Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Quem morre são os outros https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/05/23/quem-morre-sao-os-outros/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/05/23/quem-morre-sao-os-outros/#respond Fri, 24 May 2019 01:10:25 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/Imagem_Principal_REPRODUÇÃO.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1711 E a escrita?,
se pergunta o mesmo Karl Ove em outro momento.
O que é a escrita senão a morte? Letras?
O que são as letras senão ossos num cemitério?

O escritor Rômulo Zanotto fez uma longa pesquisa sobre como a morte foi abordada na literatura e me deu a honra de publicá-la. Ele começa com Fernando Pessoa, que nos oferece a melhor definição de morte que eu já vi. “A morte é a curva na estrada”. “Morrer é só não ser visto”. É isso. Morrer é simplesmente não ser mais visto. Guimarães Rosa não fica para trás: “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. 

Rômulo tem uma inspiração forte para escrever sobre a morte. Ele é marcado pela morte prematura do pai, em decorrência de uma cirrose hepática causada por alcoolismo. Rômulo tinha 12 anos. Ele exumou os ossos do pai e se deparou com uma caveira familiar. T aí a última fala de Hamlet:  O resto é silêncio.

Boa leitura. Eu adorei.

Quem morre são os outros

Por Rômulo Zanotto

 Um ensaio sobre a vida, a morte e a literatura.

Quem sabe o que o amanhã nos trará? foi o último verso escrito por Fernando Pessoa, o poeta que escreveu também que a morte é a curva na estrada e que morrer é só não ser visto, antes de fazer a curva e ficar invisível.

A gente morre é pra provar que viveu, disse Guimarães Rosa, o homem que escreveu que as pessoas não morrem, ficam encantadas, no discurso que o tornou imortal na Academia Brasileira de Letras. Ficou encantado três dias depois.

Quando despertarmos de entre os mortos, perceberemos que nunca vivemos, escreveu o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, no último ato de sua última peça, Quando despertarmos de entre os mortos.

Morre-se sem saber pra onde, escreveu Clarice Lispector, a mulher que na certa morreria um dia. E seria como se já soubesse morrer porque antes tivesse estudado de cor a representação da morte: morrer é um instante, logo passa, eu sei porque acabo de morrer com a moça. A moça era Macabéa, personagem de “A Hora da Estrela”.

A vida é só o tempo de se contar um, calculou Shakespeare, e o resto é silêncio.

Dos parágrafos acima, os autores estão todos mortos, destroços de ossos. Nós que aqui estamos, por vós esperamos, lê-se no cemitério em Paraibuna, São Paulo. A frase virou nome do consagrado documentário de Marcelo Masagão sobre a história do século XX.

Nós, os ossos, esperamos pelos vossos, diz outra variação sobre o mesmo tema: uma inscrição no cemitério de Évora, em Portugal, apropriada como verso por Caetano e Jorge Mautner na mesma música em que eles cantam que no cemitério, pra se viver, é preciso primeiro falecer. E que morre-se assim. E de supetão.

Isso vindo de Caetano, que desde os anos 60 sabe que adiante, um dia, vai morrer; de susto, bala ou vício, e que é amigo de Gilberto Gil, aquele preto que Caetano gosta e que não tem medo da morte, mas medo de morrer sim.

A morte é tão banal, escreveu Paul Auster. E no entanto, quando ela acontece com a gente, como ela é cruel.

O homem diante da morte

Poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos, escreve Karl Ove Knausgard, escritor norueguês, em  “A Morte do Pai”. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em ambientes isolados: os corredores que levam até eles são ermos, com elevadores e acessos privativos, e, mesmo que acidentalmente topemos com eles, serão apenas corpos empurrados sobre macas, sempre cobertos por lençóis. Quando deixam o hospital, fazem-no por uma saída própria e são transportados em carros com vidros escurecidos, nas igrejas são velados em salões sem janelas, durante o funeral estão em caixões lacrados, até afundarem numa cova ou serem consumidos no calor de um forno.

E vai além: Os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em carros comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença faz? Porventura o destino que o aguarda na cova vai ser melhor só porque não o presenciamos? Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa. Ele não vai morrer outra vez.

Quando os heróis morrem

E Karl Ove não para: Mendigos que morrem congelados em bancos de praça ou debaixo de marquises, suicidas que saltam de prédios altos ou pontes, senhoras idosas que despencam de escadarias, vítimas presas nas ferragens de veículos, o garoto embriagado que cai na água depois de uma noitada na cidade, a garotinha que vai parar debaixo do pneu de um ônibus, por que a pressa em ocultá-los? Decoro?, pergunta-se.

E responde com outra pergunta:O que seria mais decoroso que permitir ao pai e à mãe daquela garota encontrá-la uma ou duas horas mais tarde, deitada na neve ao lado do local do acidente, a cabeça esmagada tão visível quanto o restante do corpo, o cabelo empapado de sangue e o casaco imaculado? A céu aberto, sem segredos, do jeito que estava. Mas mesmo uma hora na neve é impensável. Uma cidade que não mantenha seus mortos longe dos olhos, que os deixe jazer nas ruas e calçadas, parques e estacionamentos, não é uma cidade, e sim um inferno. Não importa que esse inferno reflita de modo mais realista e profundo nossa conduta. Sabemos que ela é assim, mas nos recusamos a encará-la. Eis o ato coletivo de repressão simbolizado no ocultamento de nossos cadáveres”, finaliza ele, num raciocínio tão eloquente quanto literário.

De forma menos artística e mais tecnicista, o historiador francês Philippe Ariès também escreveu sobre o tema. No livro “O Homem Diante da Morte”, perpassa os últimos mil anos da história ocidental para contar como a morte passou a este cenário esterilizado dos hospitais que conhecemos hoje, escondida e calada. A partir do Século XVIII, com a noção fortificada de individualidade em detrimento à comunidade, a morte passa a adquirir um sentido dramático e ser encarada como transgressora: considera-se que a morte “rouba” a pessoa de seu cotidiano, de sua vida, de sua família.

Depois, advinda a modernização da medicina e as mudanças dos hábitos sociais, a partir dos anos 1930, a morte “some” definitivamente. Passa a ser socialmente necessário que ela seja ocultada entre as paredes de um hospital, asséptica e imediatamente esquecida. Lava-te do rosto o assassinato, meu príncipe, e lança um lânguido olhar à nova Dinamarca, nos parece dizer a sociedade sobre a morte e sobre o luto, com a mesma pressa de Gertrudes a Hamlet: antes que se gastem os sapatos com que seguiu o enterro de seu pai. Como se o que os olhos não vissem, o coração não sentisse.

E foi assim que, se, um dia, em algumas culturas – como na antiga província de Santa Cruz, a que hoje “vulgarmente” chamamos Brasil – pai, mãe e irmãos não só matavam com as próprias mãos o parente moribundo para aliviar-lhe o sofrimento como também lhe comiam a carne a fim de que uma coisa tão baixa e vil como a terra não lhes consumisse o corpo de quem tanto amavam (que sepultura mais honrada lhe poderiam dar que metê-lo dentro de si e agasalhá-lo para sempre em suas entranhas?), hoje a sociedade isola os velhos e os moribundos naquilo que Norbert Elias chamou de “bastidores da sociedade”.

A Arte de Morrer

Até morrer, vivemos como se fossemos viver para sempre. Só nos lembramos da morte na sua presença iminente: um diagnóstico incurável, o testemunho de um acidente, uma morte na família. Antes disso, quem morre são os outros.

Não a todos, talvez, assim aconteça, diz Guimarães Rosa. Ou, quem sabe, só tenham noção disso os já mais velhos, os mais acordados, complementa. Na obra de Tolstói, Ivan Ilitch descreve de forma eloquente este salto da morte, do abstrato para o particular; do sabê-la intelectualmente para o senti-la na pele; da verdade vaga e genérica da morte para sua verdade pessoal e intransferível; da realidade em terceira pessoa para a realidade na primeira.

O silogismo, escreve Tolstói, Ilitch aprendera na lógica de Kiesewetter. “Caio é um homem, os homens são mortais, portanto Caio é mortal”, a vida toda lhe pareceu correto quando aplicada a Caio, mas nunca aplicado a ele. Que Caio, um homem qualquer, fosse mortal, era perfeitamente justo. Mas ele não era Caio, não era um homem genérico e sim uma criatura distinta de todas as outras. Ele, Ivan Ilitch, era Vânia, com mamãe, com papai, com seu irmão, com os brinquedos, o cocheiro, a babá, depois com a irmã, com todas as alegrias, tristezas e entusiasmos da infância, da juventude, da mocidade. Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listada, de que Vânia gostara tanto!? Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele, daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? Fizera um dia tanto estardalhaço na Faculdade de Direito por causa de uns pierogui? Estivera Caio assim apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal?

Caio é realmente mortal, pensava Ilitch, e está certo que ele morra. Mas quanto a mim, Vânia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e ideias, o caso só pode ser outro! Era assim que ele se sentia: não poderia ser que Ilitch tivesse que morrer. Seria terrível. Como se a morte fosse uma aventura pertencente a Caio apenas, e de modo algum a ele.

Juiz de Direito, vaidoso, Ilitch pensava pela primeira vez na sua pequenez. Ele, que tinha todo mundo em suas mãos  (mesmo as pessoas mais importantes e convencidas), a quem bastava escrever determinadas palavras para que aquelas pessoas importantes, autossuficientes, fossem conduzidas à sua presença na qualidade de acusados ou de testemunhas; a quem, se ele não convidasse para sentar, ficariam em pé, na frente dele, respondendo as perguntas que ele fizesse, se via agora vulnerável, pequeno, ínfimo, infinitesimal.

Tolstói

De tanto descrever pormenorizadamente o trespasse de seus heróis, Tólstoi se tornou uma espécie de especialista em morte da literatura. Em “A Morte de Ivan Ilitch”, além de ilustrar muito bem que quem morre são os outros, o russo também consegue evidenciar com precisão como a iminência da morte destrói todos os véus (ou biombos, como chama o escritor) que a separam da vida.

Durante um conserto doméstico (Ilitch foi retirar uma cortina), o personagem cai, acidenta-se num móvel, e tem início a sua saga moribunda. Num dos capítulos, em um flashback, o personagem remonta obsessivo ao momento em que tudo – a sentença de morte – aconteceu, tentando concertar tudo (concertar mesmo, orquestrar, colocar ordem e sentido): Então é verdade que aqui, junto a esta cortina, eu perdi a vida?, pergunta-se el.Será mesmo? Como é terrível e estúpido. Isso não pode ser.

Ao pensar na morte, Ilitch sai evocando, um após outro, pensamentos que substituam aquele. Enxota-os como falsos, incorretos, doentios, colocando outros em seu lugar.

Tentava voltar aos velhos caminhos de pensamento que anteriormente ocultavam para ele a ideia da morte, escreve Tolstói, mas, fato estranho, tudo o que antes ocultava, escondia, anulava a consciência da morte, não podia mais ter este efeito.

Já que tantas vezes era o trabalho que tinha dado sentido à sua vida, Ilitch chega a se ocupar do trabalho para esquecer: ia para o tribunal, conversava com os colegas, sentava-se e dava início ao julgamento.

Mas, de repente, em meio à sessão, a dor do lado iniciava. Sem dar nenhuma atenção ao desenvolvimento do caso judiciário, iniciava o trabalho com o seu caso. Ivan Ilitch prestava atenção, entoava o pensamento a respeito dela, mas ela continuava sua faina, e ela vinha e parava bem diante dele, e olhava-o, e ele petrificava, o fogo se apagava em seus olhos, e ele começava de novo a interrogar-se: “Será possível que somente ela seja verdade?”. E seus colegas e subalternos viam com espanto e desgosto que ele, um juiz tão brilhante e sutil, se confundia, errava. Ele se sacudia, se esforçava em voltar a si, conduzia a sessão de qualquer maneira até o fim e regressava para casa com a triste consciência de que a sua função judiciária não podia mais, como outrora, esconder dele aquilo que ele queria esconder.

Procurando escapar a esta condição, Ivan Ilitch procurava outros biombos além do trabalho. E eles apareciam. E, por algum tempo, pareciam salvá-lo. Mas, depois, não é que os biombos desaparecessem: tornavam-se transparentes. Como se ela, a morte,atravessasse a tudo e nada pudesse encobri-la.

É o que acontece quando há algo de podre no Reino da Dinamarca. Quando as máquinas (o corpo) param. Quando o que era doce se acaba. Quando um indivíduo, por algum motivo, como à queda de uma cortina (véu?), se vê à margem da sociedade, à margem do corpo, à margem da vida. Quando, por motivos alheios à nossa vontade, somos impedidos de continuar nossas escalada social e obrigados a repensar nossos valores, nossas escolhas, nossas condutas, nossos limites, nossas ambições. Quando já nada – família, posses, livros, trabalho – pode nos distrair de uma condição: se não estiver por vir, será agora. E se não for agora, mesmo assim virá. Estar pronto é tudo.

E o pior era que ela não o atraía para si não para que ele fizesse algo, mas unicamente para que a olhasse. Bem nos olhos. A olhasse e se atormentasse, frente a frente, mas sem ter o que fazer com ela. Somente olhá-la e gelar.

 A Hora da Estrela

Outro que viu a cara da morte – desta vez sendo autor, não personagem – foi Caio Fernando Abreu. Ao ser diagnosticado com AIDS, um sentença de morte em 1994, o escritor gaúcho publicou uma sequência antológica de crônicas em sua coluna quinzenal no jornal O Estado de São Paulo chamada “Cartas para Além dos Muros” – crônicas que se preparam para virar filme em 2019.

