Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Novo endereço deste blog https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/12/30/novo-endereco-deste-blog/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/12/30/novo-endereco-deste-blog/#respond Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2589 Olá leitores !

O endereço deste blog mudou. A partir de agora, os novos posts estarão em:

www.folha.com/mortesemtabu

Este endereço simplificado te direcionará para a url completa:

https://www.folha.uol.com.br/blogs/morte-sem-tabu/

Seguimos por lá.

Um abraço!

Camila e Jessica

]]>
0
Joan Didion: o luto de uma escritora sem crença https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/joan-didion-o-luto-de-uma-escritora-sem-crenca/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/joan-didion-o-luto-de-uma-escritora-sem-crenca/#respond Mon, 02 Aug 2021 11:53:03 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/joandidion_-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2443 Julia Ferry

“O ano do pensamento mágico” e “Blue Nights” são dois livros da escritora Joan Didion dedicados ao seu marido John, e à filha, Quintana. Em um relato pungente, a autora escreve sobre a dor de perdê-los. O que vemos nesses livros, é a escrita do luto que não nos oferece um consolo, nem a promessa de um ensinamento ou reparação, mas o compromisso com uma transmissão honesta sobre a dor de viver a perda. “Este é o primeiro livro sobre o luto escrito por alguém sem crença. Joan Didion, só Deus sabe, acredita na realização humana”, diz David Hare no documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold“, dedicado à escritora. 

O corpo fino e frágil que vemos no documentário que acompanha quase 80 anos de vida da autora, é narrado nos dois livros, como depositários do medo e da dúvida. Didion conta que viver as suas perdas é viver um imenso medo. Medo de não ser mais capaz de se levantar de uma cadeira, que se estende para o temor de não conseguir pensar e até mesmo falar. “Quando digo que sinto medo de me levantar de uma cadeira dobrável em uma sala de ensaio na West 52nd Street, do que realmente sinto medo?”, ela interroga.

O medo como um afeto que antecede a experiência da perda é um sentimento  comum entre as pessoas. A ideia de perder alguém é, por si só, geradora de profundas angústias. Há vidas inteiras que são vividas atravessadas por esse  medo, que parece nos revelar não só a fragilidade que é própria da vida, mas a indeterminação que nos constitui: O que é o “eu” sem o “você”? 

Como apresentou a filósofa Judith Butler, a experiência da perda demonstra a nossa dependência em relação aos outros que amamos, não apenas para viver nossas vidas, mas para nos definirmos como pessoas. Somos sujeitos despossuídos, nos diz Butler. Não temos propriedade e posse do nosso predicado. Somos despossuídos pelos outros, desfeitos pela sua presença em nossas vidas. Nos transformamos e nos descobrimos com os nossos encontros. Como somos também, inevitavelmente, despossuídos na ausência daqueles que amamos. Perder alguém é abalar as próprias noções de si.  Em “Luto e Melancolia”, Freud afirma que não sabemos exatamente o que perdemos quando perdemos alguém. E aí está a perplexidade de uma pessoa, que não é apenas uma presença e uma ausência, mas uma alteridade inapreensível.

Didion não para de sentir medo, mesmo depois de ter perdido. Há um medo que é tão impreciso quanto a experiência que o originou. A perda é uma experiência imprecisa: o que eu perdi com essa pessoa? O eu é forçado a se encontrar com a sua inconsistência. Não só a morte, mas separações dolorosas também impõe essa experiência. Há quem a ideia de perder seja tão devastadora, que procura com todas as forças barrar inícios, relações e proximidade. Assim, quem sabe não amando tanto, evita-se o sofrimento pela perda. É a tentativa de um controle absoluto e programado do que é da ordem do contingente.

A experiência da perda é tão radicalmente devastadora, não só porque nos leva a transformar aquilo que somos, mas nos mostra, no seu espanto, o quanto nunca fomos donos de nós mesmos. Por isso é possível dizer: “não queria querer o que eu quero”, ou nas palavras de Simone Weil: “a contradição, por si mesma, é a prova de que nós não somos tudo”. Não temos escapatória às coisas que nos atravessam. Algo nos escapa, o outro, a própria vida.

Didion se interroga se não perdeu, junto com o marido e a filha, até mesmo as funções motoras e cognitivas, descrevendo a desconfiança nas suas capacidades mais familiares e primárias. As habilidades do seu corpo e a sua capacidade de comunicar sobre esse estado de desespero lhe parecem instáveis: “E se eu nunca mais conseguir localizar as palavras que contam?”. Não só sua própria fragilidade, mas também o dispositivo de narração que se expressa é colocado em questão.

Como escritora, ela conta que “imaginar o que alguém diria ou faria é tão natural para mim quanto respirar”. Mas imaginar o que John falaria, ou escreveria, era não apenas doloroso como ultrajante. O marido, também escritor, era o primeiro leitor e crítico de tudo que ela escreveu. Ela então se pergunta sobre uma frase que tenta completar: “como ele a teria escrito? O que teria em mente? Como queria que ela ficasse?” e conclui que “a decisão cabia a mim agora. Qualquer escolha que eu fizesse carregaria um potencial abandono, até mesmo uma traição”.

Didion “resolve” seu dilema na seguinte passagem: “Deixei como estava. Por que você sempre tem que estar certa? Por que você sempre tem que ter a última palavra? Pelo menos uma vez na vida, deixe para lá”. Essas últimas três frases foram faladas pelo marido e endereçadas a ela, em uma pequena discussão que tiveram. Ela desloca o contexto das palavras de John para as perguntas que faz para si mesma, na ausência dele. Falar com as palavras já ditas pelo outro, essa ainda é uma possibilidade. E foi a saída encontrada por Didion, que inventa através das suas palavras, e das palavras que lhe foram ditas pelos outros, uma escrita possível sobre o luto. Escrever sobre John, seu marido, e Quintana, sua filha, é um gesto de fazê-los viver em um livro, um gesto que ao mesmo tempo acena para essas vidas, e afirma as suas mortes. Dizer para nós com as palavras deles, dizer para si mesma com as palavras dos outros, o luto de uma escritora sem crença.

*Referência Judith Butler: Vida precária: os poderes do luto e da violência. Autêntica Business, 2019.

Julia Ferry (juliaferry@hotmail.com) – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP. 

]]>
0
Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/nao-foi-troca-de-tiros-kathlen-foi-assassinada/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/nao-foi-troca-de-tiros-kathlen-foi-assassinada/#respond Wed, 09 Jun 2021 19:06:03 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/kahtlen-romeu-instagram-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2410 Infelizmente, a política mais atual do Brasil continua sendo a política da morte. O alvo? Corpos pretos, periféricos e favelados.

Há tempos não consigo nem processar os tantos lutos que nos atravessam, pois logo vem mais um, e outro e outro. Não que isso seja novo. Sabemos que andar na rua e correr o risco de morrer não vem de hoje.

Mas eu sinto que há uma crueldade sem disfarce que faz questão de sublinhar a que veio. Não consigo escrever sobre Kathlen de Oliveira Romeu sem me imaginar ou imaginar outras mulheres iguais a mim. 

Kathlen tinha apenas 24 anos de idade. Era designer de interiores e modelo. Estava grávida de 14 semanas e suas postagens nas redes sociais mostram uma mulher feliz na construção de uma família preta, à espera de sua primeira criança. Cheia de planos, e vida. Literalmente, carregando uma vida no ventre.

Caminhava ao encontro de sua tia e foi assassinada em uma terça-feira à luz do dia na Comunidade do Lins, no Rio de Janeiro. Não, não dá pra ser feliz e caminhar tranquilamente na favela onde você nasceu.

Sua morte é um retrato cruel e doloroso do que significa ser uma mulher negra no Brasil hoje. Demorei muito para escrever esse texto. Faz um mês  que narrei sobre a chacina de Jacarezinho. Me senti num interminável déjà-vu, repetindo as mesmas palavras sobre como o racismo mata pessoas que vêm de onde eu venho, como a necropolítica rege o cotidiano de favelas e periferias.

