Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Crônica do Fim do Mundo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/24/cronica-do-fim-do-mundo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/24/cronica-do-fim-do-mundo/#respond Mon, 24 May 2021 15:17:07 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/isaac-quesada-ztiexrDN7o-unsplash-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2398 Excelente crônica do fim do mundo enviada por nossa colaboradora Cynthia Pereira de Araújo. Ela é advogada da União e pesquisou sobre pacientes com câncer avançado em seu Doutorado em Direito. Publicou  a tese Existe direito à esperança?.

Crônica fo Fim do Mundo

Por Cynthia Pereira de Araújo

Tenho me preparado para isso há algum tempo.

Na verdade, já não consigo mais imaginar como seria de outra forma.

Estou acostumado a esse tratamento misericordioso, essa atenção absoluta. Com tudo aquilo que nunca tive antes.

Queria que isso durasse mais tempo. Mas não dá para ter o melhor de todos os mundos.

-Vai querer carne ou frango?

Essa pergunta elementar e alimentar sempre me tira dos meus devaneios. Todas as vezes, penso em ser honesto e responder “tanto faz, não vou comer nenhum dos dois”. Mas me lembro que fui orientado a não divulgar tão abertamente esse segredinho.

Pego o livro que está na minha cabeceira desde domingo. Um suspense. Só leio suspenses. Antigamente, achava que lia para passar o tempo. Hoje, percebo que poucas coisas me fazem tão bem como ler. Sair totalmente de uma realidade para entrar em outra, em que a ansiedade que habita o meu corpo ganha um conteúdo palpável.

Mas hoje não estou conseguindo substituir o incerto pelo certo. Fico voltando ao meu mundo, a essa cama, esse quarto. É como se algo fosse acontecer.

O que, afinal, eu sei, é uma bobagem. É como quando alguém morre em um acidente de carro e um parente afirma que teve um pressentimento. Se algo acontece, então era o pressentimento. Mas na maioria das vezes não acontece nada mesmo.

Estou assim desde ontem. A psicóloga disse que pode ser pela diminuição do número de visitas. Não sei. Gosto desse tratamento atencioso, mas também não gosto do tumulto. Muito menos de me sentir tão vulnerável, feio, despenteado.

Daqui a pouco, Ana vai chegar com meu lanche de hoje. Ela sempre me surpreende com algo de que eu gosto muito. Essa é uma parte boa. Não tenho mais restrição alimentar, ninguém liga se eu engordar, já não tenho mais roupa em que caber. A parte ruim, claro, é que tudo que eu sempre gostei perdeu um pouco da graça. Aquela graça que só existe nas coisas que não podemos fazer a qualquer hora, o tempo todo.

Às vezes ela me traz flores. Acha que isso pode alegrar o meu dia. Eu não entendo muito bem esse pensamento, já que nunca gostei muito de flores. Mas não falo nada, o que até me surpreende, porque, ultimamente, tenho falado tudo que quero. Perdi aquele filtro que temos para conviver em sociedade. Acredito que seja uma obrigação do mundo ouvir o que eu quero dizer. Tem dado certo. Ninguém me repreende.

Ela está um pouco atrasada. Chega sempre às três, no máximo três e cinco. Nunca foi pontual antes, outra vantagem destes tempos. Mas constatar esse lado bom me faz sentir o incômodo da demora de hoje.

Não que eu esteja com fome. Mas isso me desconcentra, não consigo ler duas páginas sem verificar o relógio novamente. Então desisto.

Ligo a televisão. Não gosto de assistir a nada que eu não possa terminar hoje. Filmes, documentários. Séries, apenas as curtas e com todos os episódios disponíveis. Novelas nem pensar. Passo por alguns canais, nenhum me agrada. Três e vinte.

Vista pela última vez às duas e quarenta. Quarenta minutos atrás. Penso em ligar, mas não gosto de demonstrar que estou esperando. Vou aguardar mais um pouco.

A psicóloga está certa. As visitas diminuíram. Mas eu entendo. Nunca gostei de hospital e, sempre que ia a um, tinha um problema em seguida. Alergia, resfriado, até amigdalite. Entendo as pessoas, porque eu era uma delas.

E, de todo modo, elas também não sabem que são suas últimas oportunidades de me encontrar. Bem, saber até sabem, mas fingem que não. Eu também finjo.

É melhor assim. Tive duas experiências ruins com a verdade exclamada. Na primeira, reagiram com raiva, porque “eu era um desistente”. Ora, eu não desisti de nada, nem tenho do que desistir. Na segunda, minha resiliência foi tratada com tanto regozijo, que não houve um mísero olhar de compadecimento.

Não é que eu queira que tenham pena de mim. Mas também não aceito ser tratado sem o heroísmo que me é inerente ao lidar com essa situação.

Três e meia. Escuto passos no corredor, mas na verdade basta que eu preste atenção para escutá-los. As pessoas vão e vêm o tempo todo neste horário. Logo entrará alguém para medir alguma coisa que não vai fazer a menor diferença, mas que medem assim mesmo.

Vou chamar alguém para pedir uma água. Não esperava precisar pedir uma mísera água, mas as coisas são como são.

– O senhor não almoçou ainda?

Ah Ana. Eu não acredito que você ainda não está aqui e essa gororoba continua empesteando o recinto.

– Estou sem fome. Você pode me trazer uma água?

– O senhor sabe que tem que comer…

Ah, não sei. Mas não sei mesmo. Aliás, até desconfio que melhor seria não comer. Vai saber de que se alimenta essa coisa que cresce dentro de mim.

Quase quatro horas. Não aguento mais.