Nelas, Caiovê a cara da morte. Tão próxima que consegue ver o rosto inteiro dele, refletido nas pupilas dilatadas dela. Não é medonha, só que não aceito seu convite para dançar. Pelo menos por enquanto, escreve ele.Até concluir que não há outro jeito: é preciso suportar e beijá-la na boca.

Em quem está com Aids o que mais dói é a morte antecipada que os outros nos conferem, vaticina ele na terceira e última das cartas. Talvez por isso o autor conseguisse contar com tanta força o que visse, como a visão do próprio rosto dele refletido nas pupilas dilatadas da morte: porque já estivesse lá, sem que ainda tivesse deixado de estar aqui.

Tal qual o personagem de Tolstói se entregando ao seu ofício para fugir do pensamento-morte, Caio também mergulha na escrita, o seu ofício, na hora da morte. Mas, diferente de Ilitch, o seu mergulho ao trabalho não tem a ver com negação, e sim com entrega. Pensar na vida, na existência, no ser ou não ser, no ser e re-ser.

Eis a questão: em um de seus contos, Caio explica que contar uma história é desemaranhá-la aos poucos,como quem retira um feto de entre vísceras e placentas, lavando-o depois do sangue e das secreções para que se torne preciso, definido, inconfundível como uma pequena pessoa. E finaliza: O que conto agora é isso: uma pequena pessoa tentando nascer.

Pois na hora da morte, o que Caio nos mostra é isso: uma pequena pessoa querendo morrer. Em paz, de bem com a vida.

Me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé, escreve. Chorei algumas vezes porque a vida me dá pena, e é tão bonita. Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo.

Em outras cartas pessoais, reunidas postumamente em uma bibliografia epistolar, Caio escreve que se sente estranhamente bem, se respeita como nunca, e que depois de toda aquela saia justa, viver lhe parece um luxo. Mesmo nos detalhes mais aporrinhantes. Sou um tigre ferido defendendo a patadas furiosas o que me resta da vida, escreve. O tempo que temos, se estamos atentos, será sempre exato.

Jung escreve que à noite, quando dormimos, a consciência se liberta do corpo planando sobre nossas cabeças. Toda essa consciências dos dormentes planando juntas, na mesma hora do dia, sobre nossas cabeças, torna mais “visível”, nessas horas, o inconsciente coletivo. Por isso mais escritores tendem a criar em horas elevadas da noite: por captar, nesse contexto, os segredos da humanidade.

Sendo a morte a grande noite da alma, não estariam eles, à beira da morte, captando segredos do outro mundo?

Fim de Partida

O show (a vida) não pode parar. Morrer? É pra depois.

Viver, escreve Guimarães Rosa, éobrigação sempre imediata.Talvez por isso Maria Alice Vergueiro, a octagenária atriz de teatro, tenha querido “ensaiar a própria morte” no espetáculo “Why the Horse”.

Após ter tido um AVC, ser diagnosticada com Parkinson, perder a irmã e passar por uma série de internações e infecções, Maria Alice quis “contar” o que é a morte de um ponto de vista muito particular: de quem está mais perto dela do que da vida. Não apenas porque o show tem que continuar, mas porque tinha algo a dizer.

Fábio Furtado, dramaturgo, conta que a ideia inicial era montar “Fim de Partida”, de Beckett. “Maria Alice, entretanto, não se entusiasmava”, conta ele. “O que ela queria era algo diferente. A questão da morte estava presente para ela de uma outra forma, e ela dizia que não entendíamos porque somos mais jovens.” Foi quando enveredaram, então, por um caminho novo, que partia do repertório, percepções e angústias de cada um em relação ao tema.

A partir daí, os atores começaram então a explorar as suas relações com a morte (como queriam morrer e o que queriam matar), bem como a relação específica com a morte de Maria Alice, que seria velada em cena. “Como se os atores, entendendo o desejo dela de ‘morrer’ em cena, ensaiassem pequenas mortes para que Maria Alice tivesse forças para ensaiar a sua”, explicando o dramaturgo.

E já que está viva, é da própria boca que Maria Alice escuta que está morta: numa metarreferência linguística, um televisor traz à cena um  close enorme da boca imensa de Maria Alice, ainda jovem, num take gravado e usado na época para outro espetáculo, desesperada ao saber da morte de alguém, outra pessoa.

Assim, a bocarra de Maria Alice pergunta-se incrédula, em terceira pessoa, ao ver-se morrer:  Quem!? Não!? Ela!? Tal como se, como Ilitch – e como atriz que é! – também tivesse acreditado demais na própria imortalidade.

Morrendo em terceira pessoa

A morte sempre foi uma presença constante nas artes e letras. Mesmo se nos afastarmos da literatura e adentrarmos o jornalismo, “exemplos de morte” não faltam. Não aquela mortandade em massa exibida todos os dias nos telejornais e noticiários, esta sim, paradoxalmente permitida, estranhamente naturalizada. Mas exemplos que se aproximam do literário, do estético, do artístico.

Para começo de conversa há, por exemplo, o propalado romantismo dos obituários, onde só se fala sobre a morte no último parágrafo. Todos os anteriores são sobre a vida, e o resto é silêncio.

E digo romantismonão apenas no sentido estético, mas também no modus operandi e em todo o processo de feitio que envolve este tipo de noticiário. Basta imaginar o seguinte: neste instante, em todas as redações do mundo, nos principais jornais do planeta, centenas – quiçá milhares! – de famosos e personalidades têm seus obituários prontos, aguardando apenas a causa e o momentum mortepara serem finalizados.

Parece uma lógica cruel, mas trata-se, em geral, de uma maneira de respeitar figuras públicas, garantindo que o que será falado sobre elas será justo, preciso e único. Jair Bolsonaro, Donald Trump, Mick Jagger, Roberto Carlos, Sílvio Santos, Oprah Winfrey, Caetano Veloso, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, e centenas de outras personalidades, visadas demais ou com mais passado do que futuro pela frente, têm seus obituários prontos, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar.

Em 2012, o jornal carioca O Diafez história com um obituário. Morreram Chico Anysio, trazia a manchete do jornal no dia da morte do comediante. Anunciava a morte dele no plural, ao lado da galeria de fotos dos seus personagens.

Gay Talese, o lendário jornalista literário norte-americano, escreveu o perfil “Sr. Má Notícia”, sobre o obituarista mais famoso do New York Times. Talese conta a história real do editor do jornal que, ao se recuperar de um ataque do coração, recebeu por engano o próprio obituário para revisão e teve outro ataque. Talvez porque quase ninguém esteja preparado para contemplar a sua própria imagem falecida e, pior: a sua ausência no mundo.

Além do tal editor, o escritor Ernest Hemingway foi outro caso raro de alguém que pôde ler seu próprio obituário. No caso do escritor, dezenas deles. É que, dado como morto em um acidente de avião na África e tendo sua morte anunciada, Hemingway teve o privilégio de ler o que todos falariam dele depois de morto. Até tirar a própria vida, o escritor criou o hábito de, vez ou outra, ler um dos obituários acompanhado de uma taça de champanhe.

A Mulher que Alimentava

Mortos anônimos também são diariamente biografados postumamente para os jornais. Se em “Hamlet”Horácio mantém seu sopro de vida neste mundoapenas para contar a saga de vida e morte do príncipe dinamarquês, no Brasil a jornalista e escritora Eliane Brum fez “a Horácia jornalismo”: acompanhou os últimos 115 dias de vida da merendeira Ailce. Contou a história no obituário “A Mulher que Alimentava”, publicado pela revista Época.

Ailce, a personagem: merendeira, aposentada, portadora de um câncer. Eliane, a escritora: uma repórter que não sabia o que estava fazendo, descreveu a própria. Uma mulher que tinha decidido acompanhar até o fim outra pessoa com uma doença incurável, mas não tinha a menor noção de tudo que aquilo significava.

Eu escreveria sua história, e ela estaria morta, assusta-se Eliane ao dar-se conta da empreitada em que se meteu. Ninguém confiara em mim como ela. Pela primeira vez, a personagem principal de uma reportagem – por premissa, não por acidente – não estaria vivo para lê-la. Ailce se entregara inteira nas minhas mãos de escritora.

E Eliane, que em todas as reportagens tem “o defeito” – segundo a própria – de escrever mais do que cabia, sofreu ainda mais nesta com cada frase que ficou de fora.Cada corte era uma traição a Ailce,explica,um pedaço da vida dela que deixava de existir ao não se transformar em história contada.

Quando tudo era desordem na vida dela, a transtornada Ailce (palíndromo da personagem de Lewis Carrol, Alice transformada na hora da morte?), a presença de Eliane a lembrava que ainda havia essa história, ainda existia uma mulher chamada Ailce, que havia criado dois filhos, construído uma casa grande e matado a fome de centenas de crianças.

O que você quer ser quando morrer?

Shakespeare escreve que sabemos o que somos, mas não o que podemos vir a ser. Guimarães Rosa diz que a morte amedronta não por se perder o que possui, o que se é, ou o que se foi. Não pelo presente ou pelo passado. O que se teme, na morte, é perder o futuro: O possível de coisas ainda por vir, no avante viver, o que talvez longe adiante me aguardava. A vida está toda no futuro.

O que você quer ser quando morrer

É o que parecem afirmar as mortes de outros dois personagens da história da literatura. Em “A Hora da Estrela”, a maior frustração de Macabéa ao morrer acontece exatamente porque ela percebe que justamente ali, naquela hora, pela primeira vez, ela era uma pessoa grávida de futuro.

Em “Hamlet”, alguns versos finais ecoam com precisão o lamento da humanidade por tudo que há porvir, mas que não vem nunca mais quando os galos são abatidos e não há mais amanhecer. Seele tivesse vivido e ocupado o trono, teria se tornado um grande soberano, lamenta Fortimbrás sobre o cadáver do príncipe morto, que nunca se transformou num rei.

Se…partícula apassivadora que opera a vida. E como saber o que seria se assim não fosse, se assim não sendo seria uma outra história?

Hamlet teria sido mesmo um grande líder? E Guimarães Rosa? Teria ganhado o Nobel se não tivesse “encantado”? Macabéa teria sido feliz se não tivesse morrido?

Quando soube de sua morte anunciada por uma doença incurável, o filósofo oitocentista David Hume escreveu uma despedida curta tecendo odes à vida. Aos moldes dos obituários, Hume também passou todos os parágrafos falando sobre a vida, passando ao passado só no final:Eu não sou, eu fui, corrige ele, porque esta é a maneira que devo falar de mim mesmo agora: eu fui!

A morte está no meio da travessia

Adentrando o cemitério enquanto o coveiro atira para o alto um crânio, Hamlet fica perplexo ao pensar que aquela caveira já teve língua e pôde cantar um dia. Depois, com a caveira de Yorick, o Bobo da Corte que o carregou no colo nas mãos, o príncipe da Dinamarca fica estarrecido de vez: Eu o conheci, Horácio, um tipo de infinita graça e da mais excelente fantasia. Carregou-me nas suas costas mais de mil vezes e agora… como é horrível imaginar essas coisas! Aqui ficavam os lábios que eu beijei nem sei quantas vezes. Onde estão agora os gracejos dele? As suas cabriolas? As suas canções? Seus lampejos de espírito que eram capazes de fazer gargalhar todos os convivas? Nenhum mais agora, para zombar dos seus próprios esgares? Caiu-lhe o queixo? Vai agora aos aposentos de minha dama e diz a ela que, por mais grossas camadas de pintura que ela ponha sobre a face, terá de chegar a isto. Vai fazê-la rir com essa ideia.

Quarto e túmulo, túmulo e útero, útero e morte. Estas palavras não rimam, mas o escritor norte-americano Paul Auster não consegue deixar de pensar nelas juntas.

Outros, como Beckett, não conseguem mais olhar para uma criança sem pensar que ela envelhece, nem para um berço sem pensar num túmulo.

Em outros, como Karl Ove, a visão de uma bela mulher nua logo leva a imaginar aquele corpo em decadência, apodrecendo na cama de um hospital. Como neste trecho, em que o autor conta sobre a vez em que, ainda criança, encontrou a foto de uma mulher nua: Era tão magra que as ancas mais pareciam tigelas vazias. Todas as costelas eram claramente visíveis. No meio das pernas ela tinha um pequeno tufo preto. Mais atrás via-se uma fileira de camas, onde pude notar os vultos de outras mulheres. Estremeci por dentro. Não havia absolutamente nada de atraente naquela fotografia, mesmo que ela estivesse nua, e também porque na página seguinte havia a fotografia de uma enorme pilha de cadáveres em frente a uma profunda cova onde vários outros cadáveres estavam jogados. Me dei conta do seguinte: pernas eram apenas pernas, mãos eram apenas mãos, narizes eram apenas narizes, bocas eram apenas bocas. Coisas que haviam crescido em outros lugares e acabaram jogadas na terra. A mulher parecia uma morta-vida. Ou a morte como vida.

E a escrita?, se pergunta o mesmo Karl Ove em outro momento. O que é a escrita senão a morte? Letras? O que são as letras senão ossos num cemitério?

No conto Páramo, de Guimarães Rosa, o personagem-narrador deixa no cemitério o volume de um livro que o acompanha a história e a vida inteira. Ao sair do cemitério tentando deixar o livro, não consegue: o volume é devolvido a ele por um homem que havia ajudado a carregar um morto num enterro. O gesto evidencia, de acordo com críticos, a impossibilidade de, em vida, se escapar da linguagem.