Já repararam como as balas ditas “perdidas” sempre encontram um alvo? Desde 2017, 15 gestantes foram baleadas e oito morreram no Rio de Janeiro, apontam dados da ONG Fogo Cruzado.

Isso se chama racismo estrutural e integra as estratégias de genocídio em curso da população negra. De novo: necropolítica, política de morte desenhada pelo Estado, onde ele escolhe quem vai viver e quem pode ser descartável. Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada.

Não há “meus sentimentos” capaz de exprimir a dor e a fúria de ver mais um corpo negro tombando. Não há cartilha, empatia capaz de abraçar a dor,  a palavra ainda não dá conta da barbárie. A morte chegou antes da vida, matando não só a mãe, mas a possibilidade de futuro de uma família preta que se constituía.

No período da escravidão, as mulheres negras não podiam viver a maternidade. Elas eram separadas de seus filhos. Elas não podiam ter uma família. Para uma mulher negra, a possibilidade de se relacionar afetivamente e viver sua maternidade é uma forma de existência. É o mais alto da resistência.

Por isso, hoje, eu não tenho muito o que dizer. Não aguento mais me repetir.

]]>
0
Chacina do Jacarezinho: ‘A gente não merece viver em um cenário de guerra’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/chacina-do-jacarezinho-a-gente-nao-merece-viver-em-um-cenario-de-guerra/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/chacina-do-jacarezinho-a-gente-nao-merece-viver-em-um-cenario-de-guerra/#respond Fri, 07 May 2021 02:31:23 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/chacina-rio-de-janeiro-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2368 O dia 6 de maio ficará registrado na história do Brasil como uma quinta-feira sangrenta. Como se não bastasse todas as dores e dificuldades que a pandemia evidencia, os moradores de Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), amanheceram sob intenso tiroteio, invasão às suas casas, celulares confiscados e a morte de pelo menos 25 pessoas.

Nas redes sociais, fotos e vídeos denunciam que aquilo que o Estado do Rio de Janeiro chamou de operação foi uma verdadeira chacina. Além das 25 mortes registradas oficialmente, a população acredita que houve ainda outros homicídios.

O advogado Joel Luiz, nascido, crescido e militante de Direitos Humanos em Jacarezinho, caminhou com dor pelas ruas de sua infância. “Andamos pelo Jacaré, entramos em quatro, cinco, seis casas, todas com a mesma dinâmica: casas arrombadas, tiros de execução […] O menino morreu sentado em uma cadeira. Ninguém troca tiro sentado em uma cadeira, isso é execução. Isso é barbárie”, afirmou o advogado em vídeo em sua conta no Instagram.

A ação da polícia durou mais de 9h. Foi a mais letal da história da polícia do Rio, segundo dados da ONG Fogo Cruzado. A operação foi realizada pela DPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), com o apoio da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais).

“Mataram 25 pessoas ou mais. Isso acabou com o tráfico de drogas? Isso vai acabar com o tráfico de drogas? A partir de amanhã não vai ter mais drogas sendo vendidas nas vielas do Jacarezinho porque 25 pessoas foram mortas?, questionou Joel.

Para o advogado, o que presenciou hoje deixa claro a inexistência da democracia. “Isso aqui não é democracia. Definitivamente, isso aqui não é a democracia que se fala nos livros, que a gente aprende na faculdade, que falam no Jornal Nacional […]. Isso aqui não é nada do que a gente pensa sobre o que é viver em sociedade”, disse.

“É muito cruel você passar na rua onde você brincou, onde sentou com os amigos, tomou cerveja, você viveu a vida e ver uma dezena de marcas de tiro na porta de um bar, na loja de cosméticos. Balas e balas no chão, cartuchos”, lamentou o advogado. “Ninguém merece isso. Não estamos aqui falando em nome de A, B ou C. Só falando que isso aqui é cenário de guerra e a gente não merece viver em um cenário de guerra. Não é justo você entrar em seu território e ver cenário de guerra. Ver casas arrombadas. Que Dia das Mães essas pessoas vão ter?”.

Em nota oficial , as organizações, coletivos e ONGs locais também mostraram sua indignação. “Em meio a uma pandemia que matou 410 mil pessoas, 45 mil só no Rio de Janeiro, ocorreu a operação mais letal da história do estado, sob a justificativa de proteger ‘os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e demais moradores que residem nessas comunidades”.

No perfil de Joel nas redes sociais, há diversos vídeos de moradores e moradoras contando suas versões sobre a história de hoje. A imagem que vai marcar essa quinta-feira é a das paredes e piso de salas, cozinhas e escadas respingado sangue. Não só uma, mas muitas delas, escancarando uma realidade que mata de muitas formas as favelas.

Em um vídeo, uma moradora guia a pessoa com a câmera e mostrando os pingos de sangue pela escada. No fim das escadas, o cômodo cheio de sangue. “Filma, filma”, a mulher pede, como em um pedido de socorro e também registro daquilo que não basta mais ser apenas verbalizado. São imagens muito duras e difíceis de ver e de aceitar em qualquer circunstância.

Uma delas é uma senhora negra, que pede para não mostrar o rosto. Sua voz narra o inenarrável, a dor e indignação de uma mãe querendo informações sobre o corpo de um filho:

“Eles  apontaram a arma para mim de fuzil no meu rosto dizendo que eu tinha que morrer, só porque eu fui falar com eles, fui perguntar onde o corpo do meu filho estava. Meu filho morreu hoje, eles chegaram atirando. Eles são umas pestes”, diz a senhora em vídeo que pode ser visto aqui.

A CIDADE DA POLÍCIA

Desde 2013, o bairro do Jacaré abriga a Cidade da Polícia, um espaço da Polícia Civil do Estado do RJ, que comporta 15 delegacias especializadas, onde estão cerca de 3 mil agentes. A comunidade vive a aflição de estar sempre muito perto dos policiais.

“De um lado você está na Cidade da Polícia e você atravessa a rua e está no Jacarezinho. Isso mostra um pouco da complexidade da dinâmica da cidade do Rio de Janeiro. Que é essa cidade repartida ao meio”.

Quem conta isso é Seimour Souza, coordenador do Lab Jaca e do NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem). Conhecedor dos desafios e potenciais da comunidade, hoje Seimour ouviu os mais dolorosos depoimentos da boca daqueles que ele convive diariamente no Nica ou nas entregas de cestas básicas diante da pandemia.

“A palavra que resume o dia de hoje é medo. Medo do que aconteceu, medo de denunciar. As pessoas não querem falar. Tiveram pessoas assassinadas dentro de suas próprias casas e não querem falar, não querem ser identificadas, conta.

“É algo inominável pra gente. No cotidiano e na gramática do genocídio que a gente vive isso é só mais uma peça no mosaico do extermínio da população negra”, afirma Seimour. “O mundo, o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro segue naturalizando isso como se fosse justificável em alguma medida o assassinato de 24 pessoas, 25 incluindo o policial.”

#CHACINADOJACAREZINHO

Por volta das 12h, a população saiu pelas vielas da comunidade pedindo justiça e, à noite, realizaram um tuitaço pedindo justiça com a hashtag #ChacinadoJacarezinho. “São as mulheres negras que choram a morte dos seus filhos. Feliz Dia das Mães pra quem?”, escreveu em um dos tweets o Instituto Marielle Franco.

Eliane Vieira, integrante do Coletivo Mães de Manguinhos, diz que “o braço armado do Estado não pode sair por aí assassinando as pessoas como se fossem seres supremos que decidem a vida e a morte”.

Moradora de Manguinhos, próximo ao local da chacina, Elaine conta que as pessoas estão apavoradas. “Por medo da madrugada e por saber que a qualquer momento tudo pode acontecer”, diz.

