e que merece toda entrega que costumamos oferecer a uma obra prima. Deixa ela entrar.

Leia mais sobre Chopin no arquivo de música clássica da Folha.

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O bigode de Dalí: milagre ou ciência? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/07/24/o-bigode-de-dali-milagre-ou-ciencia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/07/24/o-bigode-de-dali-milagre-ou-ciencia/#respond Tue, 25 Jul 2017 02:09:52 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1330  

O mundo ficou pasmado com a notícia da exumação de Salvador Dalí. Não pelo fato em si, apesar de alguns até considerarem o ato desrespeitoso, mas pelo famoso bigode que permanecia intacto, na posição dez horas e dez minutos.

O objetivo da ação foi recolher material genético do pintor para averiguar a paternidade de Pilar Abel. Se confirmada, ela será sua única filha conhecida e herdará 25% do patrimônio, hoje nas mãos do Estado espanhol, herdeiro universal designado por Dalí.

Muitos duvidaram da notícia, como é que um bigode fica intacto por 28 anos? Porque seu corpo foi embalsamado. E o que é isso?

Uma tanatopraxista responde: Segundo Nina Maluf, isso é possível por causa do produto utilizado na época. Usava-se o formol puro, que é dez vezes mais forte do que produto utilizado hoje. Era uma opção principalmente para pessoas famosas, que tinham velórios longos e públicos, porque o formol na sua composição pura, conserva o corpo por mais tempo, retardando o processo de decomposição.

Quatro cortes de entrada nas artérias garantiam que o produto se espalhasse por todos os vasos sanguíneos, inclusive os do rosto. Tanto o cabelo quanto a pele ganhavam um aspecto de couro ressecado e permaneciam íntegros por muitos anos. Nesse caso, quase trinta anos. Nesse processo, as vísceras continuam se decompondo normalmente, mas a pele fica com esse aspecto de couro, como uma carcaça.

Nos embalsamamentos de hoje, não se usa mais o formol puro, porque ele é muito tóxico para quem o manipula, e para o lençol freático.

Essa técnica surgiu na década de 30 para preservar os soldados mortos durante a guerra e garantir que chegassem para suas famílias fazerem o enterro.

Hoje, o principal objetivo continua sendo esse. O embalsamamento é obrigatório em transportes que passam de 250 km, em São Paulo – mas essa lei varia de Estado para Estado. Quando o corpo passa pelo IML (Instituto Médico Legal), como ocorre em mortes suspeitas ou violentas, também é obrigatório o embalsamamento.

Menos morto

A tanatopraxia é um procedimento menos invasivo, que também serve para conservação, mas não se abre o corpo no procedimento. Ela é usada em velórios estendidos e para fins estéticos, porque o corpo fica menos rígido, com uma aparência mais natural.

Essa aparência menos morta tem a seguinte explicação: “quando a pessoa morre, o cálcio dos ossos se desloca para a musculatura, por isso a rigidez. O produto da tanatopraxia auxilia para que seja possível movimentar o corpo, ele fica um pouco mais maleável”, descreve Nina.

Um dos motivos mais importantes da tanatopraxia é a assepsia do corpo, para o contato da família. Segundo Nina, o procedimento torna o corpo mais higiênico e o velório mais seguro.

As condições do corpo também contribuem para um bom embalsamamento, porque as artérias obstruídas dificultam o transporte do produto conservante.

Ou seja, não tem nada de milagre no bigode intacto de Dalí. Essa é uma possibilidade, e é totalmente explicada pela ciência. Mas talvez ele discordasse.

Relembrando Dalí: segue o curta “Um Cão Andaluz”, sua parceria com o diretor Luis Buñuel.

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O Direito do Corpo Morto https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/06/19/o-direito-do-corpo-morto/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/06/19/o-direito-do-corpo-morto/#respond Mon, 19 Jun 2017 16:18:25 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1324 Hoje, partimos do pressuposto de que o corpo morto não tem direitos. Ele pertence à família, que pode fazer o que bem entender com o corpo. Ou ao Estado, no caso de não haver uma família requisitando aquele corpo. A família pode, por exemplo, decidir não doar órgãos, independente de ser uma vontade explícita do morto. Pode, também, enterrar a moça como moço, já que foi assim que ela nasceu, ou chamar um padre ao invés de um pai de santo.

O advogado e professor Fábio Mariano da Silva, Secretário Geral da Reitoria da PUC-SP, dedica sua tese de doutorado em Ciências Sociais a esse tema. Uma das frases mais marcantes que trago de nossa conversa é: “a forma como nos tratam na morte é um reflexo de como somos tratados em vida. As pessoas não percebem essa sutileza”.

A falta de direito do corpo morto, ou mesmo a falta de dignidade no seu tratamento, seria uma consequência da indignidade com que essa pessoa foi tratada em vida.

