Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A morte de Marília Mendonça no país que não aguenta mais perder ninguém https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/a-morte-de-marilia-mendonca-no-pais-que-nao-ageunta-mais-perder-ninguem/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/a-morte-de-marilia-mendonca-no-pais-que-nao-ageunta-mais-perder-ninguem/#respond Fri, 05 Nov 2021 21:58:07 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/marilia-mendonca-1-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2578 por Camila Appel, Jéssica Moreira e Cynthia Araújo

É inacreditável a precoce morte de Marília Mendonça, em acidente de avião na cidade Serra de Piedade de Caratinga, interior de Minas Gerais.

Nós, brasileiras e brasileiros, que vivemos um grande luto coletivo por conta da Covid-19, assistimos com o peito apertado e doendo as cenas que passam nesse momento na televisão. Mais um luto coletivo. Em um país que não aguenta mais perder ninguem, ainda em luto por grandes nomes da cultura brasileira como Aldir Blanc, Nelson Freire, Paulo Gustavo, Nicette Bruno, Tarcísio Meira,  Agnaldo Timóteo, Letieres Leite e Jaider Esbell. 

Marília Mendonça era mãe de uma criança de quase dois anos. Aos 26 anos, estava no auge de sua carreira. Cantora, compositora, ícone do feminejo, era a grande rainha da sofrência. Cantou muitas dores que nós muitas vezes sentimos e não conseguimos expressar. Ela ecoou nossos sentimentos de uma forma que sentíamos junto a ela.

Em meio à pandemia, Marília nos salvou muitas vezes, com suas lives que bateram recordes de audiência. Nos fez chorar, nos fez rir, nos fez sentir, mesmo quando tudo estava em uma eterna suspensão.

Hoje à noite, pelo menos 5 mil pessoas a esperavam para um show. Ela tinha mais de 35 milhões de seguidores no Instagram. Seguiam seu dia a dia. Amanhã acordarão sem ver uma atualização feita pela cantora.

Essas 35 milhões de pessoas testemunhavam cada passo de Marília. Onde ela estava, com quem, com qual paisagem acordava. Amanhã acordarão sem saber que paisagem é essa, se é que existe tal coisa.

Nos assustamos com a constatação mais seca que há: a morte pode vir a qualquer momento, para qualquer um. Ela não espera um filho crescer, um show acontecer. Não espera uma declaração de amor, alguém fazer as pazes, esclarecer confusão. O choque dessa morte também traz a urgência da vida.

A urgência de deixarmos de lado migalhas. O único pó que nos interessa é o das estrelas. Somos universo. E precisamos uns dos outros. Um abraço em cada um que está agora sentindo a dor dessa transformada em espetáculo público.

A morte de uma pessoa conhecida como Marília remexe também os nossos próprios lutos, os antigos, os recentes, principalmente nesse momento, que já estamos em um estado de fragilidade emocional diante de tantas mortes, nem sempre visibilizadas.

A cobertura da mídia confundiu a todos. No início, era um acidente com zero vítimas fatais, logo foi esclarecido que essa informação era mais um desejo do que realidade. Além de Marília Mendonça, seu produtor Henrique Ribeiro, seu tio e assessor Abicieli Silveira Dias Filho, o piloto e co-piloto do avião, os quais ainda estão preservando o nome neste momento.

A iminência da morte nos atinge de formas diferentes. Rejeitamos a doença, mas rejeitamos ainda mais a ideia de que as pessoas morrem sem qualquer preparação. Se temos medo da morte, temos pavor da morte repentina. Do fim abrupto e sem despedida.  

Sabemos que pessoas morrem o tempo todo, em todo lugar. Sabemos que estão vivas e que no segundo seguinte não estão mais.

Mesmo jovens. Mesmo jovens demais. 

Mesmo saudáveis. Mesmo saudáveis demais. 

Mas quem morre é sempre o outro. Até que não é mais.

(O Programa Conversa com Bial reexibe hoje (5), entrevista com a cantora Marília Mendonça. Logo após do Jornal da Globo)

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Chá virtual sobre perdas: ‘É preciso respeitar nosso estado de luto’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/11/02/cha-virtual-sobre-perdas-e-preciso-respeitar-nosso-estado-de-luto/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/11/02/cha-virtual-sobre-perdas-e-preciso-respeitar-nosso-estado-de-luto/#respond Tue, 02 Nov 2021 15:00:37 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/mirian-cha-luto-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2563 Você já imaginou tomar um café ou chá para falar sobre luto? Pensando que todas as pessoas em algum momento já viveram algum tipo de luto –morte de entes queridos, fim de relacionamentos, ou a mudança de trabalho– um chá sobre o assunto soa bem possível, não é mesmo?

Para ouvir histórias de perdas entre 2020 e 2021, a diretora teatral Mirian Fonseca lançou em suas redes sociais o convite “Vamos tomar um café/chá”, onde se coloca à disposição para escutar de maneira cuidadosa quem perdeu familiares e amigos nesse período.

Nesse tempo, Mirian perdeu o avô, uma tia, uma sobrinha e alguns amigos. Diante do próprio luto, e para tentar refletir e elaborar a dor, iniciou esse processo criativo sobre a temática junto a outros artistas.