Ela conta que as Mães de Manguinhos e demais movimentos organizados do Rio estão cobrando dos respectivos órgãos uma resposta nesse momento. “Não é possível que uma chacina dessa ainda seja encarada como operação”>

“Exigimos explicações e questionamos: como o Estado pretende atuar no território depois dessa chacina? Como recuperar o trauma das milhares de pessoas que foram submetidas ao terror policial? Como os familiares das vítimas serão amparados? Quais os mecanismos institucionais de prevenção às ações como as que vivenciamos no dia de hoje? Esperamos respostas”, aponta também a nota oficial das organizações locais.

“Ser um militante negro contra o genocídio no Brasil faz com que a gente se questione não ‘se a gente vai ser assassinado, mas quando quando e como. Esse dilema que a gente tem que enfrentar”, diz Seimour .

ATO

Nesta sexta-feira (7) acontece ato às 17h da tarde, no G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, contra as violações ocorridas no Jacarezinho. O ato está sendo organizado pelas organizações locais: LAB Jaca, NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem), IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), Associação de moradores do Jacarezinho, Cafuné na Laje, G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, Jcré Facilitador, Jacaré Basquete e ONG Viva Jacarezinho. Clique aqui para mais informações.

]]>
0
Quem tem medo do coronavírus? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/quem-tem-medo-do-coronavirus/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/quem-tem-medo-do-coronavirus/#respond Thu, 11 Feb 2021 16:47:07 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/turistas-praia-sp-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2273 A maioria das pessoas não pensa (ou não quer pensar) na morte, até que se vê obrigada. Nos últimos meses, milhões não tiveram outra escolha, senão a de pensar sobre ela. Seja em relação a si próprio ou de quem está em volta. 

Embora especialistas apontem que uma dose de medo pode ser importante para gerar alerta de perigo iminente, muito medo não é saudável. Vimos os níveis de ansiedade e depressão subirem amplamente em todo o mundo, exigindo maiores cuidados com a saúde mental.

No entanto, há o grupo dos sem-medo. Ou, melhor, dos que têm tanto medo, mas tanto medo, que preferem bloqueá-lo completamente, na esperança fantasiosa de que assim zarpam de vez com a própria ameaça que os rodeia (Confira texto sobre medo da morte aqui no blog).

Olhar para o medo é sair da fortaleza de poder que cerca a muitos de nós, entendendo nossos limites, nossas fraquezas e que somos passíveis de cair a cada passo. Em tempos ditos “normais” (acrescente aqui muitas aspas), eu diria que cada um escolhe lidar ou não com seus medos. Mas em tempos de pandemia, os sem-medo precisam entender que sua escolha coloca em risco inclusive quem olha e cuida do medo que carrega.

Uma amiga próxima, que prefere não dizer o nome, discutiu com um de seus familiares porque ele se recusava a usar máscara em casa mesmo após cinco dias de febre, tosse e dores no corpo. Sabemos, todos esses são sintomas da Covid-19. A pessoa alegava que era seu direito decidir o que fazer.

Cansada das inúmeras discussões, a amiga, sem qualquer sintoma, isolou-se em seu quarto e passou a utilizar a proteção facial em todos os cômodos da residência. No fim, o exame da pessoa deu negativo. Mas poderia ter sido ao contrário e toda uma família acabar contaminada, inclusive sua mãe, idosa com doença crônica.

O exemplo é apenas uma ilustração do que vem acontecendo todos os dias no Brasil, quando o Presidente da República se recusa a olhar suas próprias fragilidades e de sua ínfima e desastrosa governança, e mente a si próprio negando a pandemia, a vacina, a ciência e, pior, fingindo não enxergar a trágica situação na qual se encontra o país. Vide o que aconteceu em Manaus em janeiro.

Em janeiro, a ONG Internacional Human Rights Watch publicou a 31ª edição de seu Relatório Mundial apontando Jair Bolsonaro (sem partido) como um dos culpados pela crise social e sanitária do Brasil. O relatório diz que Bolsonaro tentou “sabotar medidas contra a disseminação da Covid-19 no Brasil” e impulsionar “políticas que comprometem os direitos humanos.”

“O presidente Bolsonaro expôs a vida e a saúde dos brasileiros a grandes riscos ao tentar sabotar medidas de proteção contra a propagação da Covid-19. O Supremo Tribunal Federal e outras instituições se empenharam para proteger os brasileiros e para barrar muitas, embora não todas, as políticas antidireitos de Bolsonaro. Essas instituições precisam permanecer vigilantes”, é o que disse a diretora adjunta da Human Rights Watch no Brasil, Anna Lívia Arida.

O conceito de capacitismo pode explicar muito bem como funciona o grupo sem-medo da pandemia. Quem fala sobre isso é Victor Dimarco. Ator, diretor e dramaturgo, Victor é criador do filme ‘O que pode um corpo’, que reflete sobre o tema e um dos vídeos de seu perfil no Instagram traz a reflexão ligada à pandemia: 

“O capacitismo é uma estrutura de pensamento. Afeta nossa sociedade e está afetando também a forma como a gente está lidando com a pandemia. E como a sociedade também normalizou a morte a partir de uma visão capacitista e o egoísmo. O capacitismo parte de uma supremacia da capacidade. Ou seja, quem é mais capaz possui mais privilégios. Eu falo de capacidade corpórea ou financeira. Até porque , infelizmente, uma está ligada a outra. A gente ainda vive em um mundo onde alguns corpos valem mais que outros. Na pandemia, o que mais se falou, no senso comum, foi como a Covid-19 não representava um risco tão grande para grupos que não faziam parte do grupo de risco. Ou seja, as pessoas mais “capazes” socialmente. Esse senso comum pensa que esse grupo de pessoas “capazes” se sentissem no direito de voltar ás atividades não essenciais de seu dia a dia, fazendo aglomerações e afins e levando ainda mais o vírus”.

Sim, a vacina está aí, estamos confiantes. É emocionante ver nossas idosas e idosos sendo finalmente protegidos. Mas é importante dizer que há 21 dias a média de mortes diária está acima de 1 mil. Vale lembrar que esse número só foi registrado em maio de 2020, diante do pico da pandemia no país. Até agora, são 234.850 mil mortes e mais de 9 milhões de casos e uma variante do vírus rondando a nossa esperança.

]]>
0
Sobre ursos e a espera pelo novo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/sobre-ursos-e-a-espera-pelo-novo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/sobre-ursos-e-a-espera-pelo-novo/#respond Thu, 31 Dec 2020 16:18:11 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/becca-_r6w0R6SueQ-unsplash-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2211 Um urso enorme me caçava dentro da cidade. Quando fui me esconder, descobri vários ursos perambulando pelas ruas e pessoas desesperadas, como eu, buscando proteção. Era preciso encontrar labirintos apertados para se acolher e ficar ali até algum sinal de que os ursos iriam sumir. Consegui achar um quarto e me tranquei. Sentei no chão, fiquei ali esperando, enrolada nos meus próprios braços.

         Esse último sonho do ano traz um sentimento muito presente no ano todo: o sentimento de espera. Fiquei esperando o perigo passar, tentando me desvencilhar do medo de perder alguém amado, me desvencilhar da depressão. 

É inútil entrar em guerra contra um urso gigante, mas também é possível vê-lo como algo acolhedor. O ursinho de pelúcia que sempre protegia minha cama durante o dia. Até a escuridão chegar, eu me deitar, abraçá-lo e encontrar a segurança necessária para fechar os olhos para cair no abismo dos sonhos.

Na espera, encontro conforto transmutando conceitos. Ou pelo menos, tento. 

         O medo ainda estará muito presente em 2021. O medo do desconhecido, o medo da morte. Eu escrevo um blog chamado “Morte sem Tabu” há 6 anos, participo de palestras e encontros para discutir temas relacionados à morte, e nunca a senti tão presente quanto agora. 

Eu tive medo da morte o ano todo.       

Conversei com sepultadores, agentes funerários, médicos, enfermeiros, motorista de ambulância, entregadores de comida. O sepultador Osmair Cândido me disse: “o medo é tão denso que dá para pegar com a mão”. Essa frase martela. 

Esse blog deu um passo importante, recebeu uma coautora. A jornalista Jéssica Moreira traz questões sociais e raciais sobre a morte. Não vejo uma pauta mais urgente para esse espaço do que essa.