Fabio foi despertado para o tema quando teve que lidar com a morte da sua mãe. Ela morreu logo após o irmão, que vivia em uma região menos favorecida de São Paulo. O tratamento que Fabio e seu primo tiveram foi completamente diferente. A burocracia e os preços, que deveriam ser tabelados, variavam. Fabio não se conformou, ao contrário do que a maioria de nós faz, sugados pelo luto arrebatador. E hoje, o incômodo com essa discrepância se transformou em pesquisa.

A primeira ação de Fabio foi buscar no Código Civil normas a esse respeito, descobrindo que, de fato, o corpo morto não tem direitos. A lei se refere apenas ao direito a ser sepultado e a permanecer sepultado.

Fabio defende que deveríamos levar em consideração direitos constitucionais, como a identidade de gênero, a manutenção do nome e o direito a livre manifestação religiosa, independente da crença familiar.

Enquanto dava aulas no programa “Transcidadania”, da Prefeitura, Fabio escutou relatos sobre transgêneros enterrados como homens, porque a identidade de gênero não era respeitada pela família e nem precisaria ser, por direito. Ele conta já ter sido foi chamado, por um grupo do Candomblé, para defender o caso de um praticante que iria ter um ritual cristão em seu funeral por imposição da família.

Em sua tese, Fabio critica e discorre sobre como a lei construiu o conceito de “pessoa” e, consequentemente, “sujeito de direito”. E como esse conceito foi deixando certos grupos, não considerados pessoas, fora da lei. Basta observar que, por muito tempo, se considerou escravos como mercadorias e não pessoas. “Algumas doutrinas dizem que o corpo morto não é uma pessoa, mas para mim é”, diz o pesquisador.

A segunda frase que mais me marcou nessa conversa foi um ditado da avó de Fabio: “a morte suspende todos os atos”. Ela parece cada vez menos verdadeira. Chegamos a estranhar, hoje, quando alguém suspende seu cotidiano para ir a um ritual fúnebre. É quase visto como uma desculpa para tirar um dia de folga. Antigamente, era um dever, uma demonstração de respeito, uma oportunidade para compartilhar histórias, refletir sobre a finitude e oferecer apoio aos familiares.

Nesse aspecto, Fabio afirma: “As pessoas estão se tornando cada vez mais práticas em relação à morte. Temos a urgência de sermos felizes nessa sociedade do consumo. Não há tempo para viver o luto”.

Ele indica um curta metragem muito premiado, “Os Sapatos de Aristeu”, sobre o corpo de uma travesti que é preparado por outras travestis como mulher. Mas quando chega na casa da família, sua mãe corta seu cabelo, retira a maquiagem, os cílios postiços, veste-a com roupas masculinas, e a vela como homem. Uma das travestis consegue, no final, colocar sapatos de salto alto em Aristeu. Uma única peça de roupa lembrando quem realmente foi aquela pessoa e com quais passos ela decidiu caminhar pela vida.

 

Um artigo da revista eletrônica AEON, escrito por um professor de filosofia de Nova Iorque, afirma haver uma indústria gigantesca dedicada a executar os desejos dos seres humanos após sua morte e que respeitar esses desejos poderia levar a “sérias injustiças econômicas intergeracionais”. O professor diz que honrar os desejos dos mortos é um senso de dever moral equivocado. É um outro ponto de vista e menciona direitos que nem raspam na nossa realidade, mas também vale a pena conferir. 

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Oração ao tempo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/04/23/oracao-ao-tempo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/04/23/oracao-ao-tempo/#respond Sun, 23 Apr 2017 13:18:11 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1301 Conversando com uma empreendedora funerária, fiquei sabendo que poucas pessoas deixam orientações sobre a música que deve ser tocada durante seu funeral. No Cemitério Horto da Paz, por exemplo, é possível escolher uma música para acompanhar a descida do caixão, durante a cerimônia de cremação. Sem tempo nem cabeça para pensar no assunto, os familiares acabam optando por algo mais tradicional.

Acredito que a escolha da música deva fazer parte de uma lista de providências a serem tomadas, dentro do tópico: como planejar um funeral. Vamos aos poucos abordando cada detalhe aqui no blog.

Falando em providências mais gerais, aproveito para indicar novamente a “Cartilha Jurídica do Luto”, com ações relacionadas a questões funerárias, patrimoniais, sucessórias e securitárias.  Nela, há uma explicação do que é morte natural e violenta, quais providências tomar quando a morte ocorre em casa, na rua, ou no exterior, quais são os trâmites funerários necessários para enterro, cremação, procedimentos junto ao IML, como denunciar direitos violados, como iniciar o processo de inventário, partilha de bens, recebimento de pequenos valores deixados e como acionar seguradoras. O texto também explica a doação de órgãos. Acesse-a gratuitamente nesse link.