Afinal, cala a boca já morreu.

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Rômulo Zanotto é escritor, jornalista e publicitário. Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná, vive em Curitiba.

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Uma poesia para cada dia que resta https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/02/01/uma-poesia-para-cada-dia-que-resta/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2019/02/01/uma-poesia-para-cada-dia-que-resta/#respond Fri, 01 Feb 2019 19:33:46 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/laura_graduation-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1679 Rodrigo nasceu em Belo Horizonte, há 45 anos. Hoje, mora em São Francisco, Califórnia, onde trabalha como engenheiro de software. Foi ali, no escritório, que recebeu o resultado de um exame anunciando: câncer pancreático, metastático. “No dia que escutei a notícia foi um pânico, desespero. Me ligaram falando que havia algo muito sério e que o laudo estava online. O laudo falava em câncer pancreático com grandes chances de metástase. Olhei as estatísticas de sobrevivência e vi que eram em meses e não em anos. Fui para casa chorando, mas minha esposa me ajudou muito. Aceitei relativamente rápido meu destino. Tá, não gosto dessa palavra, mas pode ser sim, vai: destino”.

Era pouco antes do Natal, 2017. Rodrigo foi a um dos mais renomados cirurgiões pancreáticos, em Stanford, que disse: “não há esperança de cura”—não era viável operar o tumor. Mas Rodrigo queria mais. Final de ano não é um bom período para o pai de duas meninas desaparecer. Final de semestre, trabalhos na escola, perguntas que ficariam sem respostas. Ele decidiu adiar o fim ao máximo, tentar os tratamentos possíveis, lutar.

Os caminhos que podem ser percorridos nessa “luta” exigem uma conversa sincera e honesta com o médico. Esse tipo de conversa é um hábito nos Estados Unidos, uma regalia no Brasil. Ele trocou de oncologista no meio do caminho, após a oncologista inicial dar por encerrado o tratamento. “O oncologista atual, do fim, é ótimo. Pão, pão, queijo, queijo. Compartilhou comigo a escolha do tratamento. Ele me deu três alternativas, contou os prós e contras de cada uma e me deixou escolher. Cada semana eu ia lá e conversava sobre o tratamento com ele. Com a piora do meu quadro, ele apontou a alternativa da sedação definitiva. Aqui, essa sedação é uma coisa delicada. No Brasil, é bastante comum.”

Durante nossa conversa, fiquei sensibilizada com sua postura serena, lúcida e positiva perante a proximidade da morte. Ele se sente honrado por ter tido esse tempo, esse um ano e pouco entre o diagnóstico e o momento atual, que é mais definitivo. Se sente abençoado por ter tido tempo para preparar sua morte, sua despedida. Um ataque cardíaco, por muitos considerado uma morte desejável por ser rápida, é visto por ele como ruim. Seu pai morreu assim, de repente, passeando em Goiânia. Rodrigo vê sua vida entre aquele dia no escritório e o hoje como um presente, com a consciência de que cada dia a mais vale a pena.

“É como se eu tivesse morrido e ganhado um bônus para usar da melhor forma possível. De um lado, eu comecei a fazer tudo como se fosse possível ter uma cura. Já do ponto de vista filosófico e psicológico, de auto conforto, eu pensava que mesmo tendo um tempo limitado, tive o benefício de ter tido a notícia antes de morrer. Eu usei esse tempo que eu ganhei para escrever dois livros, melhorar o relacionamento com minha esposa, e cuidar de coisas práticas, como ter certeza de que ela e minhas filhas estarão bem providas materialmente”.

Parte dessa atitude positiva pode vir da transmutação da dor oferecida pela poesia. Rodrigo começou a escrever, sob pseudônimo, um livro de poesias e crônicas (disponível gratuitamente aqui), como esta a seguir e outras que inseri ao longo desse artigo.

Graaaaaaande vantagem

A grande vantagem deste livro sabe qual é?

É que, a ele, ao contrário do outro, nunca me falta inspiração.

Se era pra escrever poesia e à cabeça me vem prosa,

Vai a prosa formatada como poesia, e pronto: está feito.

Aliás, vou lhe contar um segredo: não espalhe, sim?

Este livro é meio como o livro de areia, de Borges:

Dele parecem brotar as páginas, assim, sem mais,

Sem ordem definida, ou, sequer, um propósito claro.

Eu desconfio que no real seja ele mesmo que escreva-se,

Pelas madrugadas afora, enquanto durmo o sono dos justos.

Ah, e sabe qual é outra coisa que brota enquanto durmo?

O meu tumor pancreático. Eu o chamo de Ático, pra simplificar.

Ático, Ático, abane a cauda. Bom menino. Agora finja-se de morto!

Ó: em vez de venenos, dou-lhe açuquínhar. Não fingiu, o maldito.

Ando desconfiado de que ele não é cão, e, sim, uma píton reticulada.

Que diabo de cachorro tem, de uma só ninhada, oitenta filhotes?

 

Conforto espiritual

Rodrigo buscou conforto espiritual durante o tratamento, apesar de não ter uma religião específica. Fez, por exemplo, um curso de introdução ao zen-budismo, num mosteiro da região. “Eu gosto de elementos de várias religiões.  Um aspecto que eu gosto do budismo é o das pessoas passarem por um processo de melhoria. Estamos aqui por uma razão e isso vai gerar um crescimento para nós e para as outras pessoas. Gosto também do amor incondicional do catolicismo. Essa é a base da igreja e as pessoas esquecem. Ficam nesse nós e eles. O que não gosto do cristianismo é o inferno. Isso não deveria existir na religião. Ela deveria ser motivada pelo amor e não pelo medo”.

Autonomia na morte

Hoje, Rodrigo está em casa sob cuidados do Mission Hospice. Ele avalia a possibilidade de um suicídio assistido, como é chamado na maioria dos países. Rodrigo não gosta da terminologia. Ele tem razão, é horrorosa. A Califórnia a chama de “end of life act”. O paciente tem o direito de levar um remédio letal para casa e tomá-lo no momento que achar adequado. O coração demora aproximadamente 30 minutos para parar de bater. Na Suíça, é questão de segundos. Rodrigo já resolveu a parte burocrática do “end of life act” e tem essa opção à sua disposição. Outra alternativa que lhe parece mais palatável é a sedação definitiva. A pessoa é sedada profundamente, de uma maneira que, em geral, leva à morte em alguns dias. É uma alternativa legalizada no Brasil e bastante usada. Em muitos casos, sem o consentimento do paciente. “Eu me sinto no controle desse quando (da morte). Eu tenho duas opções para isso: o remédio de fim da vida e a sedação definitiva. Os dois estão esquematizados pela parte burocrática. É uma questão de decidir quando. Vai depender de quanto tempo eu ainda terei com razoável qualidade de vida, conversando com as minhas filhas, minha esposa, minhas irmãs, lendo algo legal, escrevendo… O que me leva pois a contemplar essa possibilidade é ver que essa minha qualidade de vida nessas últimas semanas piorou bastante”. Ter qualidade de vida para Rodrigo é poder conversar, estar bem ao lado da família, enfim, não estar em um “inferno”, vomitando, com dores, azia, diarréia…

Leia mais sobre esse tema na categoria eutanásia e suicídio assistido no blog.

A jornada até essas “últimas semanas” foi intensa. Ele tentou vários tratamentos possíveis, quimioterapias, terapias direcionadas e uma imunoterapia, até que seu corpo parou de reagir aos tratamentos.“Fiz 5 regimes de tratamentos diferentes. É muito raro isso. Os dois primeiros foram cobertos pelo seguro de saúde do meu emprego. O terceiro foi gratuito, porque era experimental, bancado por um laboratório grande. O quarto e quinto, mais heterodoxos, foram com seguro parcial”. Quando o médico disse que não havia mais opções para ele, pensou: “agora é uma questão de avaliar a qualidade de vida. Eu vou ter majoritariamente dias que valem a pena viver ou dias que não valem a pena?”

Rodrigo foi o cuidador primário da sua mãe—que morreu de câncer um ano e meio antes de seu diagnóstico—na última semana que ela passou em casa. “Eu fui também a pessoa que estava ao seu lado no momento da morte. O processo de ter que lidar com sua doença foi mais doloroso do que ter que lidar com a minha própria doença. Primeiro porque a sobrevivência no meu caso era difícil desde o início, mas não impossível. Embora estejamos falando de 1 ou 2% de taxa de sobrevivência a longo prazo, havia uma esperança. É um mecanismo de autopreservação. Eu entrei nesse modo. De luta, de tentar de tudo. Essa luta pela sobrevivência absorveu muito da minha energia”.

Somos condicionados a ver a morte como uma inimiga. Em diversos obituários ainda se lê: lutou contra um câncer até o final mas não aguentou, perdeu a vida para um câncer, batalhou até o fim. A morte de alguém doente, como ocorre na maioria dos casos e muito provavelmente será o meu destino e o do leitor, traz em si essa teoria cinematográfica da trajetória do herói. O herói vence a morte. O anti-herói é vencido por ela, definha, morre. O curta metragem “A Senhora e a Morte” faz uma caricatura desse momento, colocando o médico como um ser nada simpático, a lutar contra a morte a qualquer custo.

Rodrigo não vê seu tratamento como uma perda, apesar de usar a palavra “luta”. Ele vê seu tempo, e cada dia que passa, como uma conquista. Ele quer decidir como e quando morrer. Ele possivelmente sentiue sente um desconforto que muitos de nós nem consegue imaginar. Mas ele aprecia cada bom momento que passa com sua família e com os amigos. Cada momento que compartilha, cria. Não se contentaria com menos do que isso. Não é possível saber se Rodrigo ainda estaria vivo sem os 5 tratamentos a que se submeteu. Inclusive, ele não poderia ser julgado caso tivesse optado por nenhum. Ele não teria desistido ou deixado de lutar. Essa ideia de “perdedor” é um estigma, uma construção social que se transforma ao longo do tempo. Para mim, essa história é um convite à reflexão sobre autonomia, escolhas, e a forma como nos comportamos perto de alguém diagnosticado com uma doença sem cura. E, claro, uma valorização da vida, dure quanto durar.

 

Conte praquelas suas amigas que reclamam dos maridos

Que o menino

Mesmo cancerígeno

Mesmo pancreático

Mesmo envenenado

Mesmo irreativo

Mesmo semivivo

Mesmo operado

Mesmo metastático

Mesmo sem antígeno

Mesmo nesta briga

Mesmo tão pequeno

Mesmo tão doído

Mesmo tão drogado

Mesmo enjoado

Mesmo mal-dormido

Mesmo com preservativo, a não lhe passar veneno

Mesmo com dezoito anéis de ferro na barriga

Ainda agora, quiçá depois

Lhe causa, sem mais, um bom orgasmo ou dois.

No caso, dois.

Abaixo, um pouco mais da nossa conversa.

O que você acha da ideia da imortalidade?

“Toda vez que me perguntam sobre isso, eu penso nas semanas mais horripilantes que eu passei. Combinação de dor, náusea, vômito, diarreia. Eu tenho mais horror a esse cenário, da pessoa presa em uma situação de que ela não pode sair. Acho a imortalidade extremamente perigosa nesse sentido. Não gosto também da ideia de uma imortalidade imóvel, como no cristianismo, onde você atinge um estágio de plenitude, final e imutável. Mas aceito a imortalidade se for uma imortalidade com evolução contínua, aprendendo coisas novas, melhorando”.

Arrependimentos?

“Todos.  Eu queria ter tantas outras vidas para viver. Explorar outras possibilidades. E se eu tivesse feito isso diferente, ou aquilo? A vida é como fluir rio acima. Na medida em que ficamos mais velhos, vamos estreitando os afluentes. O ideal seria conhecer todo o rio, todas as nascentes. Arrependimento não é a melhor palavra, mas eu teria vontade de experimentar como seria a vida se eu tivesse feito outras escolhas. Não necessariamente as grandes decisões: as pequenas, as que parecem insignificantes. Eu tenho saudades do futuro, desse futuro do pretérito, do que podia ter acontecido, sabe? Honestamente, eu não estou angustiado, amedrontado… eu já estive psicologicamente muito pior do que estou agora. Mas eu queria ter feito mais na vida. Me deixa chateado não poder passar mais tempo com as minhas filhas, minha esposa, minhas irmãs, amigos, família… É chato saber que meu tempo agora é muito limitado. Eu queria ter realizado aqueles sonhos de criança, sabe?—como escalar o Aconcágua”.

Como seus amigos estão reagindo?

“Eu gosto de receber visitas. Escrevi uma crônica sobre isso que se chama Bem-vindo ao meu funeral. O amigo do seu amigo, por exemplo, fica sabendo e quer virar seu melhor amigo de repente. A pessoa faz aquilo na melhor das intenções. Muitos chegam com sugestões para dar. Por exemplo: uma amiga de infância que eu não via há décadas quis me levar no João de Deus. A irmã de um amigo disse: coma casca de limão. Outro amigo mais recente sugeriu brócolis e cúrcuma. E houve ainda um que prescreveu dois banhos frios por dia. Ah, e uma tia quis mandar nove sacos de folha de graviola do Brasil. Recebi dicas até de cogumelos alucinógenos. É uma preocupação sincera das pessoas, que eu tomo como uma prova de amor. Mas vou e guardo com carinho na minha lista de sugestões heterodoxas”.

Bem-vindo ao meu funeral

Ele não deveria estar ali, no regrado,

Mas é ali que clinica a massoterapeuta.