A palavra “luto” nunca recebeu tanto destaque da mídia quanto agora.

         Já ouvi definições lindas sobre luto. Luto é vínculo. Luto é o amor que fica. Luto é a internalização do outro em nós mesmos. Luto é ocupar um terreno desertificado pela ausência. Luto é dor.  O compositor José Miguel Wisnik perdeu a esposa em 1982, de ataque cardíaco durante uma crise asmática e o filho de 7 anos, seis meses depois. Ele compôs uma música sobre esse sentimento:

       “Se meu mundo cair, então / Caia devagar. / Não que eu queira assistir / Sem saber evitar / Cai por cima de mim / Quem vai se machucar / Ou surfar sobre a dor até o fim / Cola em mim até ouvir / Coração no coração / O umbigo tem frio / E arrepio de sentir / O que fica pra trás / Até perder o chão / Ter o mundo na mão / Sem ter mais onde se segurar / Se meu mundo cair / Eu que aprenda a levitar”. 

A ideia de levitar é oposta à figura do urso do meu sonho, pesado, grudado no chão. Mas também representa sabedoria. É a leveza necessária para sobreviver. Desejo levitar com a consciência de quem tem raízes no chão, reverberando como uma árvore anciã.  

Termino com o trecho do último epsódio de uma série documental que participei, lançada em junho 2020. “Em Nome de Deus” está disponível no GloboPlay. Uma boa virada de ano a todos e obrigada por nos acompanhar.

Veja o vídeo aqui

 

https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/12/29/avancos-e-retrocessos-para-uma-morte-sem-tabu/

 

https://globoplay.globo.com/v/7752834/

 

]]>
0
Finitude – jornalista trata com leveza e profundidade o tema mais universal e delicado da humanidade https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/22/finitude-jornalista-trata-com-leveza-e-profundidade-o-tema-mais-universal-e-delicado-da-humanidade/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/22/finitude-jornalista-trata-com-leveza-e-profundidade-o-tema-mais-universal-e-delicado-da-humanidade/#respond Mon, 22 Jun 2020 20:04:50 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/de703c2f-a88e-4fe0-971b-885ee6dc6b3a.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1993 Nesses seis anos de blog, vi um movimento bonito se fortalecer – a quebra do silêncio em torno de um tema universal e absoluto, a morte.

Os tabus criados e alimentados sobre a fase final da vida são prejudiciais à nossa sociedade. A relação médico paciente é muitas vezes baseada em insegurança, falta de informação e falta de cumplicidade. O médico, com receio de assustar a família, não é totalmente sincero sobre prognósticos e tratamentos. A família, com receio de incomodar o médico ou mesmo não ter acesso direto a um, sente-se perdida diante de uma doença sem perspectivas de cura.

O processo de esterilização da morte (sua passagem do ambiente doméstico aos hospitais – como coloca o sociólogo Norbert Elias) acaba favorecendo essa cultura.

Morremos sós.

Muitos morrem na UTI, entubados, distantes de  uma família que está insegura sobre essa ter sido a melhor alternativa. Se consolam com as palavras dos médicos: fizemos tudo o que poderia ter sido feito.

Mas estamos realmente fazendo tudo o que pode ser feito? Afinal o que é esse tudo?

Essa é uma das questões colocadas por uma voz que se destaca nesse movimento, a da jornalista Juliana Dantas. Ela toma frente do podcast semanal Finitude. 

Inicialmente, ele era tocado por seu criador, o jornalista Renan Sukevicius, para falar sobre diversos fins. Fim da vida, fim de relacionamento, fim das coisas. Tudo começou quando o colega, e amigo, a convidou para ser entrevistada sobre a morte do seu pai, o premiado jornalista Audálio Dantas. Entre seus reconhecimentos, está um prêmio concedido pela ONU, por importantes trabalhos na área de direitos humanos.

Juliana passou por uma experiência intensa. “Eu tive um luto em vida, acompanhando todo o processo de morte. Tanto da minha avó, quanto do meu pai. Ele morreu em 3 meses depois dela, no mesmo quarto, no mesmo hospital”.

Esse hospital é o Hospital Premier, o primeiro do Brasil a se dedicar integralmente aos cuidados paliativos. Fundado em 2004, se coloca como um espaço de acolhimento acima de tudo.

   Conheça os cuidados paliativos aqui.

Acompanhar a morte do seu pai nesse hospital foi uma experiência transformadora. Tanto pessoalmente quanto profissionalmente, já que ela personificou uma missão a partir disso.

A abordagem do hospital é única em todos os aspectos. Até a forma como o psicólogo se aproxima é diferente e foi essencial para ajudar Audálio, que não se conformava em ter que diminuir o ritmo, a começar a elaborar o que estava acontecendo.

“Ele não gostava que as pessoas soubessem do tamanho da gravidade da doença e ele não gostava de saber. Uma vez me disse: não quero que as pessoas sintam que eu sou carta fora do baralho”.

Ao invés de chegar com perguntas bruscas, o psicólogo iniciou a conversa com um interesse comum: Carolina de Jesus, a escritora descoberta pelo jornalista.

Juliana foi percebendo, aos poucos, que existia um abismo entre a medicina tradicional e a de cuidados paliativos.

“Meu pai ia parar a quimio e um amigo dele disse ‘Audálio, não desista’. Como é cruel esse ‘não desista’. O amigo não falou por mal, mas é um completo desconhecimento sobre o que significa parar a quimio e ter qualidade de vida. Aí, eu pensei – meu deus, preciso falar sobre isso porque é uma das poucas questões brasileiras que passa não pela condição financeira necessariamente, mas pelo acesso à informação”.

 

Juliana diz ter escutado muitos relatos de pessoas que se arrependem de terem entubado o pai, e outras dizendo ‘não quero morrer igual minha mãe’.

“As pessoas fazem isso achando que elas estão fazendo de tudo, mas elas estão tomando as decisões em falso, sem todas as informações à disposição”.

Juliana sentiu que seu “tudo” seria não entubar o pai e poder oferecer coisas que tivessem um significado para ele. Ela aprendeu a fazer Sururu, uma comida típica do Alagoas, estado natal de Audálio. Um momento significativo foi comer jaca, a fruta predileta do pai, no jardim do hospital.

O hospital incentiva e possibilita que os familiares possam realizar atividades representativas, como o piquenique do Sururu, ou  arrumar uma jaca em horas.

“Até hoje eu não sei de onde apareceu essa jaca. Eu sempre tive conexão com esse hospital. Depois que meu pai morreu, continuei indo lá”.

Ninguém entra, ninguém  sai

O Premier chamou atenção durante a pandemia por ter adotado uma medida drástica: fechou suas portas por 45 dias para proteger seus 48 pacientes. Ninguém entra, ninguém sai. Com uma exceção: a jornalista Juliana Dantas.

Um dia após a declaração da quarentena, no dia 26 de março, Juliana recebeu a permissão de entrar no hospital e fez uma exclusiva para seu podcast, o Finitude. “Eu percebi muitas mudanças. Eu entrei pela lateral, que é um lugar que raramente se entra. De lá, é possível ver o jardim. O Samir Salman, superintendente do hospital, destruiu o estacionamento para fazer jardim e um espaço de convivência. Aliás, é o único hospital que eu conheço que não tem um valet cobrando 30,00 por hora. Começa por aí”.

Ela entra descrevendo o que vê e ressalta elementos que fazem desse espaço único. “Eu me vali muito da comparação. Se antes eu sabia que não tinha a tenda, agora eu sei que tem. Isso é elemento. Há elementos significativos do hospital, por exemplo: ter o nome do paciente na porta”.

Juliana entrevistou diversos profissionais que toparam, voluntariamente, se isolar no hospital durante todo esse tempo. As histórias são impactantes. Conhecemos o terapeuta ocupacional  português que acompanhou o nascimento do filho por vídeo e até hoje não o conhece,  a médica que deixou o filho de um ano para se dedicar a esses pacientes e a auxiliar de limpeza que enfrentou questionamentos da família por ter deixado os filhos aos cuidados do pai. Chegaram a ameaça-la de chamar o conselho tutelar. O hospital recebeu voluntários também, como o chefe de cozinha.