– Olá, querida. Estou ligando apenas para saber se você vem hoje.

Não.

– Ana, se você estiver muito ocupada, não precisa vir.

Não.

– Oi Ana, tudo bem? Cansou deste velho rabugento?

Batem na porta. Ora, essa é novidade. Ninguém tem privacidade neste lugar. Pessoas que nunca vi entram e saem, não me deixam sequer escolher o horário do banho. Outro dia, fiquei muito satisfeito com uma troca de fralda. Nunca mais vi quem realizou o belíssimo trabalho.

– Estou vestido, pode entrar!

– Olá!

– Ora, Ana. Desde quando você bate?

Ana não tem nada nas mãos.

– Não tinha certeza de que você ainda estivesse aqui.

– Onde mais estaria?

– Você ainda não soube?

– Não sei o quê, mas definitivamente não.

– Você vai para casa!

O engano é tão óbvio, que prefiro perguntar o que realmente me aflige.

– Você chegou mais tarde hoje. E não quis me trazer um agrado hein…

Sorrio para não parecer que me importo.

– Bem, não achei que seria necessário, já que você…

Interrompo, porque a ordem das coisas não está do meu agrado.

– Que horas são?

– Quatro e cinco, eles me disseram que…

– Ah sim, acho que vou descansar um pouco então, se você não se incomodar.

Quero deixar bem claro que não estou disponível a qualquer momento apenas porque estou aqui.

– Acho que você não entendeu… você vai ter alta.

Bem, provavelmente quem não está entendendo é você. Meu acordo com este lugar foi bem claro. A alta era daqui para cima. Ou para baixo, dependendo do resultado da avaliação divina.

– Você certamente está equivocada, querida.

Ênfase no querida.

Ela me olha estupefata. Eu continuo, inabalado.

– Você sabe muito bem que só sairei daqui quando for a hora de…

Percebo que não consigo achar as palavras certas.

– Quando morrer.

Também não precisava ser tão dura.

– Acontece que você não vai mais morrer por enquanto e terá que ir para casa. Sua condição é estável e não sabemos quanto tempo ficará assim. Quem sabe você não ganha uns anos!

Anos… Ela só pode estar maluca. Nunca houve “anos”. Sempre foram “semanas”, no máximo “meses”. E de todo modo, quem disse que quero essa prorrogação? Aí é que as visitas não apareceriam mais mesmo.

– Você não deve ter entendido bem…

– Está certo, vou chamar alguém para conversar com você.

Ela não me dá chance de dizer que não. Que não quero que ninguém venha me dizer que preciso voltar ao ostracismo de quem está perto do fim, mas não o suficiente para ser adulado. Que não foi para isso que me preparei.

Estou pronto para a passagem em um quarto com a música que eu escolhi, cercado de pessoas que gostam de mim – ainda deve haver algumas – e aquela aura de paz que todos dizem fazer parte desse momento. Isso é bem diferente de voltar a me preocupar com a conta de telefone ou do gás, muito menos com quem garantirá minha higiene diária.

Era só o que me faltava. Não bastasse me resignar com o meu destino, ter que pensar em como sobreviver até ele se impor.

Ana volta com um médico. Ela está feliz, eu posso sentir. Não entende a minha confusão.

– Então quer dizer que o senhor não sabia que pode ir para casa! Veja que coisa maravilhosa!

Maravilhosa para quem? é o que eu gostaria de perguntar.

– Seus exames estão controlados e não há motivo para o mantermos aqui. O ambiente hospitalar aumenta o risco de infecção e…

Não consigo continuar ouvindo. Só pode ser um pesadelo. Preciso voltar a viver? Como se nada houvesse acontecido? Depois de tudo isso? Depois de aceitar que o fim estava logo ali, preciso aceitar que talvez ele esteja um pouco mais à frente? Sinto-me desesperado. Acho que não consigo respirar. O lugar parece ter esquentado subitamente. Ana continua alegre. Não vou suportar, acho que estou prestes a desmaiar.

E desmaio. Não sei quanto tempo fico desacordado, nem o que acontece enquanto isso. Mas, ao acordar, recebo a (in)feliz notícia de que não poderei mais ir para casa.

– Até amanhã, Ana… se puder chegar às três.

Volto ao meu livro, triunfante.

 

setembro de 2019

 

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Calcinha da sorte https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/30/calcinha-da-sorte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/30/calcinha-da-sorte/#respond Sat, 30 Dec 2017 16:58:10 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1474 O escritor e filósofo italiano Umberto Eco (1932-2016) deu uma entrevista para o  “Spiegel”, em 2009, sobre a abertura de uma exposição no Louvre, com sua curadoria, seguindo o tema “listas”. Eco decide investigar a “natureza essencial das listas”, mencionando poetas que fazem listas em seus trabalhos e pintores que acumulam objetos em suas pinturas. As listas fariam parte da cultura de uma nação, da história da arte e da literatura. E seriam uma forma de tornarmos o infinito compreensível.

Eco cita uma mãe descrevendo um tigre a uma criança: “ele é grande, é um gato, amarelo, listrado e forte”, como exemplo de que definimos tudo a nossa volta a partir de uma lista de características.

O hábito de fazer listas seria fruto, segundo ele, no nosso medo da morte. “Nós temos um limite, muito desencorajador e humilhante: a morte. É por isso que gostamos das coisas que assumimos não ter limites e, assim, sem fim. É uma forma de escapar pensamentos sobre morte”.