Entre as providências mais lúdicas, não mencionadas em nenhuma cartilha que eu conheça, estão as decisões sobre o destino do corpo (que podem ser acessadas na seção “O que você quer ser quando morrer” do blog), vídeos in memoriam, página na internet com QR-code e a música a ser tocada.

Gostaria de aproveitar para deixar uma sugestão. Trata-se de uma música de Caetano Veloso que começa assim: “És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho…”.

Segue  vídeo e letra, na voz de Maria Betânia, para deixar seu dia mais bonito. Pensar na morte é uma forma de meditar sobre a vida e quem sabe, trazer um pouco de poesia para um cotidiano tão atarefado.

Oração ao Tempo

És um senhor tão bonito

Quanto a cara do meu filho

Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo Tempo Tempo Tempo

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo Tempo Tempo Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo Tempo Tempo Tempo

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo Tempo Tempo Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo Tempo Tempo Tempo

O que usaremos para isso
Fica guardado em sigilo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Apenas contigo e migo
Tempo Tempo Tempo Tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

 

 

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É possível ser enterrado vivo? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/14/e-possivel-ser-enterrado-vivo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/14/e-possivel-ser-enterrado-vivo/#respond Fri, 14 Oct 2016 13:35:15 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/10/interreview1-180x119.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1141 Vira e mexe aparece uma notícia de alguém enterrado vivo. Em 2014, repercutiu a história de uma grega que foi declarada morta pelos médicos que a tratavam de um câncer e colocada debaixo da terra. Após a cerimônia do enterro, um grupo de crianças que brincavam no cemitério ouviram seus gritos e chamaram ajuda. Ela morreu sufocada antes de ser resgatada.

O maior problema de ser enterrado vivo é o oxigênio dentro do caixão, que deve durar apenas de uma a duas horas. Por isso, é importante tentar manter a calma, para não acelerar a respiração e gastar essa importante molécula.

O pavor de ser enterrado vivo tem nome: tafofobia. Vem de taphosphobia, taphos dignifica “ caixão” em grego e phobia é fobia. George Washington, o primeiro presidente dos Estados Unidos, teria tanto pânico dessa situação, que deixou instruções para ser enterrado apenas dois dias depois de declarado morto.

O compositor Chopin também sofria desse mal e pediu para retirarem seu coração quando morresse. Ele teria sussurrado, em seu leito de morte na França, para que seu coração voltasse à sua terra natal, na Polônia. O órgão viajou dentro de um jarro com conhaque (isso em 1849) e até hoje é um totem venerado no país.

No início do século 19, esse medo não era completamente irracional, já que sem o avanço da medicina, diversos casos foram relatados e lendas urbanas eram criadas em cima disso.

A rara doença Catalepsia patológica é tida como ter sintomas que podem ser confundidos com um defunto, pois há baixa drástica de sinais vitais e a pessoa aparenta morta. Mas com as técnicas atuais da medicina, seria muito difícil cometer esse erro.

Edgar Allan Poe explora esse tema no conto “O Enterro Prematuro”, narrado em primeira pessoa por um homem que sofre de catalepsia e teme ser enterrado vivo. Sendo Poe, imaginem o que acontece com o homem. “Em A Queda da Casa do Uscher”, a irmã do protagonista tem crises de catalepsia e acaba sendo enterrada viva pelo próprio irmão. Já no conto “ O Barril de Amontillado”, Poe explora uma espécie de “enterrada” como uma forma de vingança contra uma ofensa.

Se você tiver a infelicidade de estar numa situação dessas, há algumas dicas úteis: tente manter a calma para não consumir o oxigênio rápido demais. Medite, ore, entoe mantras, tudo isso. Tente quebrar a tampa do caixão com um anel, como aliança, ou fivela do cinto e use os pés – chutando a tampa. Use sua camiseta para proteger seu nariz e a boca da terra que cairá com tudo e poderá te sufocar. Quando a tampa se romper, não pare de se mexer – sente-se no caixão e use os pés para impulso contra a terra.

Se você tiver sorte, poderá ser “salvo pelo gongo”. A expressão deriva daí. Amarrava-se uma espécie de barbante no braço do defunto, interligado a um sino na superfície. Se os coveiros escutassem um badalo, salvariam o “morto”. O celular parece ser uma versão contemporânea disso. A tanatopraxista Nina Maluf me disse já ter tido uns 12 clientes que, por vias das dúvidas, foram enterrados com seus telefones. A bateria cheia. “O último foi um super celular irado, dá a maior dó”, lamenta.

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Um hotel para os mortos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/06/um-hotel-para-os-mortos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/06/um-hotel-para-os-mortos/#respond Thu, 06 Oct 2016 19:14:35 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/10/lastel-corpse-hotel-32-180x117.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1122 Aparentemente, não há razão de existir para um hotel onde os hóspedes são defuntos e não casais em lua de mel. Mas no Japão há sim e o motivo é simples: a fila de espera do crematório chega a quatro dias, levando famílias em busca de alternativas a deixar o corpo em casa, aguardando.