Os 45 dias iniciais viraram 90.  Juliana teve a permissão de retornar para acompanhar a abertura das portas e a reinserção desses profissionais na sociedade, nas suas vidas e rotinas anteriores. “Eles vão começar a flexibilizar, não porque entendem que o coronavirus recuou mas porque não querem esticar a corda da saúde mental dos funcionários”, diz Juliana.

Para todos nós, a abertura após a pandemia já será impactante. Agora imagina para quem entrou por um “portal paralelo” e está confinado há 90 dias em um hospital, enquanto sua vida lá fora continuava… Imagina as histórias que eles terão para contar. É o que Juliana vai descobrir.

 

((Navegue pelas categorias  do blog! Setor funerário, depressão, morte digna, religiões… O que você quer ser quando morrer…))

]]>
0
A gente não tem um minuto de paz https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/01/tem-sangue-retinto-pisado/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/01/tem-sangue-retinto-pisado/#respond Mon, 01 Jun 2020 17:15:43 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1974 Enquanto eu me recupero da COVID-19, convidei a pesquisadora Cynthia Araújo para escrever um artigo para o blog. Cynthia sentiu um impulso de falar sobre um tema urgente. “Tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado, mulheres, tamoios, mulatos, eu quero o país que não está no retrato”. Obrigada pela oportunidade de publicar esse conteúdo aqui, Cynthia.

Tem sangue retinto pisado

Por Cynthia Araujo

Tem sangue retinto pisado,

atrás do herói emoldurado,

mulheres, tamoios, mulatos,

eu quero o país que não está no retrato

Até que ponto nós, brancos, podemos contar certas histórias?  Sempre me faço essa pergunta.

A sociedade brasileira é considerada por muitos a mais racista do mundo. Então, de branca para brancos: nós somos racistas. E a nossa indiferença contribui para a morte de pessoas negras. Então, nós também devemos falar sobre isso.

No Atlas da Violência 2018, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), observou-se que 71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas.

Um vídeo produzido pela Anistia Internacional, Coalizão Negra por Direitos e Periferia Connection, divulgado no último dia 25 de maio, lembra, dentre muitos e muitos outros, os homicídios de Kauã Vítor Nunes Rozário, aos onze anos; de Ághata Vitória Felix, com oito; e de Kauê dos Santos, aos doze. Crianças assassinadas por um Estado que deveria protegê-las, com a conivência de uma sociedade que dá peso menor a sua morte. Violências absurdas que foram amplamente divulgadas pela imprensa e são deliberadamente esquecidas por pessoas brancas como eu.

Na última semana, João Pedro, um menino negro de apenas quatorze anos, foi covardemente assassinado. Ele estava em casa, na Ilha de Itaoca, em São Gonçalo. A jornalista Thais Bernardes, editora-chefe do portal de jornalismo Notícia Preta(1), escreveu que o laudo cadavérico aponta que o menino foi assassinado com um tiro de fuzil pelas costas. Em casa.

A família de João Pedro passou a noite procurando por notícias suas. Ele já estava morto. A polícia já sabia que ele estava morto. Mas a família continuava procurando por ele.

Conceição Evaristo, uma das principais escritoras brasileiras contemporâneas, falou sobre a cruel atualidade da obra “O Genocído do Negro Brasileiro: o processo de um racismo desmascarado”, de Abdias Nascimento. Ela destaca que “jovens corpos negros defrontam com a precipitação da morte. Um deles, João Pedro Matos, 14 anos, com o seu corpo negro estava ‘marcado para morrer.”

Corpos matáveis”. Conhece essa expressão? Ela nos lembra que as crianças mortas pelas mãos do Estado são quase sempre pretas.

E que “a gente não tem um minuto de paz”.

Esse sentimento pode até sensibilizar pessoas brancas como eu. Mas logo voltamos para a segurança de quem não será violentado pela cor. De quem não terá que brigar pela biografia de um filho executado pela polícia, porque ele não é negro.

Brigar pela biografia. Tentar impedir que, além de matar o João Pedro, matem também a sua história. Para que não violentem a sua imagem depois de violentarem o seu corpo, criminalizando a sua existência.

No dia 19 de maio, pouco depois que o corpo do João Pedro foi localizado, o RJTV1 fez uma matéria sobre sua morte. Ela me causou um incômodo profundo – o mesmo que você está sentindo ao ler este texto, espero. Em um vídeo gravado, sua mãe, Rafaela Lenc, dizia: “Ele só tem quatorze anos. Ele não é bandido”.

Em transmissão ao vivo, o pai de João Pedro repetiu para o repórter Eudes Júnior que o filho não era bandido, era “um jovem de quatorze anos, um jovem com um futuro brilhante pela frente, (…) querendo ser alguém na vida. Mas infelizmente a polícia interrompeu o sonho do meu filho. A polícia chegou lá de uma maneira tão cruel, atirando, jogando granada, sem mesmo perguntar quem era. E eu entendo. Se eles conhecessem a índole do meu filho, quem era o meu filho, eles não faziam isso”.

A família de João Pedro preocupava-se em mostrar que ele não merecia morrer.

No episódio do podcast Finitude “Vidas negras importam”, o ativista negro e membro do canal Periferia Connection Wesley Teixeira deu voz ao meu incômodo: “parece que a vida da população negra tem que ser o tempo todo validada, [tem que] merecer viver”.

No dia 28 de maio, conversei com a tia do João Pedro, Denize Roza. Falei sobre a minha sensação de que os familiares do João tinham achado necessário ressaltar que o João Pedro era só uma criança, que ele não estava envolvido com nada errado.

Ela me disse que a família realmente queria deixar isso bem nítido: “A gente sabe que, na mente de muitas pessoas e até das polícias, se você mora numa favela, a grande maioria eles acham que são pessoas envolvidas com tráfico. E não é isso. A minha preocupação também era essa. Que ele não ia passar como se fosse um menino ruim, um menino bandido, um menino viciado, coisa que ele não era”.

Eu respondi que me doía muito saber que eles se preocupavam com isso, no lugar de apenas sentir a dor de perder o João. Falei sobre reconhecer mais um privilégio, dentre tantos: o de perder uma pessoa para a violência policial e não temer que o Estado e a sociedade a culpem por isso.

E pedi para a Denize falar um pouco mais sobre essa preocupação. Ela me respondeu que sempre orientava o João e os primos dele, seus filhos, a abrir a porta e deixar a polícia entrar:

Mas a realidade que a gente vive não é essa. Eles não chegam, batem no seu portão e perguntam se podem entrar. Eles entram. E muitas das vezes atirando. É muito complicado você querer criar seu filho decentemente, como o João era criado, como a mãe mesma relatou: protegi tanto meu filho, porque ele tinha bronquite, protegi tanto meu filho da pandemia e aconteceu isso com meu filho. Você tem um filho negro, você tem que ensinar o seu filho a se portar melhor do que uma criança branca. Por que eles podem ser confundidos com bandidos? Meu filho é uma criança como outra qualquer. Mas a gente sabe que na nossa sociedade não é assim. A gente tem que se policiar o tempo todo. Infelizmente, não adiantou. Pro João, isso não importou”.

Não importou, porque a cor que nos desiguala em vida também nos desiguala na morte. E precisamos que as histórias sejam contadas por quem vive essas histórias.

William Reis é coordenador do AfroReggae[2] e colunista da Veja Rio. No dia 26 de maio, ele escreveu a matéria “Coalizão Negra: Movimentos sociais se unem por João Pedro”. Nessa matéria, o William fala sobre o genocídio de jovens negros: “Você que está lendo agora esse texto pode se perguntar: Essas pessoas morrem porque são negras?’ A resposta é sim. Elas morrem porque são negras e pobres”.

Eu pedi para ele falar um pouco mais sobre essa naturalização da morte preta.