No final de ano, pipocam listas de todos os tipos. Listas de compras, de presentes, de resoluções para 2018. Fazer academia, perder peso, ser mais tolerante, parar de fumar, não exagerar na bebida, ser mais equilibrado. Seria essa, segundo Eco, uma forma de tentarmos sobreviver ao próximo ano? De garantir que, tendo uma lista de metas a cumprir, acalmaríamos nosso medo da morte e da possibilidade (em diferentes probabilidades) de não estarmos aqui em um ano?

A teoria faz sentido. Empilhar desejos no papel é uma forma de driblar o tempo. Pensar que a vida não deve acabar sem que essa lista esteja toda ticada. Por via das dúvidas, vamos fazer uma lista bem longa para inibir a morte. Claro que não existe essa conexão na prática, mas direcionar a mente para planejar o futuro me parece sempre bom.

A tradição de usar branco no ano novo pode simbolizar o oposto disso. Se o luto é normalmente acompanhado de preto, o branco indica a nova vida que inicia. Branco por fora, protegendo uma calcinha colorida que pretende resumir um desejo. Vermelha para paixão, amarelo para dinheiro, azul para paz, dourado para proteção, ou alguma coisa parecida, e por aí vai.

É a calcinha da sorte trazendo a sensação de empoderamento. Ela vence o medo da morte, ou qualquer outro tabu. Mesmo que por apenas uma noite.

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Chilique no Museu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/11/22/chilique-no-museu/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/11/22/chilique-no-museu/#respond Wed, 22 Nov 2017 10:30:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1440 Quem deixou de dar um chilique no museu fui eu. Vejam vocês que a história se inicia comigo e minha filha de um ano meio, que é a coisa mais linda do mundo como vocês não devem ousar duvidar, no MIS, Museu da Imagem e do Som em São Paulo.

Era uma quinta-feira cedo e eu tinha meia hora para um passeio. Fiquei animada ao descobrir que a exposição de Renato Russo abriria de manhã. Fomos até lá para um momento mãe e filha, bem raro durante a semana. As exposições do MIS sempre me pareceram lúdicas e bem cenografadas. Eis que, logo na entrada da exposição, minha filha aponta para um enorme neon em vermelho no teto e diz: olha mamãe, a lua!.

Eu fiquei impressionadíssima. Primeiro, porque ela falou. A menina tem um ano e meio, vejam bem. Segundo, porque ela articulou uma frase inteira. Terceiro, pela capacidade de abstração que ela teve em ver, em um círculo vermelho com um A na frente, a lua. Ela podia ter dito: a bola ou, a luz, ou como seria de se esperar, nada. Eu poderia ter dito: mas filha, a lua não é vermelha. Só que eu sou um ser humano apaixonado pela cria e me desabei de emoção.

Felicidade interrompida. Uma mulher, já vou logo dizendo bem carrancuda e mal humorada, surge do além. A exposição tinha acabado de abrir, não havia alma viva nem morta por ali. Mas essa mulher fantasmagórica estava presente, e acompanhada. Eu não tinha reparado nela. Enfim, ela se vira e diz com um tom bem cínico: “sua filha acabou de chamar o símbolo do anarquismo de lua???”.

Eu fiquei sem reação com tal grosseira. Não necessariamente pelas palavras, mas pela entonação. E continuou: “já que trouxe a menina aqui, vai ensinando ela vai, ensina a ela o que é bom”.

Fiquei muda.

E segui meu caminho com timidez. Fiquei amparando a menina, que corria por todos os cantos, especialmente animada com uma área maravilhosa de projeção de shows e panos esvoaçantes. Eu digo amparando porque, nessa idade, você fica com os braços estendidos em volta do neném, amparando seu desequilíbrio.

Meu olhar era o de constrangimento. Senti que eu não deveria estar ali, ou que ela não deveria estar ali. As pessoas me olhavam e eu achava que elas estavam me reprimindo, cochichando: o que essa mulher faz com uma criança aqui? Pisei em ovos. E na verdade, eu me sinto assim há muito tempo: pisando em ovos.

Ontem, uma amiga comentou sobre aquela polêmica do MAM, dizendo que não concordava com nus em exposições para crianças porque ao verem o nu com tanta naturalidade, teriam dificuldade de distinguir um assédio. Outra me contou que está ensaiando a filha de 3 anos a falar “vagina”, para gritar a palavra caso um estranho se encaminhar por ali. “É minha vagina, vagina!”.

Uma prefere esconder, a outra, escancarar. No fundo, as duas se sentem perdidas diante uma triste realidade.

Eu sou a favor do escancarar. Vejo a arte como um espelho importante da realidade e uma ferramenta necessária de provocação. Sei que é uma posição polêmica, mas não deixo de escutar opiniões contrárias e não saio por aí dando lições de moral. Me considero uma pessoa equilibrada que prefere pensar, primeiro, que o outro pode sim ter razão, ao invés de partir do pressuposto de que todo mundo está errado.

Sim, precisamos de maior compreensão. De escutar, de debater e contra-argumentar.

Mas também é necessário ser firme, não se deixar ser coagido. Se não, ficaremos sempre sonhando com o que deixamos de fazer, com o que deixamos de falar. Como eu, nessa noite mesmo, mergulhada nas imagens oníricas da válvula de escape, me vi plantada naquele cenário, dando um verdadeiro chilique no museu. E acordei feliz.

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Você é normal? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/03/22/voce-e-normal/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/03/22/voce-e-normal/#respond Wed, 22 Mar 2017 16:28:05 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/03/foto-180x96.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1279 E aí, você é uma pessoa… normal? Você se considera típico, mediano, adequado? Você estaria na média de uma curva estatística? O que é uma pessoa normal, afinal de contas?