E ela é a única que o põe no ângulo certo e aplica a pressão certa

Sobre uma barriga com tumores tantos e tais.

Então lá vai ele pelo pátio principal da Corporação,

Apressado, em meio à sua licença médica.

Proibido não é, mas roga aos Céus que não o vejam

Os colegas vários que por ali almoçam.

Não é um colega, é um amigo da família que ali trabalha

Quem vem mais adiante pelo caminho, em conversa com um outro.

Está distraído. O verá? Será que o verá? Por certo o verá.

Ele sabe pela esposa dos detalhes da doença. Pronto: o viu.

Do dito se altera completamente o semblante: está consternado.

Ele pede licença ao outro e abre bem os braços, em exigência de firme abraço.

“Não, um sorriso por favor, meu caro, que ainda não é hoje o meu funeral.”

Só que claro que não, né, leitor? Seria uma grosseria sem tamanho.

“Eu lamento profundamente, sim? E a família como está?”

“Aqui: está tudo bem conosco. Estamos encarando da forma mais positiva possível.”

“Olhe, pois nós estamos orando muito por vocês. O que precisarem, é só dizer.”

“Estamos todos bem, de verdade. Mas muito obrigado pelos préstimos.”

Ele olha ao redor, de soslaio.

Ufa: ninguém conhecido parece ter notado a cena.

Imagine se logo além da quadragésima versão daquilo,

Estivessem a quadragésima-primeira, a quadragésima-segunda…

A verdade é que o amigo também não tinha remédio.

Fazer o quê? Dar-lhe um simples bom dia? Seguir adiante?

E quem é que mostra os dentes diante de um condenado?

Ele fez o estritamente sensato, se não exatamente o sensível.

“Olhe, um santo remédio pra isso, sabe qual é? O chá de folha de graviola.”

“Não, chá de casca de limão. Aliás, coloque casca de limão em tudo o que você puder.”

“Ó, não sou médica, mas aí vai um artigo que me parece excelente. De todo, não o li.”

“Dois dias de jejum antes da quimio, e um depois. Banho, só gelado, duas vezes por dia.”

“Cem gramas ou mais de brotos de brócolis por dia. E três gramas de curcumina.”

“Ah, o melhor é você seguir logo os conselhos do Doutor Lair Ribeiro.”

Tá, o Lair Ribeiro foi um exagero retórico. Um pequeno exagero retórico.

Mas o resto é só pra ficar nos parentes mais próximos e amigos mais sinceros.

Unguentos. Emplastos. Ervas. Ninguém diz nada disso por mal.

Aliás, este que vos fala é que deveria ser menos ingrato, honestamente.

E tomar cada receita tal por aquilo que por fato ela é:

Uma prova de que com ele se importam a valer os parentes, os amigos.

Oxalá jamais ponha o bom Deus em seu caminho tal prova, leitor.

Mas, se assim calhar, aceite o seguinte conselho:

Responda cada sugestão dessas com um sincero sorriso,

E use a parca energia que lhe resta para fazer o que lhe diz a oncologista, a nutricionista…

Por você ser jovem, as pessoas parecem se espantar mais?

“Talvez a reação seja mais intensa. Mas pouca gente tocou nesse aspecto específico. Me incomoda quando alguns falam: ‛não se preocupe, vai dar tudo certo, você vai se curar, tem que confiar no milagre, o segredo da cura é confiar que ela vai acontecer’. Eu sou um engenheiro, de coração. Eu acredito em estatísticas, seguir o que tem uma probabilidade minimamente razoável de acontecer. Eu não vou bater boca com ninguém por isso, mas ser relativamente jovem faz diferença nesse sentido. As pessoas chegam mais com essa conversa: você sai dessa. Eu não quero negar, quero lidar com o problema. A negação é chata e improdutiva”.

 

Quais diferenças você vê entre o tratamento no Brasil e nos Estados Unidos?

“Nos Estados Unidos, o tratamento em si é muito mais ágil, há mais opções. A pessoa está muito mais no controle. No Brasil, o oncologista falava o que tinha que fazer e ponto final. Aqui, nos EUA, tem uma troca. Pode ser uma questão cultural e até por razões legais. Minha mãe demorou dois meses para começar a se tratar. Eu estava no cirurgião na mesma semana do diagnóstico. Na semana seguinte estava começando a quimio. Mudei de oncologista no meio dos tratamentos. Mudei porque a primeira oncologista já não acreditava mais no tratamento. Não vou continuar com uma pessoa que não acredita no tratamento corrente e nem quer propor soluções alternativas. Mudei para outro médico com muita facilidade. Na semana seguinte, já estava começando outro tratamento. Essa facilidade de ter uma segunda opinião, terceira opinião, mudar de médico, é maior aqui, nos Estados Unidos”.

O que a convivência com a terminalidade nos ensina?

“A gente tem um mecanismo de defesa que não nos deixa pensar demais na morte. Ter um prazo concreto para a morte remove esse mecanismo de defesa e nos obriga a lidar com a morte como algo real. Serve para colocar a vida em perspectiva e pensar no imponderável, imaginar o que eu desejo para o provir, as alternativas que eu admito como desejáveis. E também para focar nas boas memórias, lembrar das minhas filhas quando eu as segurei em uma mão só, na maternidade. Eu penso muito nas minhas filhas como algo que, por si, já me valeu a vida. Uma das contribuições principais que eu deixo são essas duas mulheres… São ótimas, inteligentes, divertidas, e têm uma consciência social, uma consciência do papel que elas têm nesse mundo”.

 

Décimas do velho e bom Mestre Zossima

Ó, uma coisa me parece provável nisso tudo:

ou bem o barco flutua, ou bem ele afunda.

E, se ele flutua, ele flutua para todos.

E, se ele afunda, ele afunda com todos.

Por isso, pare de desejar que a água mine

Bem aos pés daquele seu vizinho mais chato.

Sim, que ele é chato, é chato. Eu concordo.

Ô pela-saco, meu Jesus Cristo.

Mas a enxutez, ou é para todos,

Ou é por um tempo bem limitado.

Então, por caridade, pelo bem da harmonia cósmica,

Tenha muito cuidado no você espera que aconteça, sim?

E como eu sei disso?

Bom, eu não sei. O principal da estória toda é que eu não sei.

Outro dia me apareceu alguém num sonho dizendo que se chamava Universo

E ele me disse que essa aí era a verdade. Mas vá se saber.

Outra coisa que ele me disse:

Que cada um, do seu particular ponto de vista,

Rema na direção que lhe parece mais promissora,

E o mar é quase que uma imensidão redonda, e só.

Por isso a resultante do esforço é muito pequena.

Bom, é pequena se comparada ao esforço.

Mas fato é que, se ninguém puser força no remo,

O barco seguirá à deriva.

Por isso reme, leitor.

E se a direção adiante não lhe parece frutífera,

Esprema-se por entre os demais,

E ache uma nova direção.

Reme e reze, mas reze por todos. Por todos, sim?

E peça perdão até aos passarinhos do bom Deus.

“Quem acredita no povo de Deus verá Sua glória,

Mesmo se antes não acreditasse em Deus.”

Essas são as exatas palavras do velho e bom Mestre Zossima.

“Nosso povo resplandecerá na face da terra e todos os homens dirão:

A pedra que os construtores rejeitaram,

Essa veio a ser a principal pedra, angular.”

“E lembre-se principalmente de que você não pode ser juiz de ninguém.

Pois na terra não pode haver juiz de um criminoso, antes de esse juiz compreender:

Ele mesmo é tão criminoso quanto aquele que comparece na sua frente,

E talvez ele seja o primeiro culpado pelo crime.”

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O Último Abraço https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/12/o-ultimo-abraco/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/12/o-ultimo-abraco/#respond Fri, 12 May 2017 15:22:42 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/05/IMG_4113-135x180.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1313 Nelson Golla já não aguentava mais assistir, impotente, a situação de sua mulher quando decidiu explodir uma bomba caseira abraçado a ela em uma clínica de idosos na zona leste de São Paulo. “Não foi um ato de loucura” ele escreveu em uma carta. Para ele, era um ato de amor.

“O Último Abraço” (Ed. Record, 2017) é um livro reportagem de Vitor Hugo Brandalise, que narra a história do casal que ficou conhecido como o “Romeu e Julieta da terceira idade”. Apesar da manchete, o caso de 2014 foi muito pouco noticiado.

Vitor considera que a somatória de tabus representada nesse caso pode ter sido um fator importante. “Vivemos em uma cultura que trata a morte como uma inimiga e evita pensar nela, falar dela. O caso toca em temas como suicídio na terceira idade e decadência do corpo na velhice, por exemplo”, ele conta ao blog “Morte sem Tabu”. Somado a isso, está o momento em que ocorreu, perto das eleições presidenciais de 2014.

Uma história aparentemente negativa, que relata um idoso que explodiu uma bomba em um asilo da Zona Leste de São Paulo, recebeu uma possibilidade de compreensão e de escuta, na voz de um repórter que buscou fazer um retrato humano de uma atitude drástica. “Ela pediu para morrer mais de uma vez, não há duvidas de que ele fez isso por não aguentar mais ver esse sofrimento”, diz Vitor.

Nelson Golla, então com 74 anos e Neuza, 72, estavam juntos há 54 anos. Neusa sofria as consequências de dois AVCs. Ela não podia mais mastigar ou deglutir e recebia alimentação por uma sonda grudada na narina esquerda, que se comunicava direto com o estômago. “Suas reações restrigiam-se a grunhidos e olhares marcados por uma depressão profunda”, descreve o autor no livro.

A gota d’água para Nelson teria sido o momento em que tentou dar água na boca da sua mulher e foi impedido. Ali, ele tomou consciência de sua inutilidade e lembrou da sua mãe dizendo que, para matar a sede das crianças, era necessário dar água na boca. “O fato dele se sentir inútil foi uma das razões para ele tomar essa decisão”, diz Vitor.

A contracapa do livro traz uma passagem marcante: “Nelson visitaria Neusa novamente. Levava dois volumes nos bolsos da calça. Um deles era uma bisnaga de 100 militros que enchera com água de coco de caixinha, como a esposa gostava. Às escondidas, daria de beber a ela. Nelson sabia que era proibido alimentar pacientes que usam sonda, mas, ainda assim, sempre o fazia – uma bebida direto no estômago não mata a sede de uma boca seca – dizia”.

A narrativa desse momento tem desdobramentos profundos. Podemos discutir, por exemplo, a falta de treinamento dos profissionais envolvidos. Não é uma questão de apontar dedos, como o próprio autor comenta, apesar de vermos, aí, uma falta de sensibilidade grande. Mas sim, de compreendermos que a falta de capacitação pode levar a consequências radicais. Cuidados paliativos é uma área da medicina que se propõe a esse olhar. Buscar entender as necessidades não só do paciente, mas da família também.

Vitor mencionou que Nelson poderia ter tido algum espaço para se sentir útil no tratamento da esposa, como molhar seus lábios com algodão. Ele a visitava todos os dias, imagino que seu sentimento de impotência só tenha crescido, até se tornar insuportável.

Neusa morreu imediatamente. Nelson não. Vive até hoje respondendo em liberdade por homicídio doloso qualificado, por ter colocado em risco a vida de outras duas senhoras que se hospedavam no quarto. Elas não se machucaram.

Os três filhos do casal, hoje, não julgam o pai. Compreendem ter sido um ato de amor. Vitor comenta que, no início, houve incompreensão. “Eles não imaginaram que o sofrimento dos pais fosse tão grande a ponto de levar a uma medida extrema como essa. A reação foi se questionar como puderam não conversar mais às claras sobre o que viviam? Mas a maior parte das famílias brasileiras não tem mesmo o hábito de falar sobre o fim da vida”, conta Vitor.

Outro desdobramento desse caso, é a falta de discussão sobre a eutanásia e o suicídio assistido no Brasil. Nelson deixou uma carta em que diz: “Isso que eu fiz é simplesmente uma eutanásia”.

Vitor enxerga um gancho importante para essa discussão. “Esse é um dos casos que pode mostrar a necessidade de falarmos sobre isso”. Ele cita uma pesquisa recente da revista “The Economist”, que analisou quatro países e listou o Brasil como o único que colocou a extensão da vida a frente do sofrimento. Os brasileiros optariam por uma vida mais longa em detrimento de sua qualidade. Um dos motivos para isso seria nossa religiosidade intensa.

Vitor aponta para um fato comum de se escutar nos bastidores de UTIs, o de que a eutanásia já é uma prática, mas ela ocorre de forma velada e sem comunicação clara entre médico e paciente. “Como não é regulamentada, e por ser um tabu muito grande, não se fala sobre isso, mas já acontece. O que vai continuar acontecendo é esse acordo silencioso, individual entre as partes e, eventualmente, casos como esse”, diz Vitor.

O autor também comenta que cuidados paliativos e eutanásia não são excludentes, “você pode ter cuidados paliativos para diminuir o sofrimento e mesmo assim optar pela eutanásia”. Teríamos muito a ganhar se os médicos deixassem de encarar a morte como inimiga, e não “verem mais seu trabalho como uma luta contra a morte”, complementa.

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Vamos começar pelo fim? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/24/vamos-comecar-pelo-fim/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/01/24/vamos-comecar-pelo-fim/#respond Tue, 24 Jan 2017 11:12:56 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2017/01/00021-119x180.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1237 Foi pensando no “adolescente virtualizado” que a pesquisadora Kate Rigo criou a pedagogia cemiterial. Sua teoria é descrita no livro “Vamos Começar Pelo Fim?”, lançado pela editora Chiado. O adolescente virtualizado é descrito pela autora como aquele que prefere interagir emocionalmente e racionalmente pela internet e acaba se distanciando cada vez mais da realidade.