Ele me respondeu que “as pessoas morrem porque são negras, pois existe um sistema pra isso. Um sistema racista. Racismo é poder, e falta poder econômico, na saúde, na educação, no saneamento básico e na segurança [para as pessoas negras]. Sendo assim as pessoas negras historicamente morrem mais e, de tanto morrer, de tanto o racismo estar aí para que você morra, essas mortes são naturalizadas. As pessoas não associam isso à questão racial, porque, no Brasil, existe uma falsa democracia racial. Muitas pessoas acham que, pelo fato de aqui nunca ter tido leis segregacionistas, negros são iguais ou têm as mesmas oportunidades que pessoas brancas”.

Falei para ele que tenho a impressão de que a maioria das pessoas brancas não consegue associar a piada racista, a falta de representatividade do negro, o racismo no cotidiano à morte das pessoas negras.

Ele me disse que “os números mostram isso. Você tem o mapa da violência que mostra a violência por cor e classe social, você tem a anistia internacional falando que a cada 23 minutos morre um jovem negro, e você tem agora o observatório da violência no rio, são muitos órgãos. Acho que falta mesmo é o Brasil aceitar que somos racistas, pois estudos e órgãos sérios não faltam. Aceitamos isso ou vamos conviver com o fracasso como país e sociedade”.

Esse fracasso não é privilégio do Brasil. Enquanto escrevo esta matéria, o racismo faz outras vítimas. George Floyd, um homem negro de quarenta e seis anos, foi asfixiado pelo policial branco Derek Chauvin no último dia 25 de maio, em Minneapolis, Estados Unidos. Um vídeo amplamente divulgado mostra que Floyd estava no chão, algemado, com seu pescoço pressionado pelo joelho do policial. Ele dizia que não conseguia respirar e implorava por sua vida, até que perdeu os sentidos. Conforme informações da BBC, pouco depois de ser levado por uma ambulância, foi declarado morto.

Há cinco dias, protestos incisivos tomam conta dos Estados Unidos.

Em abril deste ano, o criador de conteúdo e ativista social Bruno Jerônimo perguntava em um artigo para o site Médium: “O sangue do povo preto importa?”

Perguntei ao Bruno o que ele pensa sobre o Brasil de João Pedro versus os Estados Unidos de Floyd:

Os protestos tiveram um avanço nesses últimos dias. Depois que o vídeo viralizou, a comunidade negra norte-americana foi para as ruas, expressar sua revolta e exigir prisão para os policiais de Minneapolis, responsáveis pelo assassinato de George. Devido ao cenário histórico-social, a população negra norte-americana consegue ter uma articulação maior do que a população negra brasileira. É só lembrar das lutas pelos direitos civis, Luther Ling, Malcom X, Panteras Negras e entre outros. O mito da democracia racial no Brasil aumenta o nosso pacifismo em relação aos protestos. Tem o Covid-19, que cria o receio de sair de casa e protestar, mas é notório que, comparada aos EUA, nossa revolta com esses casos têm peso diferente. João Pedro, 14 anos, morto pelas costas, Amarildo, que não sabemos o que houve com o corpo, os 80 tiros não foram solucionados, quem matou Marielle é uma pergunta que tem 808 dias sem respostas. Tem passado batido, sabe?

A Coalizão Negra por Direitos, aliança que reúne mais de cem entidades do movimento negro de todo o Brasil, notificou organismos nacionais e internacionais, para que haja investigação e responsabilização pela morte do João Pedro (os documentos protocolados podem ser encontrados aqui. Além disso, a Coalizão tem uma campanha permanente para que “os veículos da mídia passem a tratar os assassinatos deliberados, diários, sistemáticos em massa da população negra com o nome que eles têm: genocídio”.

Uma das entidades que compõem a Coalizão é a Uneafro , uma rede de educação popular de ação permanente em quarenta comunidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Conversei com o professor de história Douglas Belchior, um dos seus fundadores, sobre o trabalho da Coalizão.

Ele me disse que a Coalizão trabalha fazendo denúncias em cortes nacionais e internacionais, além de intervenções junto ao Executivo e ao Congresso Nacional, “visando à aprovação de leis que buscam a implantação de uma segurança pública humanizada no país, e não essa, que é uma segurança pública genocida, na nossa avaliação. No ano passado, estivemos muito no Congresso, em Brasília, além de termos ido à OEA e à ONU, por diversas vezes”.

O Douglas me explicou, também, que, embora existam outros escritórios e iniciativas de direitos humanos que atuam nesse sentido, os movimentos negros querem fazer a sua autorrepresentação: “nós somos o movimento que está na base, que é composta pelo povo que morre na bala da polícia, e nós, ao mesmo tempo que somos esse povo que labuta dia a dia, que enfrenta com o corpo a violência da polícia e do Estado e a desigualdade e a fome, a gente quer também ser o corpo que elabora a política, que formula, que se organiza”.

Para o Douglas, o João Pedro é mais uma criança preta vítima da política de segurança pública colocada em prática pelo Estado, que promove a morte deliberada de um segmento específico: o negro. E isso tem um nome: genocídio, praticado pela polícia mais violenta do planeta.

Hoje, dia 31 de maio, após a morte de mais um jovem negro pela polícia, desta vez Matheus Oliveira na favela do Catrambi, foi realizado um ato pelo fim das operações policiais violentas nas favelas, em frente ao Palácio da Guanabara, convocado por coletivos de favelas do Rio de Janeiro. A necessidade de visibilidade em meio à pandemia de Covid-19 veio com recomendações: “Mantenha distância de 2 metros das outras pessoas, volte para casa depois do ato, não crie aglomerações, vá de máscara. Se for grupo de risco não vá”.

Sigo muitos perfis de jornalismo negro e antirracista nas redes sociais. O ato foi amplamente divulgado, mas, antes pouco repercutiu na mídia em geral.

Para o Bruno Jerônimo,

O cenário artístico norte-americano é outro ponto que diferencia os Estados Unidos do Brasil, pois vemos o engajamento de celebridades mundiais, como LeBron James e Beyoncé, na esfera política, que faz com o que o povo negro tenha mais voz. Os protestos resultaram na prisão de Derek Chauvin, policial que matou George. Se será condenado ou não, veremos. No Brasil, as investigações andam lentamente sobre o caso João Pedro. Torço por justiça, apesar de ver que os fatos do passado não favorecem. Enquanto esse povo continuar adormecido, as mortes serão apenas números e postagens no Instagram. Isso me faz questionar se o sangue do povo negro realmente importa”.

Enquanto termino de escrever esta matéria, assisto ao vivo, pelo Instagram, a violência policial carioca. O jornalista negro da Rede Globo Marcos Luca Valentim, que havia participado do ato, realizado de forma absolutamente pacífica, acaba de ser ferido por uma bomba jogada pela polícia sem qualquer motivação.

Denize Roza lembra que todas as mães da ilha sentem a dor da mãe do João Pedro. Todas sabem que “poderia ter sido o seu filho”. Ela diz que a família quer justiça, “não só pelo João, por todas essas crianças e mães que já passaram por isso. E a gente sabe que isso não vai parar, infelizmente”.

Pergunto ao William Reis o que eu, branca, posso fazer para que isso pare. Ele me responde que “as pessoas brancas podem ajudar, acho que fazendo um papel dentro dos seus locais, onde convivem, se reeducando, educando as crianças brancas, cobrando uma diversidade no nosso país, entendendo que podem ajudar, mas que o protagonismo disso é negro. Não odiamos os brancos, odiamos o racismo do país”.

A Thais Bernardes concorda: “o papel do branco antirracista na sociedade racista é dar visibilidade para as causas negras. No seu espaço de convivência, seja no seu trabalho ou na sua família, levar as pautas e o olhar racializado sobre os temas”. Ela explica que “a luta antirracista não é de negro contra branco. Para uma sociedade plural como a nossa se constituir, é preciso ter diálogo. O nosso racismo é estrutural e estruturante. Os brancos ocupam lugares na sociedade que nós, negros, não ocupamos, ou em que somos minoria”.