Às vezes me questionam se eu sou uma pessoa normal, por ter um blog que fala sobre morte. Não tenho dúvidas de que o conceito de normalidade é uma construção histórica e social. O normal muda conforme a cultura e o tempo em que estamos inseridos. Mas, no fundo, é na minha opinião, uma definição que deveria ser abolida.

Poucas pessoas responderiam que são normais. Mas se invertermos a pergunta para “de zero a dez o quão esquisito você é?” a maioria chutaria um número. Nos sentimos estranhos, quase sempre. Somos um pouquinho bizarros, temos manias um tantinho bizarras, e às vezes brota um sentimento que não seria muito bem aceito se compartilhado e quase sempre vem à cabeça um pensamento “fora da caixinha”.

Na medicina, o conceito de normalidade é tido como necessário. Um exame de sangue diz se a contagem das coisas todas que ali existem estão dentro da faixa esperada para um indivíduo de determinado sexo e idade. Se estão fora da faixa normal, os médicos investigarão a causa disso e chegarão a um diagnóstico. O corpo que foge dessa faixa de normalidade é considerado doente.

Esse conceito pode ter derrapado para áreas que não o pertencem e daí passamos a considerar doentes aqueles que não se encaixam na faixa do que é socialmente aceito. Até a homossexualidade já foi considerada doença pelo próprio Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM. Até 1973, estava no grupo da pedofilia, necrofilia e zoofilia. Os gays não eram só socialmente anormais, eles eram também vistos como doentes.

Nesse sentido, podemos acabar transformando em patológico o que não deveria. A pedofilia e o assédio não podem ser considerados anormais.  O portador de um distúrbio mental não é anormal, ele é doente. Uma pessoa com depressão crônica não está anormal. Ela está doente.

E o que passa pela nossa cabeça para categorizarmos algo como normal ou não? Artigo recente publicado no “Journal of Cognition” argumenta que as pessoas combinam um senso do que é típico com o que é ideal na hora de definir a normalidade. Seria uma mistura de noções estatísticas com conceitos morais.

Em reportagem do “New York Times”, os pesquisadores comentam:

“Nosso achado principal pode ser ilustrado com um simples exemplo. Se pergunte: qual é a média de horas que uma pessoa vê TV em um dia? E depois se faça uma pergunta que pode parecer muito similar: qual é a quantidade normal de horas de TV que uma pessoa vê por dia? Se você for como a maioria dos participantes da nossa pesquisa, não dará a mesma resposta para as duas perguntas. Nossos participantes falaram que o número médio era de quatro horas, enquanto que o normal era de três horas. Adicionalmente, eles falaram que o número ideal seria de 2,5 horas. Isso tem uma implicação muito interessante. Sugere que a concepção de normalidade deriva do normal para o que eles acham que deveria ser”.

A pesquisa indica que o ser humano tem duas formas de pensar. De um lado, consideramos como as coisas tipicamente são. Do outro, como elas deveriam ser. E o conceito de normalidade seria uma mistura desses dois, em um julgamento aparentemente instintivo.

Uma consequência importante é que começamos a considerar mais normal aquilo que está cada vez mais frequente. É a tal da normalização. Ela tem um lado bom, como ser cada vez mais aceito o casamento gay conforme aumenta em frequência, e um lado ruim, como as ações racistas de Trump passarem a ser consideradas normais, conforme aumentarem em frequência.

A famosa expressão, já atribuída a tanta gente, “de perto ninguém é normal” indica que de longe parecemos ser todos mais ou menos iguais e, de perto, mostramos nossas peculiaridades. Mas nem de longe somos normais. Ninguém é normal sob nenhuma possível perspectiva. Porque o ser normal não existe.

 

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Como se aproveitar do Dia Internacional da Mulher https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/03/08/como-se-aproveitar-do-dia-internacional-da-mulher/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/03/08/como-se-aproveitar-do-dia-internacional-da-mulher/#respond Wed, 08 Mar 2017 15:11:01 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1274 A receita é simples: use sua criatividade para se aproveitar de um dia único. As oportunidades não aparecem a toda hora. O momento de viralizar é agora.

Faça uma propaganda super animada com mulheres cantando sobre a importância que elas têm na sociedade. Você pode não concordar com o que elas falam lá, mas não importa. Não esqueça de comentar sobre violência sexual, esse assunto é quente. Na hora de escolher atrizes e figurino, opte por mulheres bonitas e com uns decotinhos. Afinal, ninguém gosta de ver mulher feia. Não sou eu quem fala essa pérola, é Vinicius, o rei.

Outra ideia boa: faça uma promoção relâmpago maravilhosa para as mulheres que se sentem maravilhosas. Imprima uns flyers rosas e distribua na Avenida Paulista durante a manifestação. Se você tem um bar, escreva lá: mulher aqui bebe 3 e paga 2. Não importa se você acha que mulher bêbada é vulgar.

Se você tem um salão de cabelereiro, também não pode ficar para trás. O anúncio é: como ser uma mulher inteligente e ainda manter a beleza? Afinal, não é fácil ser mãe, filha, irmã, funcionária, amiga, dona de casa, esposa e ainda ter as unhas feitas. Aproveita que muita mulher não vai trabalhar, nem na empresa nem em casa, e leva ela para o cabelereiro.

Se você está desempregado, aproveite em dobro esse momento. Manda mensagem para aquela presidente de qualquer coisa, que tem uns contatos ótimos. Deseje um feliz dia da mulher, muito sensato, como quem não quer nada. É um bom momento para ela lembrar de você.

Compartilhe uns textos poderosos no Facebook, para verem como você é a favor de maior igualdade entre homens e mulheres, só para depois não virem te chamar de machista.