Uma consequência brutal desse comportamento é não conseguir perceber a morte como concreta, o corpo como finito, e também seria um dos motivos para o crescimento das taxas de suicídio e de comportamentos autolesivos entre os jovens. “As coisas acontecem tanto no plano virtual que ao se cortar e ver o sangue escorrendo, eles se sentem vivos. São os adolescentes que precisam urgentemente de ajuda. Eles não se sentem vistos pelo outro, pelos pais e pelos professores”, comenta Kate.

Uma forma de lidar com esse problema social é, conforme sua sugestão, a pedagogia cemiterial, que se baseia no uso de cemitérios como forma de ensino. Kate levou seus alunos para esses espaços para discutir temas como geografia e história.

Apesar de haver muita superstição envolvida (um pai chegou a pedir para o filho ir banhado em sal grosso), Kate considera a recepção muito positiva. “O que me chamou atenção é que era um local para perguntarem coisas que na escola não há espaço. Eles conseguiam chegar a conclusões entre si respeitando a fé de cada um. Tinha uma troca social riquíssima”.

Comportamentos autolesivos seriam motivados por transtornos psicológicos, pela busca do alívio do sofrimento e também haveria um componente de modismo forte, com a influência de vídeos no YouTube com adolescentes se cortando. Mas a internet também pode ser uma fonte de consolo, por oferecer várias páginas no Facebook que acabam virando terapêuticas, unindo outras pessoas com essa dor.

Há alguns sinais de alerta, como mudanças de vestimenta. O adolescente passa a usar roupas de inverno mesmo no verão, para esconder as marcas. Ele começa a se retrair, tanto em casa quanto na escola. Kate orienta buscar auxílio na psicologia e fazer o encaminhamento necessário em cada caso.

Na essência de tudo, estaria o aumento da depressão e da ansiedade, como um sintoma da falta de espaços para reflexão e da falta de afeto em casa e na escola.

Um ponto importante é a carência de escuta que ela vê no tratamento com o adolescente. “As pessoas não têm mais tempo para conversar umas com as outras. Os pais não têm mais tempo para os filhos. É só olhar no restaurante, ninguém conversa entre si, só com o smartphone. A solidão acaba se propagando”.

A falta de apoio na fé tradicional do Deus cristão também contribuiria para essa solidão. “O adolescente virtualizado quer informação, quer imagem, ele quer provas, e a teologia não dá essa perspectiva para ele”, comenta. Como alternativa, buscam o que Kate chama de o “Deus Google”, onde encontram todas as repostas para suas perguntas. Mas ela considera ser importante o adolescente buscar algum tipo de espiritualidade que sirva como apoio. “Pode até ser a ciência, o importante é ter um foco, um objetivo, algo que dê sustentação para ele continuar vivendo”.

A pedagogia cemiterial de Kate é uma proposta de ferramenta para tratar dessas questões, na medida em que mostra ao adolescente que a morte é algo concreto e “não um videogame onde você tem várias vidas”, como ela mesma coloca. Acima de tudo, é uma forma de interação real.

Quando falamos sobre morte, sinto que se estabelece uma conexão especial, como se estivéssemos transgredindo, tocando em um assunto proibido. Talvez esse seja um ponto importante na pedagogia de Kate. O adolescente cria intimidade e vê uma oportunidade para se abrir. Arrisco dizer que todo mundo busca relacionamentos profundos e significativos na vida. O que pode faltar é um ambiente que promova isso. Usar o cemitério me parece uma ótima sugestão.

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Confissões do crematório https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/21/confissoes-do-crematorio/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/21/confissoes-do-crematorio/#respond Sun, 21 Aug 2016 12:58:24 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/Crematório-Caitlin01-2-180x99.png http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1075 A norte-americana Caitlin Doughty abraçou uma missão: desmitificar o tabu da morte. Com seu canal no YouTube, o “Ask a Mortician”, ela apresenta vídeos curiosos sobre a indústria da morte usando humor afiado e sagacidade. E usa a escrita para apresentar o leitor a um setor pouco conhecido do público em geral – os bastidores da morte.

Seu livro, “Confissões do Crematório” (ed. Darkside, 2016), lançado recentemente no Brasil, é uma compilação de casos reais vividos durante seus primeiros seis anos trabalhando em um crematório nos Estados Unidos.

Doughty não pisa em ovos. Ela destrincha os tópicos mais mórbidos de forma bem direta. Conta sobre um bebê que precisou raspar a cabeça (pois a família queria guardar o cabelo de lembrança), e atividades como lubrificar uma mão para tirar a aliança, remover marca-passos para não explodirem no forno crematório, moer ossos em um liquidificador de metal, inserir tampas espinhosas embaixo das pálpebras para os olhos ficarem fechados e barbear mortos. São ações que incitam um dilema comum aos trabalhadores desse ramo: “Eu não tinha certeza se Byron era um ‛ser’ ou uma ‛coisa’ (um corpo), mas parecia que eu devia ao menos saber o nome dele para executar um procedimento tão íntimo”, escreve.

A autora oferece uma revisão histórica da morte, como o surgimento do embalsamamento, da cremação, dos cemitérios modernos, a higienização do processo do morrer com a transferência dos moribundos de casas para hospitais, os ritos fúnebres nas diversas culturas – a tribo brasileira Wari que comia seus mortos, os budistas tibetanos que deixam os corpos ao ar livre para serem devorados por entidades celestiais (os urubus) e o costume fúnebre da ilha de Java, na Indonésia, de abraçar e lavar cadáveres.

Ela relaciona o tabu da morte com o do sexo: “Enquanto o sexo e a sexualidade eram o tabu central do período vitoriano, a morte e o morrer são o tabu do mundo moderno”. E cita o antropólogo britânico Geoffrey Gorer, “nossos bisavós ouviram que os bebês eram encontrados embaixo de arbustos de groelha ou de repolhos; nossos filhos provavelmente vão ouvir que os que faleceram (…) viram flores ou descansam em lindos jardins”.

O envolvimento profissional de Doughty com a morte surgiu da tentativa de superação de um trauma de infância. Aos oito anos, ela presenciou uma garotinha cair para fora da escada rolante de um shopping center. Doughty diz ter se traumatizado por nunca ter tido contato com a morte antes desse evento. Após o trabalho no crematório, ela cursou uma faculdade funerária em São Francisco e chegou à conclusão de que “quanto mais eu aprendia sobre a morte e a indústria da morte, mais a ideia de outra pessoa cuidando dos cadáveres da minha família me apavorava”. Essa consciência a estimulou a fundar sua própria casa funerária, a “Undertaking LA”.

Consciência funerária

Em entrevista à Folha, Doughty conta que a “Undertaking LA” é a única casa funerária sem fins lucrativos de Los Angeles, e afirma se preocupar em envolver as famílias nos cuidados com seus mortos. Ela organiza, por exemplo, workshops para os clientes saberem o que exatamente é feito com os cadáveres.

“Eu não concordo com os funcionários do ramo (tanatopraxistas, patologistas, funcionários do crematório) somente lidarem com os corpos mas nunca com suas famílias. Se você ignorar os vivos, a família enlutada, você pode perder de vista o fato de que cada corpo representa um ser humano com uma história”, conta.

Doughty relaciona os problemas da sociedade moderna com uma cultura que ela considera negar a morte: “Se não podemos aceitar que vamos morrer, não vamos aceitar que estamos matando o planeta. Não iremos aceitar que estamos destruindo espécies. E acabamos aceitando certos atos de guerra, terror e violência. Se a morte não é real para nós, vamos permitir que essas coisas continuem acontecendo”.

Agora, Doughty trabalha em seu próximo livro: sobre como revolucionar o setor funerário e define uma epígrafe para si: “Ela morreu fazendo o que amava: a morte”.

OBS: Esse texto foi publicado na “Ilustrada” em 20.08

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De Shakespeare a Cervantes: A Morte na Literatura https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/06/23/de-shakespeare-a-cervantes-a-morte-na-literatura/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/06/23/de-shakespeare-a-cervantes-a-morte-na-literatura/#respond Thu, 23 Jun 2016 13:44:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=974 O leitor Pedro Del Mar enviou ao blog um artigo que escreveu sobre morte na literatura. Pedro mora em Salvador, é repórter e colunista. Publica textos em seu site pessoal e mantém uma coluna no portal Cabine Cultural.

Pedro nos escreve sobre a morte na literatura, passando pela melancolia de Moacyr Eclair à interpretação da alegoria da morte presente no Dom Quixote de Cervantes.

Lembrei das últimas palavras de Hamlet – “O resto é silêncio”, e da ótima palestra de Leandro Karnal “Hamlet e o mundo como palco“. A morte me remete mais a um grito surdo do que um silêncio em si.  Como aquela famosa imagem de Edvard Munch (O Grito), colorida e assustadora, atraente e repulsiva. Pedro descreve seu medo da morte dessa forma antagônica, “assim como o mar, sua imensidão e seus mistérios, a morte me provoca dualidades aparentemente paradoxais de sentimentos: temor e atração, receio e sedução, desdém e respeito”. Esse medo faria parte de sua personalidade “estranha”, de alguém que não consegue encontrar seu lugar no mundo. Algo que percebeu na adolescência, mas na época ele achava essa característica ruim e hoje em dia não acha mais. Tenho convicção que de perto ninguém é normal. Os protagonistas dos nossos filmes prediletos estão aí para comprovar que gostamos de ver pessoas estranhas porque, no fundo, nos sentimos assim, uns esquisitões cambaleando por aí em busca desse “lugar no mundo”, dessa referência externa que nos traga algum conforto para a agonia de estarmos diante de um postulado impossível – que é a vida. Boa leitura.

Leia também: Marketing da morte

Veja o especial da Folha sobre os 400 anos da morte de Shakespeare e Cervantes

Leia mais na categoria “arte e morte” do blog – na aba lateral dentro de “categorias” ou clique aqui.

“De Shakespeare a Cervantes: A Morte Na Literatura

Por Pedro Del Mar

Desde muito cedo, e quase cotidianamente, penso na morte. Ou melhor, nas mortes. Na minha, na de pessoas próximas, na de estranhos, na de animais, na morte em sua plenitude. Não sei exatamente o porquê. Certamente, por uma natural dose de medo, mas não só. Outrora, achava que essa peculiaridade era formadora da minha personalidade “estranha” de um adolescente que ainda não achara seu lugar no mundo. A adolescência passou, eu continuo sem achar meu lugar no mundo – e isso não é necessariamente um problema – e continuo a pensar em morte. Ou a “estranheza” me acompanhará por toda a vida, ou talvez pensar em morte não seja assim tão estranho. Assim como o mar, sua imensidão e seus mistérios, a morte me provoca dualidades aparentemente paradoxais de sentimentos: temor e atração, receio e sedução, desdém e respeito.

Nasci em uma família de espíritas, filho de mãe médium, criado sob a égide de uma cultura onde ensina-se que a morte não é o fim, apenas uma etapa de uma missão maior. Naturalmente, espíritas e os demais que creem na reencarnação tendem a lidar melhor com a morte. Contudo, não sei se esse é o meu caso.

Como já tantas vezes dito aqui, a morte é o próximo tabu a ser quebrado pela minha e gerações seguintes. O primeiro é o sexo. Curioso constatar como a mais rígida das fronteiras se construiu no único elemento, até então, inadiável, irremediável e inescapável para absolutamente todos os seres vivos. Nos idos da década de 90, Renato Russo já cantava “viver é foda, mas morrer é difícil”.

O medo da morte tem lá suas vantagens. Temê-la nos impulsiona (ou deveria) a viver mais e melhor. Quantas pessoas vocês conhecem que após um grande susto, acidente, doença ou algo que o valha, decidiu reformular suas vidas a fim de aproveitá-las com mais qualidade? Nada mais comum. Talvez, isso se aplique ao medo de uma forma geral, não só da morte.

Como parte de um complexo processo psico-social, entre medo e curiosidade, sempre busquei, essencialmente na literatura e no cinema, formas de entender e conviver com a ideia e materialidade da morte. Ler me fez perceber, ainda na adolescência, que do ponto de vista médico e biológico, a morte é um processo uno, padrão, no Brasil ou na China, em Porto Alegre ou em Jacobina, a morte sempre se dá mesma forma: algo que acomete uma ou mais funções vitais do corpo. Entretanto, no plano da cultura (conceito antropológico) e dos costumes, a morte assume as mais diversas formas, funções e consequências. Se para a maioria de nós, ocidentais, a morte é um marco difícil e triste, em outras culturas ela é um elemento festivo e de comunhão.

Ler também me fez notar que a morte não anda sozinha. Em nossa cultura, onde a morte foi sacramentada como o fim da linha, ela vem acompanhada da melancolia. A melancolia, aquele que até o feudalismo, pré mercantilismo e revolução burguesa, era um sentimento estritamente europeu, desconhecido dos outros povos, como bem observa o médico e escritor gaúcho Moacyr Scliar, no livro “Saturno nos Trópicos, a melancolia europeia chega ao Brasil”. Hoje, a melancolia nos é tão íntima e companheira que parece uma nativa forjada nas praias tupiniquins. Aliás, o sentimento melancólico pós-morte de um ente querido é uma das muitas imposições da nossa cultura. Ai daquele que ousar não se deprimir.