Se ainda não convenci você sobre a nossa responsabilidade, compartilho a última fala da tia do João Pedro: “Tudo que a gente faz lembra ele. Vamos comer e lembramos daquilo que ele gostava de comer, daquilo que ele não gostava. Hoje a gente comentou que ele adorava comer bolo de fubá. É muita dor, ele era um menino alegre, sorridente, brincalhão, gostava de fazer a gente rir”.

João Pedro era um adolescente, no início da vida. Ao ouvir a mensagem carinhosa da sua tia, lamentei não ter como conhecê-lo. Falhamos com o João e tantas outras pessoas. Falhamos com seus sonhos, suas potências. Suas vidas valiam muito, valiam tudo. E nós tiramos deles o mundo que lhes era devido.

Agradeço a todas as pessoas que gentilmente aceitaram conversar comigo e me cederam o que temos de mais importante: o tempo. Contribuíram para esta matéria: IG @brunojeronimo @ciica.pereira @denizeroza_ @negrobelchior @thaiisbernardess e @williamreis85. Agradeço, ainda, a @conceicaoevaristooficial @eudesjunior27 @finitudepodcast @hosanaelliot @thiago_augustto e @wesleyteixeiras e todos os portais de jornalismo antirracistas, em especial o @noticiapreta. E, hoje, e sempre, pela troca e confiança, à querida Camila Appel @mortesemtabu (fb).

 

Não sou negro, como ajudo na luta contra o racismo?”. 

Texto de Ciça Pereira. Gestora de políticas públicas. Pesquisadora e gestora cultural. Idealizadora da iniciativa Afrotrampo.

  1. Doe para campanhas em combate ao racismo.
  2. É bem relacionadx, conhece pessoas bem sucedidas, fale sobre projetos pretxs e sobre profissionais pretxs.
  3. Compre produtos de empresas pretas.
  4. Fale sobre racismo para pessoas brancas.
  5. Fique em silêncio quando uma pessoa negra falar algo relacionado ao racismo.
  6. Encontre terapeutas pretos e pague sessões e diga a ele para distribui-las para pessoas negras. (anonimamente, por favor. Não faça a Rafa Kaliman)
  7. Grite com policiais quando forem racistas.
  8. Se você tem acesso a veículos de imprensa ou tem visibilidade, apoie campanhas e denúncias, apoie conteúdos urgentes de mídias independentes. Conheça: @almapretajornalismo @vozdascomunidades @portalgeledes @desabafo_social @xepafestival @ebonyenglishschool @afrotrampos
  9. Seu pai é dono de empresa? Doe dinheiro para projetos pretos.
  10. Seu pai/você é dono de empresa? ‘Contrate, promova e pague um bom salário a pessoas negras, porque somos sempre os que ganham abaixo do piso das faixas salariais – experiência própria. Detalhe: entregando mais e melhor do que muitos’ (@MartaCelestino)”.

(1) Qual a importância dos portais de jornalismo antirracista?

Por Thais Bernardes (Notícia Preta)

Primeiro é importante ressaltar o que é fazer um jornalismo antirracista. Um jornalismo antirracista não é somente sobre pautas ligadas diretamente ao corpo negro, como acontece nos casos de genocídio, assassinato e violência policial. Ser um jornalista antirracista é entender a informação através de uma perspectiva racial e social da notícia e isso pode passar por pautas sobre política, economia. Por exemplo, se a gente fala sobre o aumento do dólar, a gente pode fazer uma pauta antirracista, dizendo como isso vai impactar as classes C e D, que são majoritariamente negras. A gente também pode falar sobre como uma determinada política atinge o corpo negro.

Portanto, o jornalismo antirracista pode ser praticado por todo jornalista, em qualquer mídia, não apenas pelo que chamamos de portais ou jornais negros, que estão tendo ascensão graças à Internet. É importante dizer que o jornalismo negro em si apareceu no início do século XX, mas foi desaparecendo em razão da falta de financiamento.

A importância desse jornalismo é trazer a informação levando em consideração a população negra, que corresponde a 54% da população brasileira, segundo dados do IBGE. Então, por exemplo, no início da pandemia aqui no Rio de Janeiro, a gente fez várias pautas sobre transporte público. Nós mostramos que a mídia tradicional falava “fique em casa”, mas o BRT continuava lotado. Ali tem uma questão racial, porque o BRT estava lotado majoritariamente de uma população de trabalhadores negros que compreende empregadas domésticas, porteiros, as classes C, D e E, que precisa trabalhar para sobreviver e não tem como ficar em casa, por motivos principalmente econômicos. Então, tratar essa pauta de uma forma racializada é dizer que essas pessoas são negras, porque estão na base da pirâmide social, especialmente a mulher negra.

Na ausência desse jornalismo antirracista na chamada mídia tradicional, que frequentemente desconsidera a racialização, são os portais de jornalismo negro que fazem a leitura da informação para os nossos.

Um outro aspecto importante do jornalismo antirracista é a leitura dos corpos negros, tal qual são apresentados, como nos casos de violência policial, já que a maior parte das pessoas assassinadas são pessoas negras. Quando houve o caso do João Pedro, muitos títulos da imprensa tradicional diziam: “jovem de quatorze anos morre em operação policial”. Para a mídia antirracista, as palavras “morre” ou “é morto” apagam o que de fato aconteceu, um assassinato, porque o laudo comprovou que o João Pedro foi assassinado com um tiro de fuzil nas costas. E isso é ser executado em operação policial. A utilização correta dos verbos dá um sentido amplo e real do fato. Quando a mídia antirracista enfatiza “jovem é executado”, “jovem é assassinado”, aí você entende a crueldade do foi feito pela polícia. Outra questão importante se refere à identificação do negro, a partir de suas profissões. Eu sempre dou o exemplo de “traficante é preso com cinquenta quilos de cocaína no aeroporto” e “estudante é preso com cinquenta quilos de cocaína no aeroporto”. Quando você adjetiva, você sabe a cor que ele tem. Geralmente, o traficante é o negro, o estudante é o branco.

Esse é o trabalho linguístico e educacional da mídia antirracista. É a gente entender que a utilização dos verbos e dos adjetivos leva a entendimentos diferentes.

E eu sempre falo que o trabalho do jornalismo negro é um trabalho educacional. Por vivermos em uma sociedade de racismo estrutural e estruturante, é nossa função quebrar conceitos, clichês e paradigmas. E a gente só consegue isso através de uma educação. E como é educar no jornalismo? É você educar a leitura, a forma como você lê e a forma como você interpreta. Eu acredito que, mudando essa linguagem jornalística aos poucos, a gente vai conseguir – não sei em quanto tempo –  chegar a uma linha de escrita e comunicação antirracista, em que palavras como “denegrir não serão mais utilizadas; em que uma jornalista não vai falar, sobre um negro preso, que ela não sabe o motivo da prisão, mas “ele poderia estar roubando”, porque para ela é natural essa situação. A partir do momento em que a linguagem é trabalhada, a gente desnaturaliza conceitos que foram historicamente criados.

[2] Nas palavras do próprio William, o AfroReggae é uma ONG que existe há 27 anos nas favelas do Rio, trabalhando com Populações marginalizadas e com foco central em afastar jovens da influência do tráfico. A ONG hoje tem projetos na área de games, uma agência para egressos do sistema prisional que se chama Segunda Chance, um centro cultural em Vigário Geral que oferece oficinas culturais, uma orquestra de música clássica. Nosso dever é com o fim das desigualdades, do preconceito e do racismo.

]]>
0
Cerimônia coletiva em homenagem às mães que morreram durante a pandemia https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/05/09/cerimonia-coletiva-em-homenagem-as-maes-que-morreram-durante-a-pandemia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/05/09/cerimonia-coletiva-em-homenagem-as-maes-que-morreram-durante-a-pandemia/#respond Sat, 09 May 2020 21:38:26 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/6ba468dd-30fa-4bbf-b707-455357299c4d.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1960  

Amanhã, haverá uma cerimônia coletiva e virtual em homenagem às mães que morreram durante a pandemia. Será um espaço de acolhimento aos amigos e familiares que foram privados dos rituais de despedida durante esse período. Como diz Tom Almeida, organizar da cerimônia e idealizador do movimento infinito.etc. : “A data de amanhã é importante e deve ser honrada”.  Leia o texto enviado por ele ao blog, abaixo.