Se você trabalha com cartão de crédito, dê umas milhas extras para cada centavo que a mulher gastar hoje. Afinal, mulher já gasta muito e hoje o dia é dela.

Em uma livraria, dê descontos em livros que sejam de maior interesse, como culinária, decoração, jardinagem, parapsiquismo, sei lá. Esses temas que as mulheres gostam. Não adianta dar descontos em livros de matemática, tem que focar no nicho.

Agora, deixando a ironia de lado, se for para se aproveitar mesmo do Dia Internacional da Mulher, vá se encontrar com sua mãe, sua esposa, sua filha, sua amiga. Converse com ela sobre como ela se sente, pergunte o que ela pensa sobre a existência desse dia, que propósitos ele pode ter.

Se abra para ouvir sobre alguma violência que ela possa ter sofrido, quem sabe ela te conta de uma cena de preconceito que ela viveu ontem, uma virada de olho ou repressão. Afinal, não precisa haver agressão física para uma atitude ser inaceitável.

Ela pode desabafar, falar sobre as dificuldades em ser tudo isso que ela é, ou sobre a pressão no dever ser. Ela pode, quem sabe, falar sobre ter começado a ter umas crises de pânico, porque acha que não está dando conta do mundo.

E você pode se identificar com ela. Com o não ser ouvido, não ter voz, com o ser encaixado em um tal estereótipo. E com a raiva de testemunhar uma injustiça e não saber como reagir, como mudar as coisas.

Toda transformação cultural começa com a escuta. Talvez essa seja a melhor forma de se aproveitar do Dia Internacional da Mulher.

As dez condições incuráveis com tratamentos promissores

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]]> 0 A morte e o sexo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/02/15/a-morte-e-o-sexo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/02/15/a-morte-e-o-sexo/#respond Wed, 15 Feb 2017 19:26:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1253 “La petite mort”, dizem os franceses quando se referem ao orgasmo. Nele há o escape de uma vida e o instinto de criação de outra. Os amantes esvaziam-se. Exaustos (nas nossa melhor imaginação),  contemplam a finitude e podem sentir a melancolia de um fim.

Se o orgasmo é uma pequena morte, sexo é morrer junto. Há muita intimidade envolvida no ato sexual e mais ainda no ato do morrer. Presenciar a morte de alguém é, sem dúvida, um momento de conexão.

E arrisco dizer: um momento pouco explorado nos dias atuais. As pessoas morrem inconscientes e sozinhas. É triste? Claro que é. A cena do filme bonito que concorre a prêmios não mostra isso. Nele, há uma família em volta do doente, que se despede de cada um e aproveita a vida até o último segundo.

O esvaziar dessa alma, ou dessa consciência como eu prefiro dizer, normalmente não é testemunhado. Ao contrário do sexo, morre-se sozinho, sem trocas. Há uma filosofia médica que se propõe a agir contra essa vertente, chamada filosofia hospice, que é uma unidade completa de cuidados paliativos. (Leia mais aqui)

Um de seus pontos chaves é enxergar a morte como um momento de apoio psicológico e espiritual, e não apenas físico. Apesar de se preocupar, em primeiro lugar, com o fim da dor do corpo. Até acho que os médicos paliativistas não se incomodariam com essa minha analogia.

A relação entre morte e sexo começa com a quebra de um tabu. A morte ocupa, hoje, um lugar que já pertenceu ao do sexo. Não se falava sobre masturbação em público, muito menos na mídia. Isso ficou para trás, com o orgasmo feminino sendo debatido em rede nacional.

A morte e o sexo também têm o medo em comum. Transar é a perda do controle, é libertar-se, é dissolver a consciência. A morte parece ser isso também. Há uma chance de que as pessoas que têm medo do sexo também tenham medo da morte.

Outra característica em comum é o pisar em ovos para falar a respeito. Usamos eufemismos. Sexo é fazer amor, orgasmo é atingir o ápice. Morrer é falecer, ir para o céu, bater as botas. Outro tabu, o envelhecimento, também ganha versões bonitinhas. Ser velho é estar na terceira idade, na melhor idade.

A primeira analogia a ser feita entre sexo e morte é representada em Eros e Tânatos. O que a psicanálise chama de pulsão de vida (Eros) e pulsão de morte (Tânatos), ou instinto de vida e de morte. Freud diz em seu livro “Além dos Princípios do Prazer” (1920), que “o objetivo da vida é a morte”. Levaríamos a vida oscilando entre instintos de vida, de sexo, de sobrevivência e o de morte, de fim, de transformação e de autodestruição.

Eros é o deus do amor na mitologia grega (e o cupido na romana), enquanto que Tânatos é o da morte. Um faz deuses e humanos se apaixonarem e o outro, morrerem ou caminharem para a destruição. Nos mitos gregos mais antigos, Eros não tinha só um lado romântico, mas também desdobramentos negativos, como a luxúria e o ciúme (simbolizado pelas ações de Hera), e a vaidade (com a criação de Medusa por Atena).

Platão dizia que Eros simbolizava o amor físico, mas também o amor interno que supera a atração sexual, afirmando que o amor poderia existir sem sua concretização física. Daí surge a expressão “amor platônico”.

Essa versão de Eros e Tânatos tendo características um do outro em si mesmos faz mais sentido nos tempos atuais do que o dualismo oferecido pelo Cristianismo. Seguimos como as duas pulsões existentes nas teorias de Freud, elas coexistem no mesmo indivíduo.

Vivemos entre os sentimentos de criação e o de destruição, sexo e morte. Já falamos mais abertamente sobre um, agora nos falta começarmos a falar sobre o outro.