No capítulo IX de Don Quixote, Cervantes descreve o encontro de Sancho Pança e Don Quixote com uma carruagem na estrada: “A primeira figura que se ofereceu aos olhos de Don Quixote foi a própria Morte com rosto humano; junto dela vinha um anjo com grandes asas pintadas; ao lado estava o imperador, com sua coroa, aparentemente de ouro, na cabeça; aos pés da Morte estava o deus chamado Cupido, sem venda nos olhos mas com seu arco, seu carcás e suas flechas; vinha também um cavaleiro…”. Nesta alegoria, observa-se, como bem destacou Scliar, que é a morte quem chefia a caravana, com um anjo, representando o poder celestial, do lado, e o imperador, representando o poder terreno, do outro. Atenta-se ainda para o fato de que o amor, representado pelo Cupido, não governa a carruagem, ao contrário, vive aos pés da Morte. Ainda, Cervantes retira as vendas dos olhos do Cupido – o amor é cego – em uma clara mensagem: diante da Morte, assim, com M maiúsculo, os olhos se abrem para uma realidade brutal. Seria esta alegoria uma descrição da vida? Só Miguel poderia nos responder.

Em Hamlet, de Shakespeare, o tema da morte, através da ótica suicida, aparece nas palavras de Macabeth da seguinte forma:“vale a pena lutar contra um mar de adversidades para manter a vida, essa história contada por um idiota, cheia de som e fúria?”.

Pensar a morte é também pensar a vida. É refletir sobre um destino certo, embora sem data marcada. Saber que vamos morrer, mas não quando, exerce um papel singular na dinâmica que faz a roda girar. Viver sob o signo desta incerteza, confere a vida um tom de adrenalina e excitação, em outras palavras, é a morte que (re) significa a vida (? ). Para Montaigne, filósofo francês,filosofar é aprender a morrer”. Filosofemos então”.

Pedro Del Mar, 25 anos, repórter e colunista.

 

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“Don Quixote” – desenho de Pablo Picasso (1955)
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Por que não me mato? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/03/17/por-que-nao-me-mato/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/03/17/por-que-nao-me-mato/#respond Thu, 17 Mar 2016 11:58:03 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=866 Inaugurando a série de artigos e depoimentos enviados por leitores, segue ensaio escrito pela jornalista e mestre em semiótica Lídia Zuin.

Por que não me mato?

Um ensaio sobre o tédio pós-moderno e a morte como força criativa.

 

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Faz quase quatro anos que Lars Von Trier lançou seu filme Melancholia. E também faz mais ou menos esse mesmo tempo que venho batalhando contra (e através) do conceito de morte. Talvez até pudesse dizer que isso tem me assombrado desde então, mas parece que esse fantasma finalmente se tornou um tipo de companhia. Por bem ou por mal, nunca saí do primeiro estágio do modelo de Kübler-Ross, que é a negação, e apesar de eu ter passado por períodos de fúria, nunca barganhei nada ou me senti em um verdadeiro estado depressivo causado pela morte de alguém. Eu simplesmente nego. Questiono. Desafio.

O presente ensaio tem como base e inspiração dois dos textos inseridos no livro Da Religiosidade. A literatura e o senso de realidade (Editora Escrituras, 2002), de Vilém Flusser. O artigo “Em louvor do espanto” sugere que a principal pergunta feita por Albert Camus em O Mito de Sísifo (1942) teria sido “por que não me mato?”. E, com base nisso, o filósofo tcheco-brasileiro disserta sobre a capacidade do homem primitivo em se surpreender com tudo aquilo que encontrava no mundo, sobre como criaturas e objetos eram adorados de maneira quase religiosa. De certa maneira, isso também acontece com um recém-nascido, conforme este vivencia o mundo ontologicamente da mesma forma que a espécie humana o fez fenotipicamente ao longo de sua evolução. Em outras palavras, a pergunta a ser feita não é “por que não me mato”, mas sim “como posso sobreviver”.

Em todo caso, isso aconteceu há muito tempo. De acordo com Flusser, estamos vivendo em tempos blasé: estamos entediados e nada nos surpreende mais, já que nada é novo. “Não estamos jogados no meio das coisas, mas no meio de instrumentos. Esses instrumentos são, no fundo, prolongamentos e projeções do nosso próprio eu”, argumenta o autor, ao mesmo tempo em que reforça a teoria midiática de Marshall McLuhan sobre como os meios são extensões do homem.

As máquinas são nossos braços prolongados, os veículos nossas pernas prolongadas, e o mundo em geral é uma projeção do nosso eu sobre a superfície calma e abismal do nada.

Flusser defende que as imagens digitais são, na verdade, mídias imateriais. Enquanto meios tradicionais como a pintura e a escultura possuem um suporte palpável e em três dimensões, imagens digitais seriam apenas abstrações criadas a partir de números (dígitos, conjuntos de zeros e uns). Elas não fazem parte do mundo tridimensional dos corpos, nem mesmo do mundo bidimensional das imagens tradicionais ou do mundo unidimensional (linear) da escrita. Isso significa que as imagens digitais existem em um espaço nulodimensional preenchido de vazios: um infinito e crescente abismo de abstrações.

À medida que criamos e replicamos nossas extensões, tudo parece se transformar em matéria-prima em vez de se manter como objeto: “Os trovões que ainda trovejam são movimentos do ar projetados por nós para carregar nossos aviões em seu voo fútil. As árvores que ainda brotam são matéria-prima projetada para se tornar instrumento. E os ‘outros’ com os quais dividimos esse mesmo mundo instrumental, eles são, eles mesmos, um instrumento enquanto fornecem ou consomem, enquanto cooperam ou competem”.

Nossa atitude diante desse mundo dos instrumentos é a atitude do déjà vu, a atitude do “já vi tudo”.

Talvez seja por isso que argumentos nostálgicos e comparativos ainda pareçam justos o suficiente para continuarem sendo usados com tanta frequência. Com o passar do tempo, parece também que nos tornamos mais velhos e mais ranzinzas em intervalos cada vez mais curtos. Vejo pessoas de vinte e tantos anos reclamando de adolescentes de dezessete da mesma forma que nossos pais ou avós fazem conosco. Pode ser que isso esteja relacionado à grande velocidade com que a tecnologia vem evoluído, já que a Lei de Moore parece mesmo se aplicar. Há algumas semanas, talvez você não fosse capaz de fazer certas coisas tão facilmente quanto pode agora que seu aplicativo foi atualizado. E assim por diante…

Os instrumentos não nos advêm da penumbra misteriosa, não são venturosos. Pelo contrário, estão aqui, diante da nossa mão para servir-nos. Tomados de nojo dessa servilidade somos nós que saímos em busca desesperada da aventura, desautenticando, por esse nosso movimento deliberado, a própria essência da aventura, que é um “advir”, e não um “ser buscado”. Essa nossa busca inautêntica de aventura, que é no fundo uma fuga do tédio, e que caracteriza tão bem a situação atual, é já uma tentativa fracassada de responder à pergunta “por que não me mato?”.

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“O caos reina”. Antichrist (2009), de Lars Von Trier

Mundo em desencanto

O progressivo uso e produção de instrumentos estão matando o sentimento religioso. Enquanto o homem primitivo não era capaz de entender a origem das coisas (natureza), tudo era visto como sagrado. Mas, agora, instrumentos podem preencher esse vazio e, assim, também matam o sagrado e geram banalidade. No melhor dos casos, somos capazes de ver instrumentos como representações do trabalho manipulador que exercemos e, portanto, a única coisa que seríamos capazes de adorar neles é, justamente, o trabalho humano que há por trás. Porém, Flusser considera “nojenta” essa “adoração autoerótica”: “Não dá um autêntico significado à existência humana”. Então seria isso também uma crítica ao Ateísmo? Acho que não exatamente.

Em uma situação como essa, acabamos vítimas de uma busca constante por algo que possa nos surpreender novamente: procuramos algo que preencha nossas expectativas agora tão altas. Estamos atrás de uma “segunda ingenuidade”, uma forma completamente nova de enxergar o mundo e de se expressar por meio dele – tal como pretendiam os Surrealistas por meio de sua arte. Mas Flusser defende que todas essas tentativas são em vão: “A ingenuidade não é algo que pode ser procurado. Assim como a virgindade, ela não pode ser reconquistada”.

Face ao mar, por exemplo, não podemos reconquistar o espanto primitivo, porque não podemos suprimir, autenticamente, os nossos conhecimentos quanto ao conteúdo salino e iodino de sua água. Tendo sido elaboradas as tábuas das marés, nunca mais o mar poderá servir de berço a Afrodite, a nascida da espuma. Não é por esforço deliberado que poderemos reconquistar o espanto nem encontrar um significado da existência humana. A transformação das coisas em instrumentos é um processo irreversível e as tentativas reacionárias de fazê-lo refluir estão fadadas ao malogro.

Quanto mais manipulamos a natureza na intenção de produzir instrumentos, menos ela nos parece deslumbrante, assustadora ou espantosa. Apesar de continuar sendo uma força que não podemos controlar totalmente, nós já a “domesticamos” até certo ponto – da previsão do tempo ao reflorestamento, dos transgênicos aos membros prostéticos. Com isso em mente, será que estamos mesmo tão entediados em um mundo de constantes descobertas científicas e tecnológicas? Provavelmente não. O que talvez ainda nos aborreça seja o fato de que estamos vivendo em uma transição de épocas e nos encontramos bem no meio desse processo, como aponta Flusser: “Esse tédio de fin de siècle nos faz perguntar: ‘por que não me mato?’. Mas sentimos as dores de parto de uma Idade nova”.

Apesar de a natureza ter sido (em parte) esvaziada pela ciência e pela tecnologia, há ainda um novo encanto a ser descoberto. De acordo com Flusser, o único risco que temos é o de que a ciência e a tecnologia se tornem “anti-intelectuais”. Para evitar, nossa geração tem a tarefa de fazê-las “intelectuais”, já que tal atitude poderia nos conduzir também à resposta para a infame pergunta “por que não me mato?”. Contudo, este é um trabalho que exige o espanto, como explica Flusser ao citar Aristóteles: “Propter admirationem enim et nunc et primo inceperunt homines philosophari” (É pelo espanto que os homens começaram a filosofar antigamente e hoje em dia).

Morte fértil

Por outro lado, será que não podemos afirmar que o fato de que continuamos vivos, mesmo sabendo que iremos morrer, não é algo surpreendente? Em “O tema exclusivo”, artigo que sucede “Em louvor do espanto”, Flusser explica:

Viver é fazer algo a despeito da evidente futilidade de tudo. Viver é portanto tentar negar a futilidade evidente de tudo. E por que é evidente essa futilidade? Pela morte. Viver é tentar negar a morte. Viver é fazer de conta que não há morte. Mas há. Não é isto espantoso? Sugiro ao leitor que a morte é o tema exclusivo e universal da vida. É portanto um tema sussurrado.

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Melancholia (2011), de Lars Von Trier

Criamos valores para que possamos encobrir e superar o tema da morte. Nossa sociedade está constantemente tentando negar a morte ao inserir valores e significados a objetos, instrumentos, pessoas, ações e emoções, à vida – isto é, a tudo aquilo que, a princípio, não significa nada. Mas é quando alguém decide sair do jogo, ao cometer suicídio, que nós novamente tentamos encontrar uma justificativa, uma explicação para o que é a morte.

Essa morte que admitimos e discutimos já é a negação daquela morte que negamos, e é justamente por isso que a admitimos. A morte que negamos é indiscutível. Não pode ser enquadrada no contexto biológico, ou psicológico, ou teológico, ou qualquer outro contexto, já que todo contexto é uma tentativa de negá-la. A morte admite somente duas atitudes: negá-la e continuar representando, ou aceitá-la e cair no mutismo.

Talvez seja por isso que eu nunca cheguei ao estágio da “aceitação” do modelo de Kübler-Ross. Continuo negando a morte enquanto, ao mesmo tempo, tento encontrar suas representações por meio da arte, da música, filmes, filosofia, tecnologia e assim por diante. É por isso que estou incluindo imagens de filmes de Lars Von Trier ao longo do texto. Além de ser um dos meus diretores preferidos, sinto que algumas de suas obras (especialmente Melancholia) nos fazem mais próximos desse inatingível e ininteligível conceito de morte. E isso é simplesmente absurdo.

Se me levanto da cama, se me visto, se tomo café e vou trabalhar, é que nego que vou morrer e faço de conta que sou eterno. Não fosse essa minha negação, ficaria na cama. Já que vou morrer, diria, tanto faz morrer hoje, ou amanhã, ou daqui cem anos, e ficaria na cama. A negação da morte dá portanto não somente significado à vida em geral, mas a cada vivência individual, a cada ato meu. Mas a negação da morte dá esse significado somente porque se sabe a si mentirosa. Se fosse honesta essa negação, se realmente estivéssemos convencidos de que não há morte, não levantaríamos da cama, exatamente como não levantaríamos se não tentássemos negá-la. Se realmente não há morte, se o meu futuro é ilimitado, então nada tem urgência, nada precisa ser feito agora, o que equivale dizer que nada precisa ser feito nunca. Podemos portanto concluir desta primeira consideração que a urgência do instante (que é a própria essência da vida) é resultado de uma desonestidade: já que nada urge se aceito sinceramente a morte, e já que nada urge se a nego sinceramente, finjo negá-la e tudo urge. Em outras palavras: urge escrever esse artigo, e urge lê-lo, já que escrevê-lo e lê-lo nos torna ainda mais imortais que somos, já que poderíamos morrer antes de escrevê-lo e lê-lo.