O hotel Lastel, na província de Yokohama, sul de Tóquio, tem 18 quartos com caixão refrigerado e espaço para os familiares mais próximos velarem pessoas queridas enquanto o dia da cremação não chega.

A indústria da morte no Japão tem mostrado crescimento. A população de 127 milhões de habitantes já atingiu seu auge e deve cair para 100 milhões em 2050. É o que a revista “The Economist” chamou de “Peak Death” (auge da morte). A taxa de mortalidade é de 0,94% enquanto a global é de 0, 84%.

Japoneses tendem a gastar bastante com rituais funerários – o dobro do que a população americana gasta anualmente. A indústria chega a mobilizar US$20 bilhões de dólares por ano.

Nesse contexto, empresas começaram a ver oportunidades e lançaram ideias como: papelarias que vendem “ending notes” – cadernos específicos para providências a serem tomadas após a morte – e um barco que oferece levar familiares até a baía de Tóquio para jogar cinzas.

Duas empresas americanas que vendem serviços de lançar cinzas no espaço, a Celestial e a Elysium, abriram franquias no Japão. Também há o serviço de colocar cinzas em balões gigantes que serão soltos no céu (nessa área nós também empreendemos, com o Crematório Vaticano, por exemplo, misturando cinzas a fogos de artifícios).

Há conferências destinadas àqueles que desejam preparar seu próprio funeral. São três dias de imersão para os participantes escolherem seus caixões, urnas de cremação, fazerem lista de convidados, escutarem exemplos de música e aprenderem a estimar os custos de seus funerais. Também podem praticar a escrita do texto de anúncio de suas mortes e pensar no legado deixado.

Empresas de tecnologia andam se envolvendo. Há dois anos, a Yahoo Japão lançou o “Yahoo Ending”, um serviço que cobra uma taxa mensal até a sua morte e avisa seus amigos que você morreu, fecha suas contas na internet e abre uma página memorial on-line. O serviço também oferece a organização do velório. A Amazon Japão disponibiliza um serviço on-line de contratação de monges, que ainda não pegou muito bem.

Há uma migração de profissionais da indústria de casamento para a de morte, estimulados pela fácil inserção no mercado, por não ser necessário qualificações ou licenças obrigatórias.

Segundo Hiraku Suzuki, no livro “The Price of Death – The funeral Industry in Contemporary Japan” (o preço da morte – a indústria funerária no Japão contemporâneo), há um movimento progressivo de comercializar aquilo que antes era parte de um ritual religioso no Japão. As empresas funerárias teriam um papel importante em definir novas práticas culturais e, assim, transformar a sociedade. O autor analisa como a mudança de rituais comunitários tradicionais para os serviços funerários comerciais impacta a sociedade japonesa e seus valores.

No Brasil, uma mentalidade mais comercial me parece existir, mas sem o outro lado da moeda, que seria esse olhar empreendedor pensando nas famílias enlutadas como clientes, com direito a informação, transparência, escolha entre alternativas, serviços personalizados, confiança e qualidade. Por isso, temos poucos serviços disponíveis, um monopólio público na maior cidade do país e baixo acesso à informação. Só usufruímos dos malefícios da morte ser vista como uma commodity. Tá faltando o outro lado da equação.

O filme “When I die, Inside Japan’s Death Industry”, mostra imagens interessantes sobre a indústria da morte japonesa:

 

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Columbário no Japão: gavetas que guardam cinzas são representadas por Budd has de cristais iluminados por LED colorido. Foto de Chris MacGrath. http://www.ibtimes.co.uk/japans-ruriden-columbarium-crystal-buddhas-led-lights-spectacular-afterlife-photos-1495182
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Columbário no Japão: gavetas que guardam cinzas são representadas por Budd has de cristais iluminados por LED colorido. Foto de Chris MacGrath. http://www.ibtimes.co.uk/japans-ruriden-columbarium-crystal-buddhas-led-lights-spectacular-afterlife-photos-1495182
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Columbário no Japão: gavetas que guardam cinzas são representadas por Budd has de cristais iluminados por LED colorido. Foto de Chris MacGrath. http://www.ibtimes.co.uk/japans-ruriden-columbarium-crystal-buddhas-led-lights-spectacular-afterlife-photos-149518
Fachada do Lastel Hotel (para cadáveres), no Japão. REUTERS/Yuriko Nakao
Quarto do Lastel Hotel para cadáveres, no Japão. REUTERS/Yuriko Nakao

Leia mais no blog: Duas empreendedoras da morte no Brasil:  A preparadora de corpos Nina Maluf e a Mylena Cooper – do Crematório Vaticano.

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