É preciso imaginar Sísifo feliz

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Por que o tempo passa mais rápido conforme envelhecemos? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/27/porque-o-tempo-passa-mais-rapido-conforme-envelhecemos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/27/porque-o-tempo-passa-mais-rapido-conforme-envelhecemos/#respond Fri, 27 Jan 2017 11:29:24 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/01/The_Persistence_of_Memory-180x133.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1242 Não sei muito bem quando foi que começou. A segunda-feira de repente apareceu colada na sexta. Passei a me guiar por esses dois dias. Ou eu estou numa segunda, ou na sexta. Os outros são rabiscos no calendário, uma lista de coisas a fazer que eu vou cumprindo como se estivesse dormindo. Não pela leviandade de sonhos, mas pelo fator onírico e subjetivo deles.

Aí eu lembro como, pouco tempo atrás, a semana era uma extensão longa de horas e de dias. Cabia de tudo ali. Só que minha vida não está mais atarefada do que era antes. Não lembro de uma época em que eu achava que sobrava tempo. O que mudou, eu me pergunto. Será que meu cérebro passou a digerir o tempo de forma diferente?

Há algumas teorias e experimentos nesse sentido. Todos se baseiam na ideia de que, realmente, temos a percepção de que o tempo passa mais rápido conforme envelhecemos.

Em 1877, surgiu uma teoria chamada “a teoria da proporcionalidade”, baseada na ideia de que comparamos intervalos de acordo com a quantidade de tempo que já vivemos. Conforme envelhecemos, nosso sentido do presente começa a parecer curto comparado ao total do tempo que já passou nas nossas vidas. Dessa forma, uma criança vê um ano como uma eternidade, porque comparado à quantidade de anos que ela já viveu, é muito. Se você tem 90 anos, 1 ano significa pouco perto de todos os vividos. É nesse sentido que surge a proporcionalidade do tempo e a sensação de que ele vai passando cada vez mais rápido.

Outro ponto importante seria termos menos novidades na vida conforme envelhecemos. O psicólogo Wiliam James descreveu em um artigo de 1890, “Princípios da Psicologia”, essa teoria baseada no fato de que a falta de novidades da fase adulta interfere na sensação da passagem do tempo. As experiências parecem se repetir e a sensação de familiaridade com o mundo e com os acontecimentos aumenta.

Você ir a um lugar pela primeira vez é inusitado, é novo, é uma aventura. Vamos prestar mais atenção em tudo e nos adaptar a um novo contexto. A experiência parecerá mais vívida. Se já é a centésima vez que você vai a esse lugar, o tempo passará mais rápido. Como há menos informações a serem processadas, nosso cérebro cria atalhos. Por exemplo, quando somos crianças, ir à praia pela primeira vez é inesquecível, ou visitar um país novo, ver a neve… Na fase adulta a chance de já termos cumprido toda a lista das “primeiras vezes” é maior.

Um estudo no início dos anos 60, dividiu a percepção do tempo entre dois grupos: jovens de 18 a 20 anos e adultos de 70 anos, com o uso de metáforas. Os jovens descreviam o tempo como algo mais estático (tempo é um oceano parado) enquanto os adultos o associavam a algo acelerado (tempo é um trem que anda muito rápido).

Há outros efeitos interessantes sobre a sensação do tempo passar mais rápido ou devagar. Essa percepção varia conforme nosso nível de foco, estado físico e humor. Quando estamos em uma situação ameaçadora, o tempo passa mais devagar, porque nosso cérebro irá se concentrar em garantir nossa sobrevivência. Quando estamos entediados, o tempo também passa mais devagar, porque o cérebro não tem muito com o que se ocupar e vai prestar atenção na própria passagem do tempo. Quando desempenhamos diversas tarefas ao mesmo tempo, prestamos menos atenção na passagem do tempo e temos a percepção de que ele passa mais rápido. O envelhecimento interfere na nossa capacidade em desempenhar diversas funções ao mesmo tempo o que também pode interferir nessa sensação.

Tanto nosso metabolismo quanto nosso nível de dopamina (o neurotransmissor que nos dá sensação de bem-estar e recompensa) caem conforme envelhecemos, o que também pode influenciar nossa percepção. Nessa linha, podemos afirmar que nosso relógio interno desacelera conforme envelhecemos. Em comparação, o relógio externo (a contagem de horas e de dias) vai parecer mais acelerado do que antes.

Também há teorias sobre o tempo passar mais rápido quando estamos nos divertindo. Então, em uma versão mais otimista da vida, conforme envelhecemos vamos gostando mais de viver, mesmo sem as surpresas da infância, mas com a sabedoria da história.

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A esperança e a amargura https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/12/08/a-esperanca-e-a-amargura/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/12/08/a-esperanca-e-a-amargura/#respond Thu, 08 Dec 2016 12:52:26 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/12/O-Grito-Edvard-Munch-Foto01-134x180.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1214 “A esperança e a amargura… são parecidas”, escreve Milton Hatoum em “Dois Irmãos” – livro que estreará em formato de minissérie na TV Globo, em janeiro.

Passei alguns dias tentando “não sentir” o mundo. Meu objetivo era tentar não alimentar esperanças, nem amarguras. Estou acostumada a ler jornal com um lenço na mão de tanta empatia que me solta pelos poros, mas dei um basta nisso aí e resolvi me anestesiar um pouco. Acho que foi ressaca da foto da menina morta na capa da Folha (inciativa que apoiei, inclusive).