Dar urgência e significado à vida é uma desonestidade para Flusser. Mas, curiosamente, para Camus isso é honesto. O autor francês acreditava que aceitar a morte e continuar vivendo apesar disso é uma decisão honesta. Flusser argumenta que tal atitude seria justamente o contrário já que, em todo caso, estamos ainda mentindo.

Admito que vou morrer, e o admito não apenas em teoria como figura de retórica, mas compenetro-me vivencialmente desse fato, incluo a morte em cada instante. Todo meu instante passa a ser final e definitivo, passo a viver à bout de souffle. Nessa situação todos os supostos valores da humanidade se apresentam para mim como mentirosos, e toda conversação a respeito deles como conversa fiada grandiloquente destinada a fazer esquecer a morte. As religiões, as artes, a ciência e a filosofia são outras tantas figuras inautênticas e pretensiosas, já que supõem que buscam ‘uma vida melhor’, quando, na realidade, o que buscam é escapar à morte. Toda essa conversa fiada de uma “vida melhor” me enche de nojo, porque sei que se trata de uma mentira pomposa. Não é o caso de viver o melhor possível, mas simplesmente de viver o mais possível. Face à morte o que conta é a quantidade, e não uma suposta qualidade. A honestidade me força a admitir a vacuidade de toda moralidade.

Notícias recentes apresentaram uma conversa registrada com a inteligência artificial/chatbot do Google, na qual ela teria respondido a pergunta “Qual é o sentido da vida?” como “Viver para sempre”.

 

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Imagem de Her (2014), de Speke Jonze.

UntitledNão importa se você escolhe ser honesto ou não quando ambas as opções são fictícias. Aliás, face à morte, a liberdade não é nada senão uma ficção. Contudo, é somente por meio desse dilema que poderemos superar o absurdo que é a morte, como explica Flusser: “Face à morte não podemos fingir, e todo esse processo chamado ‘vida’, e seu epifenômeno chamado ‘pensamento’, é portanto fictício. No entanto, com esta afirmativa estamos nos aproximando, quer me parecer, da chave do dilema”. Isso nos leva à conclusão de que a morte é o tema exclusivo da vida, apesar de negá-la, e a vida é o tema exclusivo do pensamento, apesar de também a negar.

A vida faz de conta que é imortal, embora surja da morte, desemboque na vida, e seja permeado por ela. O pensamento faz de conta que é autônomo e ontologicamente primário, embora surja na vida, desemboque na vida, e seja permeado por ela.

Tanto Edgar Morin quanto Vilém Flusser sugerem que humanos são os únicos seres vivos cientes de sua própria morte. “O saber da morte me parece ser o traço distintivo do homem. O que equivale dizer que o homem é um ser irônico”, aponta o último. Abandonamos portanto a nossa animalidade ao nos definirmos como seres pensantes, e assim também negamos a forma como os animais vivem: eternamente, apesar de seus atos serem uma defesa contra a morte (instintos).

Ainda assim, Flusser defende que a vida animal não deixa de ser uma ficção profundamente séria, um teatro triste. Por outro lado, nossa capacidade de pensar acaba nos tornando uma simples paródia desse teatro, conforme desafiamos a morte a partir da ironia. “[O homem] ousa sorrir da vida e da morte. É um ser lúdico, brinca com a vida e com a morte”. E fazemos isso simplesmente ao pensar, o que significa que também acabamos provocando a morte, como se perguntássemos “onde estás, morte?”.

Enquanto que a vida se esconde da morte, tremendo, o pensamento sai em busca da morte, desafiando. É verdade que, se a vida não consegue escapar à morte, tampouco consegue o pensamento encontrá-la. Ambos, a vida e o pensamento, são processos absurdos. São, como disse, fictícios. Fazem de conta que há liberdade em face à morte. Mas o clima de ambos esses processos é radicalmente diferente. O clima da vida é, fundamentalmente, o da angústia, enquanto que o clima do pensamento pode ser, se cultivado, o do sorriso.

Pensamento que desafia

Se, por um lado, o Existencialismo entende o pensamento como um meio de combater a morte, Flusser propõe que este seja um meio de conspirar contra a vida e de revelar a morte. Se a vida é uma mentira que contamos todos os dias, com a finalidade de esquecermos da morte, o pensamento poderia servir como um constante memento mori: lembre-se de que irá morrer e que, por esse mesmo motivo, não deve se esquecer de pensar a respeito. Por isso, não sei se a filosofia, a arte, a ciência e a tecnologia podem ser sempre consideradas uma fuga da morte, mas sim poderiam ser vistas como maneiras de compreendê-la.

Tome Melancholia como exemplo novamente. Diante da inevitável colisão entre o planeta Melancholia e a Terra, o que nos resta? Todos os personagens do filme, mesmo quando não cientes disso, têm sua posição (e caráter) definidos: Justine (Kirsten Dunst) aceita a morte enquanto Claire (Charlotte Gainsbourg) a nega até o final. Ao aceitar a morte, Justine nega a moralidade (casamento, laços familiares etc) e cai em depressão profunda. Ao negar a morte (ou fingir que a nega), Claire reforça todas as convenções sociais e, ainda assim, vê-se miserável.

Apesar de Justine parecer mais honesta, é por meio da desonestidade que Claire enfrenta a (consciência de) morte. No fundo, ela sabe que a destruição da Terra é iminente e inevitável, mas ainda assim não deixa de se recusar a aceitar o destino ao pesquisar sobre o planeta, ao questionar seu marido e ao continuar checando a proximidade do corpo celeste regularmente. No fim das contas, ambas as irmãs acabam na mesma cabana simbólica (a ficção) que Justine costumava montar para fazer seu sobrinho se sentir mais seguro. Ainda que sempre estivesse a par da morte próxima, a personagem não consegue evitar o medo e a angústia durante os últimos segundos que antecedem o impacto – ela, inclusive, participa do ritual ao dar as mãos para o sobrinho e a irmã.

Talvez o planeta Melancholia não fosse uma metáfora da morte e sim da depressão, como já vi interpretarem, mas o filme, para mim, sustenta a ideia da morte como uma força criativa em dois níveis diferentes: como inspiração e como tema. Tanto o enredo gira em torno da morte (Melancholia) quanto a morte gira em torno da criação de um filme que, em última instância, quer desafiar a vida ao revelar a morte.

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Ophelia (1852), de John Everett Millais.

Com isso posto, ainda me resta responder a pergunta “Por que não me mato?”. Talvez eu simplesmente não sinta vontade de fazer isso. Porque, afinal, a morte é o que me mantém viva e o que dá sentido à minha vida. Aliás, essa foi a mesma questão que o filósofo romeno Emil Cioran se fez por anos. Apesar de o suicídio ter sido um importante tema em sua obra, ele ainda assim não se matou. Na verdade, pensar sobre a própria morte era algo que o fazia bem. Em uma entrevista para Fritz Raddatz, em 1996, Cioran afirmou:

Na minha juventude eu vivi todo dia com essa ideia do suicídio. Mas tarde também, e até agora, mas talvez não com a mesma intensidade. E se eu ainda estou viva é graças a essa ideia. Eu só pude suportar a vida graças a ela, ela foi meu suporte: ‘És mestre de tua vida, podes matar-te quando quiseres’, e todas as minhas loucuras, todos meus excessos, foi assim que eu pude suportá-los. E pouco a pouco essa ideia começou a se tornar algo como Deus para um cristão, um apoio; eu tinha um ponto fixo na vida

Por fim, eu ainda poderia listar vários outros exemplos de como a morte serviu de inspiração para outros pensadores e artistas, sem que estes caíssem na armadilha que Flusser chamava de “mutismo” – depressão, torpor, apatia. Mas será que este ensaio não é afinal uma investida metalinguística de qualquer forma? Talvez todas essas tentativas sejam uma prova de que artistas e pensadores nunca realmente aceitaram a morte, mas a negaram a ponto de fazê-la seu tema durante a vida. Como citado por Flusser, Rainer Maria Rilke já defendia: “Der Tod ist gross. Wir sind die seinen lachenden Munds” (A morte é grande. Nós somos suas bocas sorridentes).

OBS: esse ensaio foi escrito originalmente em inglês para o site medium.com/lidiazuin. Contato direto da autora: lidiazuin@gmail.com

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Lidia Zuin – arquivo pessoal

 

 

 

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Para além dos cem https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/24/para-alem-dos-cem/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/24/para-alem-dos-cem/#respond Wed, 24 Feb 2016 11:38:14 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=844 O mito de Titono fala sobre um fulano que foi presenteado com a vida eterna, mas não ficou tão feliz assim devido a um pequeno detalhe. A dádiva foi uma conquista de sua amada Aurora (Eos da mitologia grega, deusa do amanhecer) que, apaixonada por um mortal, intercedeu junto a Zeus pedindo a tal da imortalidade. Mas ela esqueceu de pedir também a eterna juventude. Titono foi envelhecendo até virar putrefato e sem movimentos. Aurora trancou o ex-amado num quarto escuro para não ser mais obrigada a olhar para ele.

O avanço da tecnologia e suas aplicações médicas nos oferecem a possibilidade de imaginar um novo desfecho para Titono. Tocada pela situação de seu amado, Aurora intercederia junto ao deus Tecsus para que use sua tecnologia e imprima os órgãos 3D do seu querido, incluindo pele e ossos, com base na receita de seu DNA.

Impressões de órgãos podem não ser uma realidade tão distante. A “Scientific American” tem publicado artigos a respeito. Apesar de não ser uma possibilidade hoje, espera-se que em 2020 esteja despontando por aí. A empresa belga Materialise já disponibiliza algumas aplicações importantes para o uso de modelos de órgãos em 3D. Alguns cientistas falam em uploads de consciências em novos cérebros artificiais, como o popular expoente da ciência da computação, Ray Kurzweil. Ele acredita que alcançaremos uma imortalidade cibernética lá pelos anos 40. Kurzweil prevê que em 2029 já seremos parte humanos e parte máquinas, principalmente com o crescimento da nanotecnologia. Também diz não ter dúvidas de que um dia seremos imortais e de que vamos transferir o conteúdo do nosso cérebro para outro meio físico, como um novo hardware.

No futuro, poderemos ter corpos e mentes artificialmente projetados. Quem sabe, ser de carne e osso será comparado a selvagens indomáveis que precisam ser colonizados.

Se você pudesse escolher quantos anos deveria viver, qual número escolheria? 100, 105, 125, 150? Ou começaria com mil e conforme fosse se enfadando da vida iria diminuindo o número até chegar no zero? Aí, era só chegar numa clínica de “boa morte” e fazer com que a mente pare de funcionar numa viagem promovida a psilocibina e sem dor. Uma decisão racional, como a eutanásia e o suicídio assistido. Mesmo resultado, diferentes motivos.

Kurweil prevê, por exemplo, que em 2030, vamos criar avatares de pessoas que já morreram com as informações passadas em vida. Essa ideia foi desenvolvida num episódio da série “Black Mirror”, disponível no Netflix. No episódio, uma empresa cria réplicas dos mortos usando vídeos (para imitar sua voz, movimentos faciais e corporais), fotos e e-mails, toda informação deixada em vida para também reproduzir suas possíveis opiniões e decisões. Um grande desdobramento para essa inovação seria novos paradigmas para o desapego e o luto.

Se a eterna juventude fosse então possível, haveria um momento em que Titono decidiria morrer por conta própria? Cansado de Aurora e dos deuses eternos do Olimpo, ele diria um basta por estar exaurido nem tanto dos outros, mas de si mesmo. O tédio tomaria conta de Titono. Até que um dia, ele subiria no alto de um precipício, arrancaria a própria pele e sairia voando.

OBS: Esse é o centésimo post do blog “Morte sem Tabu”, que segue sua trajetória para além dos cem….

 

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Foto do pinterest: https://www.pinterest.com/XElenaX/tim-burton/

Vídeo: Você viverá o suficiente para viver para sempre? Ray Kurzweil

 

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Marketing da morte https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/11/19/marketing-da-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/11/19/marketing-da-morte/#respond Thu, 19 Nov 2015 10:16:08 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=751 Quem trabalha com propaganda e marketing já sabe de cor os pilares para uma boa campanha. Alguns deles podem ser intuitivos e baseiam-se numa retórica bem construída.

O discurso é um espaço que orienta o pensamento e a imaginação para determinado rumo. Ele é acompanhado por uma sensação positiva de “insight”, satisfação, algo que se conecta com seu emocional por proporcionar o prazer de uma descoberta que a partir de então parecerá óbvia.

O filósofo Michel Foucault via o discurso como uma estrutura de poder internalizada. Seria um sistema de representações mentais, com regras, práticas e um conjunto de afirmações indicando o que tem sentido e o que não tem. O discurso oferece a linguagem apropriada para falar sobre determinado tópico, em um determinado contexto histórico.

O discurso ideológico governa a forma como um tópico pode ser significativamente discutido, implicando o que está excluído dele, aquilo que não pode ser falado ou feito.

De certa forma, ao defender um discurso nos tornamos dependentes de seu dogma pelo vazio que seu questionamento traz. Esse vazio é um abalo emocional que muitos não estão a fim de encarar. Apoiar-se em determinada retórica é dar algum sentido e prazer à uma vida que se depara com tanta vulnerabilidade, resultante de insegurança financeira, familiar e corporativa. Resultante da insegurança de uma forma geral, pois nem com a vida podemos contar, porque um dia ela acaba.