((A cerimônia ocorre via Zoom e não é necessário se cadastrar. Veja o link abaixo. É só aparecer e trazer uma foto da homenageada)).

Homenagem às mães vítimas de Covid-19

Por Tom Almeida

A data de amanhã é muito importante e deve ser honrada. Será o Dia das Mães dentro de uma pandemia global. Será um domingo diferente, onde filhos não poderão estar com suas mães. Não haverá o almoço, o colo e a reunião em família.

E o Dia das Mães deste ano acontece no mesmo final de semana que atingimos o marco de 10.000 mortes pelo COVID 19 ( isso sem contar o que não foi notificado).

10.000 vidas que não tiveram seus rituais de despedidas e não puderam ser honradas devidamente.

10.000 seres humanos com seus sonhos, famílias e histórias.

Para cada morte existem entre 04 a 10 enlutados, ou seja, são entre 40.000 a 100.000 pessoas enlutadas, impactadas por esta dor e sem a possibilidade de despedidas dignas.

Some a isso, outras vidas que se foram neste período e independentemente de terem sido infectas ou não pelo coronavirus, também foram privadas dos rituais de despedida.

Por mais difícil que seja dizer adeus, realizar os rituais de despedida é extremamente importante para ajudar a concretizar as perdas, organizar os sentimentos e reforçar o sentimento de pertencimento – somos seres sociais e precisamos um do outro. É uma oportunidade de sentimos o quanto somos amados e quanto o nosso ente querido também foi amado.

Por mais dolorosa que seja essa experiência, ela precisa acontecer. Os rituais existem para ajudar a dor a ser reconciliada e estamos sendo convocados a reformular os rituais de despedida e reforçar ainda mais o seu significado.

Por isso eu reforço: a data de amanhã é muito importante e deve ser honrada.  As primeiras datas simbólicas depois da perda, como o Dia das Mães, podem ser as mais desafiadoras.

Se você perdeu sua mãe durante a pandemia, sinto muito pela sua dor. Eu não consigo saber o tamanho da sua tristeza, mas eu já perdi a minha e posso me solidarizar.

Eu sinto muito também pela dor das mães que perderam seus filhos durante essa pandemia.
Estas vidas merecem ser honradas e por isso, faço um convite.

Neste domingo iremos nos reunir em uma celebração coletiva e virtual. Se você conhece alguém que morreu vítima do coronavírus ou neste período do coronavirus e não pôde se despedir devidamente, por favor estenda este convite.

Juntos, podemos acolher os sentimentos que estão emergindo e levar palavras de conforto a cada um dos enlutados.

Traga uma foto da mãe/avó que será homenageada.

Data – 10 de março

Horário- 10hs da manhã

Participe pelo celular ou pelo computador usando este link:

https://us02web.zoom.us/j/86238275960

*Faça um teste antes para não ter problemas de entrar na sala virtual

Guia de Rituais de Despedidas Virtuais
Caso você prefira organizar o seu próprio ritual, eu e diversos líderes desenvolvemos um Guia de Rituais de Despedidas Virtuais que pode te ajudar. Este guia fala sobre a importância desses rituais, mostra novas possibilidades de realização de cerimônia, oferece um passo a passo e acesso a uma importante rede de profissionais. Será possível então substituir  o ritual presencial? Talvez substituir não seja a palavra certa, mas acreditamos que seja possível criar algo novo e bastante significativo que ajude a assimilar estes sentimentos e elaborar o luto.

Acesse o guia aqui. 

Um abraço caloroso e desejo que este domingo seja o mais gentil possível com você.
Tom Almeida

Fundador do Movimento inFINITO

@infinito.etc

 

]]>
0
Hoje os chamados estão mais coerentes – diz motorista de ambulância do SAMU https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/05/02/hoje-os-chamamos-estao-mais-coerentes-diz-motorista-de-ambulancia-do-samu/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/05/02/hoje-os-chamamos-estao-mais-coerentes-diz-motorista-de-ambulancia-do-samu/#respond Sat, 02 May 2020 21:04:13 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/samu.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1952 Abel Toledo é motorista de ambulância do SAMU há 9 anos. No turno das sete da noite às sete da manhã, ele atende chamados de resgate. São acidentes de trânsito (principalmente com motos), parada cardíaca, trabalho de parto, pessoas em situação de rua, embriaguez e por aí vai. Todos os motivos que fazem uma ambulância ser acionada.

No começo do ano, ficou afastado do trabalho. Ele sofreu um infarto e precisou de um mês para se recuperar.

Quando voltou à rotina, o novo coronavírus tinha dominado as manchetes. Aos poucos, foi vendo seu dia a dia mudar.  “Hoje, os chamados estão mais coerentes.  A população se conscientizou, e, de fato melhorou a triagem”, diz.

Chegava a receber 8, 9, chamados por dia e agora são 3, 4, por plantão. Alguns dos chamados “sem importância”, como define, são unha encravada, cólica menstrual e bebedeira. “Já aconteceu de passar na triagem como parada cardiorrespiratória e você chega lá e é uma pessoa embriagada”.

Toledo tem medo de ser contagiado pelo vírus. Além de ter sofrido um infarte recentemente, ele tem diabetes. Faz parte do grupo de risco.

Para se proteger, usa todos os equipamentos de proteção indicados, como luvas, máscara, avental, touca, e óculos. Na primeira vez em que nos falamos, há duas semanas, não usava a proteção completa em todos os atendimentos. Hoje, com o avanço da contaminação, já sai preparado independente do motivo.

Ao chegar em casa, tira toda a roupa e deixa do lado de fora. Seu maior medo é contaminar sua família. “Minhas filhas e meu neto são os bens mais preciosos que eu tenho”.

Toledo relata preocupação com a conscientização da seriedade da pandemia. Uma colega, antes cética, mudou de opinião após ver dois colegas de profissão serem infectados.

“A sociedade ainda precisa tomar a ciência do perigo que é a Covid-19. Por mais que tenha aumentado as mortes, o pessoal ainda não caiu a ficha”, lamenta.

Não se vê como um dos heróis exaltados no momento e gostaria que seu trabalho fosse mais valorizado. Ele contou sobre um episódio passado, em que pegou um caso suspeito de outro vírus contagioso.

“Tínhamos que tomar o coquetel de remédios, como prevenção. Mas não queriam mandar este coquetel para mim, iriam disponibilizar somente para a enfermeira e a auxiliar.  Se a enfermeira não questionasse, eu ficaria sem o remédio. O condutor é inexistente para alguns”.

Apesar de esperarmos que todos abram alas para uma ambulância passar, não é bem assim que acontece na prática. “Uma grande parte dos motoristas da cidade não respeitam”.

Ele achou que a cidade ficou bem mais vazia desde a quarentena, mas tem notado que o fluxo aumentou nos últimos plantões. “Isso porque eu trabalho de noite, imagina se fosse de dia”.

Se ele pudesse pedir algo em nome dos motoristas de ambulância, optaria por “respeito no trânsito, dando passagem sempre que possível, e a jornada de máximo 30 horas”.

Apesar dos momentos difíceis, ele diz sentir-se feliz quando sai para um atendimento em que faz a diferença. “Um engasgo de uma criança, um trabalho de parto, reverter uma parada cardíaca… você não imagina como isso me traz uma alegria, uma satisfação profissional que não dá para descrever em palavras. Então, eu me sinto útil. Eu amo minha profissão”.

Leia o relato de um coveiro, aqui

Leia o relato de uma tanatopraxista, aqui

Leia o relato de uma médica de UTI do Hospital das Clínicas, aqui.

]]>
0