Lá se foram os sentimentos e fiquei no limbo. Uma leitura aqui, outra ali, repetindo frases como: ha, a história mais uma vez se repete, ou, é só mais do mesmo, o mundo não será melhor amanhã, nem pior, e tanto faz, porque eu tô aqui, sem esperanças, sem amarguras, me deixem em paz com meu coração congelado.

Achei que esse exercício poderia me trazer um pouco de sossego. Não esperar nada de ninguém, de situação nenhuma, não torcer e não me decepcionar.

A tarefa não seria nada fácil, dei o azar de me colocar nessa missão justo na semana em que o avião dos Chapecoenses caiu, o helicóptero com a noiva se despedaçou perto do altar, um incêndio matou 40 nos Estados Unidos e por aí vai. Bom, tragédias e assassinatos pipocam toda semana, pensei eu, se eu esperar uma semana mais amena para tentar a neutralidade, tô ferrada. Ainda mais em final de ano.

Então segui. Claro que não deu muito certo, mas fiquei impressionada com a falta de espaço para os que desejam viver assim, em uma anestesia psicológica. A comunidade virtual não perdoa quem não se compromete. Não há tolerância com quem opta por um olhar mais frio, para os que não se engajam em um luto coletivo, não aproveitam a oportunidade para agradecer por estarem vivos e edificar a vida em conjunto.

Vi um humorista ser massacrado por fazer piada com a situação. Para alguém fazer piada com tragédia precisa, no mínimo, se distanciar emocionalmente do ocorrido – atitude necessária em um humorista. Uma empresa foi criticada por ter aumentado o preço da camiseta do time e uma página do Facebook foi dizimada por ter aproveitado uma oportunidade para navegar na onda da vez e trazer informações consideradas relevantes por sua equipe editorial. Relevante nesse contexto quer dizer: criar manchetes se aproveitando de um tema que está “quente”, está na boca do povo, para aumentar a leitura, aumentar os cliques. Não estou aqui julgando. Só comento que me parecem iniciativas insensíveis, distanciadas.

O problema de não se sensibilizar diante de uma catástrofe é deixar o outro perceber essa anestesia, esse distanciamento. Porque não será perdoado. Alguns típicos acontecimentos (me veio à mente os assassinatos do Charlie Hebdo e do Bataclan) não permitem isso.

Não dá para obrigar alguém a sentir as coisas à sua volta, mas dá para orientar as pessoas a usarem alguma percepção do entorno para entender que talvez o lugar da anestesia é o mais reservado possível. Nesse âmbito privado ela pode, inclusive, florescer.

Me dá uma certa vontade de defender os que se colocam numa situação de tamanho distanciamento, mas quando percebo que a maioria assim o faz em benefício próprio, para lucrar com a situação, desisto da intenção. Retorno de onde nunca saí. Continuo aqui cheia de esperanças, e toda cheia de amarguras, escrevendo sobre uns assuntos esquisitos para tocar o insensível que acaba escolhendo esse caminho por outro motivo: por não aguentar mais ser machucado o tempo todo. Ele cansou de andar por aí em carne viva e se fez uma casquinha. Esse, no fundo, é o mais sensível de todos e só está tentando sobreviver.

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Raiva e luto na direita americana https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/16/raiva-e-luto-na-direita-americana/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/16/raiva-e-luto-na-direita-americana/#respond Wed, 16 Nov 2016 11:44:58 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1191 A socióloga americana Arlie Russel Hochschild passou os últimos cinco anos entrevistando grandes apoiadores de Trump em uma região ultra conservadora dos Estados Unidos, a Luisiana, para tentar entender suas posições.

O livro “Strangers in Their Own Land” (estranhos em seu próprio país, em tradução livre) é o resultado desse estudo e foi considerado pelo “New York Times”, um dia após as eleições, um dos seis livros necessários para se compreender a vitória de Trump.

Ele chama atenção pelo subtítulo: “Anger and Mourning in The American Right” (raiva e luto na direita americana, em tradução livre). É comum vermos notícias sobre a raiva dos grupos de direita que crescem no mundo. Nos apressamos em tachá-los da mesma forma que não aceitamos sermos tachados. De uma forma generalista, eles são conservadores, racistas, misóginos, ufanistas e retrógrados. Não é de se admirar que tenham tanto recalque em assumir suas posições em público e nas pesquisas eleitorais.

O que Arlie notou em sua pesquisa foi um pouco diferente disso. Foram pessoas com raiva sim, mas também em processo de luto profundo. Elas perderam qualidade de vida, estilo de vida, acham que seus filhos terão uma vida pior do que a deles e perderam sua identidade como grupo.

Finalista do “2016 National Book Award”, o livro traz entrevistas com 60 “personagens”, suas histórias, desejos e receios. A maioria não se vê como racista e teme ser considerada assim. Há uma preocupação em serem apontados como retrógados porque são de direita. Trump não é venerado por esse grupo, mas é uma opção dentro de um contexto. E que contexto é esse?

Arlie disse ter visto um grupo de pessoas que se sente marginalizado pelo governo atual. Esse grupo não vê sua vida melhorar economicamente e observa “outsiders” furando fila na linha da prosperidade com a aprovação de Obama. Os outsiders seriam negros, imigrantes e mulheres. A questão levantada não é o fato dos (assim vistos) “outsiders” terem acesso a diretos e oportunidades, mas sim conquistá-los enquanto esse grupo se vê estagnado. “Furando a fila” é uma expressão que Arlie usa bastante.

Ela defende que esses eleitores acabam escolhendo líderes que não beneficiam seu grupo social. São prejudicados, por exemplo, por desastres naturais causados pela falta de regulamentação de empresas de petróleo – situação que ocorre com a conivência de políticos republicanos e acabam votando neles mesmo assim.