Não sabemos ao certo o quanto somos determinados por fatores biológicos e o quanto somos frutos de uma cultura (no sentido de uma rede de símbolos, significados e representações). O sociólogo Émile Durkheim diz que o indivíduo não tem capacidade de pensar como um ser isolado, mas somente como um membro social (determinismo social).

O mais provável é sermos definidos pelos dois numa relação mais complexa do que a mera submissão de um ao outro. No entanto, há algumas características que podem ser vistas como biológicas. O antropologista Maurice Bloch diz que uma delas é a habilidade nata de procurar sempre classificar o mundo ao redor. Nessa busca por classificação, fabricamos verdades.

Se verdades são construídas, elas têm o poder de servir tanto o “bem” quanto o “mal”. E é nessa distinção entre bem e mal, vítima e vitimizado que nos apegamos para dar algum sentido ao terror de ações violentas e brutais.

O historiador Leandro Karnal comenta, na palestra “Hamlet e o mundo como palco”, que uma característica fundamental desse personagem de Shakespeare é perceber a corrupção não mais como privilégio de um determinado grupo, mas como característica de todos os grupos e também presente nele mesmo. Ele encontrou a corrupção no leito de sua mãe (amante de seu tio) percebendo o que Leandro chama de “a microfísica do poder”. A corrupção começaria em nossos pequenos atos, como andar no acostamento, e teria como desdobramento máximo, a ponta do iceberg, a corrupção enraizada em um partido, em um governo, em um poder, em todos. Haveria uma ingenuidade em acharmos que se eliminando as pessoas que são “do mal” seremos felizes.

Leandro também diz que Hamlet é o primeiro homem a agir de acordo com a razão, seguindo seu eu racional e não a metafísica. “A glória e a tragédia do nosso tempo é exclusivamente a nossa crença profunda no eu. E o primeiro ser que proclamou o eu como elemento fundamental do mundo é Hamlet”, diz.

Horror voyeurístico

Thiago Sarkis*, psicanalista de Belo Horizonte já entrevistado no blog em “A Era dos Adictos”, considera um ciclo vicioso na nossa forma de reagir a ataques terroristas. Para ele, “estamos agindo apenas quando o que nos resta como ação é a guerra, ou seja, apenas quando só nos resta entrar no mesmo circuito de barbárie e carnificina no qual entraram os terroristas”.

 Haveria outras possibilidades de reflexão, ação e escuta para minimizar eventos de extrema violência – não só os ataques terroristas, mas também a propagação assustadora de assassinos em massa, grupos como o Estado Islâmico ou mesmo a selvageria que parece fugir ao controle no cotidiano da sociedade.

“A possibilidade de minimização – não eliminação, porque isso não ocorrerá – de cenários como estes está bem antes da chegada de um rapaz de 23 ou 26 anos na Síria pronto para uma ‘Guerra Santa’. Ela passa necessariamente por abdicarmos de leituras e escutas superficiais e maniqueístas que apontam o problema no outro e nos afirmam sãos; reside em abdicarmos de nosso arrebatador narcisismo e praticarmos uma escuta mais atenta e cuidadosa – do outro e de nós mesmos”, afirma o psicanalista.

Em algum grau, nós também repetiríamos a leitura “maniqueísta” que faz o terrorista, porém sem sairmos matando como estes grupos fazem. Segundo ele, após atentados como os ocorridos recentemente em Paris, imediatamente montamos discursos que determinam ‘monstros’ e ‘inimigos’ e criam identidades precárias que nos afirmam como “vítimas”, “solidários” e “não-monstros”, formatando assim uma batalha “humanidade x inumanos”, “bem” contra “mal”.

Esse discurso teria sentido e importância apenas num primeiro momento. “Inicialmente, é um processo fundamental. Afinal, encaramos uma dor dilacerante, um luto terrível e precisamos elaborar isso, tentar dar um sentido, amenizar o sofrimento que nos acomete. Contudo, após a poeira baixar, é importante também sair disso. Dizer que um terrorista não é humano ou que o ato do terrorista não é humano, como o Papa fez, é um equívoco… Um imenso equívoco. O terrorismo é sim humano, porém trabalhamos duramente, cada um de nós, para contê-lo em nós mesmos, assim como tentamos nos conter com nossa corrupção, intolerância, brutalidade, dificuldade de lidar com alteridade, agressividade etc. Entretanto, o fato é que o microcosmos do EI se manifestam em nós –  diariamente no trânsito, em casa, em nossos relacionamentos –, só que usualmente não surgem de maneiras tão gritantes e chocantes quanto às dos terroristas. Enfim, o EI explicita o que contemos, o que temos de mais rústico em nós. A civilização é uma conquista para nós mesmos, mas contra nós mesmos; não é nosso ponto de partida”, pondera Thiago.

 Para o psicanalista, nossa participação nisso tudo é não permitirmos, nem lidarmos com qualquer coisa que fuja de nosso ideal civilizatório. Não damos, assim, tempo para a escuta da dor e para o entendimento dos sintomas antes que eles tomem dimensões mais dramáticas. Essa questão da escuta seria fundamental, pois seria ela o que, segundo ele, abriria o caminho para a linguagem e poderia, assim, contribuir para que os sujeitos destes atos atrozes partissem para “ações menos miseráveis do que comunicados brutais e sem palavras”.

 Thiago complementa: “O terrorismo na verdade propaga o terror tanto para o autor do ato quanto para o alvo: para o terrorista, o terror de novamente ser um à margem, visto como monstro, como a negação da vida e dos valores de uma civilização da qual ele discorda, mas da qual adoraria fazer parte caso alguns vários pontos fossem mudados e adaptados à sua maneira (despótica). Para os alvos do ataque, nós inclusos (em horror voyeurístico acompanhando cada notícia, rumor, imagem), o terror vem pela presentificação inequívoca da morte e do desamparo, o que descontrói os frágeis sustentáculos simbólico-imaginários que nos escoram em um dia a dia ensandecido cheio de sentido para a vida – sentido que o terrorista faz desmoronar; amarras simbólico-imaginárias que desabam com a onipresença da morte e a exposição às mais evidentes marcas de nosso desamparo”, conclui.

* Thiago Sarkis é membro supervisor da CAPA, instituição internacional de psicanálise.

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Obituários: resolvendo o mistério de uma vida https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/07/13/obituarios-resolvendo-o-misterio-de-uma-vida/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/07/13/obituarios-resolvendo-o-misterio-de-uma-vida/#respond Mon, 13 Jul 2015 12:14:30 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=583  

“Doce cantora com cheiro de mel”, “Médico brincalhão especializado em plásticas”, “Rigorosa professora de história de Araraquara”, “Seu Zé: o sorridente mestre da pizza paulistana” são alguns dos títulos dos obituários publicados diariamente numa coluna do caderno Cotidiano desta Folha.

   É um desafio definir uma pessoa em uma linha. Normalmente, os títulos remetem à função que o falecido exercia na sociedade, sua contribuição, sua produtividade. O que me leva a pensar que aquela crise pré-vestibular da escolha da faculdade, da nossa especialização no mundo, possa ser, em última instância, uma escolha enlutada. Decidimos seguir a vida com um codinome que será lembrado na nossa morte e poderá resumir o legado deixado.

   Mas ele não vem só acompanhado de uma tarefa a ser cumprida, seja entreter os outros, curar, educar, alimentar, cuidar da casa e da família, ou gerar riqueza física ao sustentar outros empregos. Ele é seguido por um adjetivo, aquela palavra que nos faz imaginar como um médico se colocava no mundo (de forma brincalhona) ou como uma cantora se expressava e escolhia seu repertório. E no fundo, são eles que nos chamam mais a atenção. Você pode ter escolhido desenhar casas como sua tarefa principal do dia a dia, mas não será somente o resultado imediato delas que marcarão sua existência. E sim, a forma como você se relacionava com o outro.

   Lembro das palavras da médica Ana Claudia Arantes, durante uma palestra que assisti no Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), ao dizer que a essência do ser humano é a amorosidade. Sua afirmação surge de anos de experiência em acompanhar a morte de pacientes, como especialista em Cuidados Paliativos. Ela constata que seus pacientes, logo antes de morrer, sentem uma redenção ao amor. Como uma última chance de expressarmos quem realmente somos. E para ela, quem realmente somos é bonito, o que torna a última lembrança pacificadora e intensifica a vontade de uma homenagem ao morto.

   A publicação de um obituário é uma forma de homenagem e cabe aos jornalistas do caderno levarem esse desejo a cabo.

   Os títulos acima foram criados pelo jornalista Pedro Ivo Tomé, 28, que escreve obituários na Folha. Ele desenvolve mini biografias que podem ser vistas como verdadeiras pérolas literárias. Essa maior liberdade na escrita, em relação às reportagens tradicionais, é um dos motivos que faz Tomé gostar de seu trabalho.

   Ele diz que a escolha de quem será “homenageado” não é fácil, pois a demanda é grande. Muitas vezes ele precisa dizer não à família solicitante, principalmente quando a morte ocorreu há muito tempo e não há uma cerimônia próxima que possa servir de “gancho” para chamar o leitor – como a possibilidade de um amigo do falecido ficar sabendo sobre uma missa pelo jornal.

   O preconceito existe, segundo Tomé, mas não em relação ao trabalho em si. “Muitas famílias acham que eu estou ligando para vender anúncios de morte no jornal e mal sabem da existência de uma coluna diária”. Outra dificuldade é lidar com pessoas enlutadas, que além de exigir sensibilidade, podem não ajudar muito na apuração, por não se lembrarem de fatos memoráveis da vida do ente querido na hora da entrevista, afetadas por um sofrimento agudo.

   Ele já recebeu pedidos para verem a matéria antes da publicação, e quando nega  (devido à ética jornalista, como diz), algumas famílias negam a publicação. Por isso, ele já avisa no início da conversa que o texto só poderá ser visto impresso no jornal.

   Um aprendizado indicado por Tomé é a percepção de que uma família nunca está preparada para a morte, mesmo que o falecimento já seja esperado, pela idade ou por uma doença avançada incurável.

   “A consciência não tira o peso da morte”, é a sua conclusão. Mas captar a essência da vida seria um contraponto a essa consciência, pois pode fazer com que se aproveite melhor a vida, no sentido de relevar coisas de menor importância.

   Tomé não considera a coluna algo mórbido. “Só se fala sobre a morte no último parágrafo. Todos os outros são sobre a vida da pessoa.” Ele diz que seu trabalho o incentiva o olhar para sua própria vida e pensar se ele poderia entusiasmar um obituarista da mesma forma que ele se entusiasma por muitas das vidas que escreve. Mas considera que “todo mundo, no final das contas, tem uma história interessante. Até hoje, em muitos casos, eu me comovo.”

 Dois obituários reconhecidos internacionalmente são o da revista “The Economist” e o do jornal “The New York Times”.

   A escritora norte-americana Margalit Fox escreveu mais de mil obituários para o jornal “The New York Times”. “Quase todo dia eu recebo um mistério para resolver. O mistério sobre como uma vida foi vivida e o porquê daquela vida”, ela conta numa entrevista ao jornal em que trabalha.

   Fox comenta ser o trabalho mais estranho no ramo do jornalismo americano, mas um dos melhores. Sua escrita envolve a solução desse mistério – de como as pessoas caminharam em suas vidas, de A para B e daí para C, e o quanto desse progresso foi um produto do livre arbítrio ou resultado de destino puramente cego. E também como e por que incorporaram a era em que viveram. “Essa é, na essência, o profundo e agridoce prazer do trabalho – a chance de ver, através das lentes de uma história pessoal – como o mundo, para o melhor ou pior, chegou a ser do jeito que é.”

   Anne Wroe, escritora dos obituários da revista “The Economist” (que destaca uma página inteira ao final de cada edição para obituários), diz numa entrevista ao portal  The Hairpin que o trabalho significa mesclar a mente de um jornalista com a criatividade de um escritor. E coloca como a chave para um bom texto, não pensar em cronologias, mas sim em encontrar a essência de quem era aquela pessoa e o que era realmente fundamental para ela.

  Wroe destaca que muitas vezes mergulha no universo do retratado para entender como sua mente funcionava. Por exemplo, ao escrever sobre um carpinteiro obcecado por gavetas, ela aprendeu a fazê-las bem, para ficar tão apaixonada por essa atividade quanto o morto.

   “Eu nunca menciono como uma pessoa morreu porque eu não acho que seja importante. Eu acho que um obituário é uma celebração da vida”, conclui na entrevista.

   Alguns veículos assumem escrever biografias antecipadamente à morte, para o caso de pessoas muito conhecidas, que servirão de base para seu obituário.

  Sobre isso, escreveu Diogo Guedes no artigo “Quando o jornalismo utiliza a morte para falar da vida”: “Parece uma lógica cruel, mas se trata, em geral, de uma forma de respeitar figuras públicas, garantindo que o que será falado sobre elas será justo, preciso e único. O curioso é que, apesar dos textos ficarem lá prontos, as pessoas retratadas não podem ler o que será publicado depois da sua morte. Talvez porque quase ninguém está preparado para contemplar a sua imagem e, pior, a sua ausência no mundo”.

   Bruce Weber, escritor de obituários do “The New York Times”, comenta que, no caso de obituários adiantados, ele normalmente oferece à pessoa a possibilidade de uma entrevista. As reações são mistas. Alguns acham divertido, outros ficam horrorizados. E há aqueles que se empolgam com a possibilidade de oferecer uma “última palavra” – como um depoimento póstumo. Em qual desses você se classificaria?

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