Para a autora, há lugares comuns entre a esquerda e a direita que deveriam ser trazidos à tona e usados como o início de uma conversa. Ela identificou questões semelhantes e necessárias para fazermos uma “ponte” entre esses dois pensamentos.

A empatia é fundamental. E certa autocrítica em analisarmos o discurso liberal de 2016 sem que ele seja a única forma possível de pensar. As eleições americanas mostraram que a arrogância da mídia em não dar voz aos descontentes, aos que discordam desse discurso e da globalização, por sentirem-se marginalizados a ela e aos princípios liberais, pode ser um tiro no pé.

É importante buscar compreender o que está por trás do pensamento daqueles que parecem votar sem ponderar o que seria melhor para si e para os outros, os que votam no impulso, motivados pela raiva e pelo luto. A raiva, inclusive, é tida como um dos estágios do luto.

Temos que ter cuidado para não cairmos nessa mesma onda e acabarmos empoderando líderes que não desejam o bem comum, que chegaram lá porque foram eleitos por um grupo que queria, antes de mais nada, se fazer presente. E vê no voto uma espécie de “declaração”, de negação a tudo ao invés de uma afirmação de desejo. Infelizmente, já estamos nesse caminho, mas ainda dá tempo de ouvir.

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Os seios de Maria Alice https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/03/os-seios-de-maria-alice/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/03/os-seios-de-maria-alice/#respond Thu, 03 Nov 2016 20:34:04 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/11/16307110-180x115.png http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1185 Pela primeira vez, o Instagram censurou uma foto publicada pela Folha. A foto também foi retirada da página do Facebook do jornal.

O Instagram indicou que a imagem não levaria o público a uma “experiência confortável”. A grande maioria dos internautas que comentaram a notícia apoiaram a decisão da censura, alegando ser uma imagem de “mau gosto”, “humilhante”, um “nojo”, e que o idoso deveria ter “noção de dignidade”, ser “discreto”. Alegaram que a retratada, Maria Alice Vergueiro, não deveria se expor dessa maneira.

Capa da última revista “Serafina” (da Folha), essa foto faz parte de um ensaio com a atriz de 82 anos, muito popularizada no vídeo “Tapa na Pantera” viralizado no YouTube. Ela sofre de mal de Parkinson e está em turnê com a peça “Why The Hourse”, na qual encena o próprio enterro, trata de temas como a velhice, a morte e a fragilidade humana, com cenas oníricas e metafóricas. Um espetáculo muito bonito, que dribla a razão e incita emoções inesperadas. Saí dele procurando não entender uma peça, mas sim senti-la. O que é um desafio para mim e talvez para grande parte da minha geração, que tende a racionalizar o mundo e não vê espaço na sociedade se não for através do uso incansável da razão.

Eis que essa foto traz à tona um pouco dessa reação. Ela fala diretamente com uma emoção, com o medo, com a surpresa diante do inesperado. Ela nos tira de uma zona de conforto, causa um aplauso enérgico ou uma torcida de nariz – de “nojo” de uma imagem que chegou a ser comparada a uma “intimidade de banheiro” por certa internauta, como se fosse escatológica.

No meu caso, trouxe um espanto positivo. Aplaudi, venerei. Maria Alice, sempre corajosa na sua maneira de se expressar, resolveu quebrar mais um tabu. O que ela mostra à câmera é algo absolutamente normal. São seios naturais, que sofreram o impacto da gravidade como todos os seios do universo. Salvo aqueles que se mantêm erguidos pelo bisturi. São bem-vindos esses também.

Os que repulsaram os seios de Maria Alice podem se lembrar de que o impulso para achar algo feio ou bonito é uma construção cultural. Nossa percepção estética é manipulada. No Renascimento, as mulheres mais gordinhas, com formas voluptuosas, eram consideradas bonitas, porque a gordura significava dinheiro extra para comer extra. Hoje, as magras são aceitas e as gordinhas são deslocadas.

Por isso, achar uma coisa bonita ou feia não depende totalmente de você. O gosto é fruto da interação social, dos dogmas do momento. Temos menos liberdade do que imaginamos na hora de um julgamento. Dois homens se beijando era considerado feio e nojento. O Instagram e Facebook (que controla o Instagram) deve ter censurado um monte de fotos dessas, mas duvido que continue fazendo atualmente. O beijo gay já é transmitido em rede nacional nas novelas. Digo o mesmo dessa foto. Quanto mais fotos expuserem a naturalidade do corpo, da velhice, menos reações horrorizadas teremos e menos censura.

Maria Alice não é uma minoria. O IBGE calcula que em 2030 já seremos um país de velhos. Em 2050, a população de velhos ultrapassará a de crianças e jovens de até 29 anos. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), nossa população acima dos 60 anos cresce acima da média mundial. Eu até acho que, quando chegarmos lá, a faixa para alguém ser considerado velho já terá subido consideravelmente.

Esses velhos, nós, devemos ter a liberdade para tirar a camiseta na frente do espelho sem nos sentirmos fracassados e nojentos. Envelhecer é um ato de coragem, de sabedoria. E cada ruga, cada marca ou cicatriz está aí para ser venerada, exposta com orgulho. O que não pode ser feito é o retrocesso: aceitar essa censura como legítima e inibir futuros ensaios como esse. Ao contrário, Maria Alice abre portas para uma nova liberdade. A liberdade para envelhecer, para se reinventar na velhice. Que seja considerado feio por um tempo, até a relatividade de nosso olhar dar as graças, derrubar esse tabu de vez, e finalmente passar a ser aceito. Como tudo na vida.

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