Aluna do curso de Artes Cênicas – Direção Teatral da  Escola de Teatro da UFBA e artista colaboradora do Coato Coletivo, que pesquisa as interações entre arte e tecnologia na Bahia, a escuta integra o projeto “Dos que vão morrer aos mortos” e até o fim do ano irá se tornar um vídeo-art.

“Como parte do processo, resolvi convidar pessoas para tomar um chá virtual para compartilhar suas experiências de forma livre, me colocando à disposição através de uma escuta ativa e afetuosa”, conta. Para participar, é bem simples: envie um e-mail para mirian.fonseca97@gmail.com ou, então, uma mensagem em seu perfil no Instagram.

Mirian acredita que falar liberta e nos ajuda a entender os ciclos da vida. “Eu acredito que devemos celebrar a vida do outro, mas também devemos respeitar nosso estado de luto. Falar sobre o luto nos ajuda a entender que os ciclos se fecham, que há voos que não podem ser impedidos e que a vida é feita de encontros e despedidas. Sinto que a gente evita muito falar sobre esses momentos de passagens”.

Mirian ressignificou os próprios lutos ouvindo histórias de perdas/Arquivo pessoal
Mirian ressignificou os próprios lutos ouvindo histórias de perdas/Arquivo pessoal


Cada história é única

Até agora já ouviu 13 pessoas. As conversas são literalmente um chá virtual. A diretora artística convida a pessoa a estar com um chá, café ou água. “Sempre começa o encontro perguntando qual é a bebida que está tomando”.

Durante a prosa, Mirian escuta as histórias e também compartilha as suas, próprias. Em conjunto, pensam uma imagem que simbolize a conversa, sendo esta a figura que também irá compor o vídeo-arte produzido por Mirian.


O processo é permeado pelos mais diversos sentimentos, assim como o próprio luto. “Tive muitos momentos de riso com as pessoas,  momentos de lembrar das pessoas que se foram, com muito cuidado, com muito carinho. Há momentos tensos. Eu que choro ou a pessoa chora. Eu tô ali, com muita vontade de abraçá-la e digo isso a ela, que quero abraçá-la mesmo que seja virtualmente, para que ela se sinta abraçada”.

Em uma conversa, a pessoa narrou a perda de um parente, um jovem negro e trouxe e lamentou por ele não ter vivido seus sonhos. A imagem que sintetizou essa conversa foi a de uma árvore cortada.

“Eu fiquei pensando muito nisso, pensando nos meus irmãos, pensando sobre perspectiva e sobre quanto nós, pessoas negras também somos atravessadas. A gente não consegue falar, a gente não consegue lidar com isso. A gente também não entende esse processo de luto porque não aprendeu a lidar com nossas emoções”, diz.

Mirian não sabe com exatidão quando criou consciência da existência do luto. “Sou uma pessoa que já vivenciou inúmeras perdas (não apenas relacionadas à morte) desde muito nova, e nunca consegui falar abertamente sobre elas”. 

Nas sessões terapêuticas, percebeu que o psicólogo sempre utilizava a palavra luto para nomear situações e sentimentos. Seu interesse pelo assunto só aumentou.

No primeiro trabalho como diretora teatral, encarou o assunto de perto, já que o experimento cênico trazia o luto de mulheres negras que haviam perdido seus filhos para a violência policial.

Segundo o Atlas da Violência de 2021, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Entre os não negros (amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil.

“Fruto de uma pesquisa coletiva com o grupo de teatro do Instituto Federal da Bahia- Campus Simões Filhos, em ”Neides”, me interessava saber como as mães que tinham perdido seus filhos se sentiam, como era este luto”, conta Mirian.

O dossiê “A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil” aponta que as mulheres pretas vivem violência tanto no esforço quanto no isolamento e solidão para tentar proteger a vida de seus filhos. Por trás dos números, há também uma violência não letal, tanto no intuito de preservar a vida de seus filhos, quanto para recuperar a memória de jovens assassinados.

Mirian acredita que a morte de pessoas negras é muito banalizada na sociedade brasileira e, por isso, tem também refletido sobre necropolítica. Aqui no Morte Sem Tabu, falamos sobre isso ouvindo mães de vítimas da violência estatal e já explicamos como a necropolítica afeta de diferentes formas a população negra no país.

“Venho  também  buscando referências de outras mulheres negras  que falem sobre o luto para me guiar para e no meu trabalho em geral, venho buscando resgatar rituais de passagens muito comuns em interiores da Bahia que tem forte inspiração em rituais afro-brasileiros”, diz.

Mirian e o avô Nicolau/ Arquivo pessoal

A morte faz refletir sobre a vida

Foi apenas em 2018, com o falecimento de sua avó, que Mirian percebeu quanto a morte a fazia refletir sobre a vida, a família e os sentimentos que ficam quando alguém parte.

“Movida pelo desejo de me conectar com a pessoa que minha avó foi e de ouvir histórias de outras mulheres negras, dirigi em 2019 um experimento cênico onde reuni histórias de avós de quatro performers e da minha avó que já tinha partido para um outro plano”.

Nesse meio tempo, perdeu outras duas pessoas bem próximas, acumulando nela uma sensação de não compreensão sobre essas partidas. Em 2020, com a chegada avassaladora da pandemia, a ideia do luto a assombrou a tal ponto, que Mirian começou a ter medo de perder novas pessoas.

“Tinha muito medo de perder alguém neste momento, ao mesmo tempo que sentia um vazio gigante pelas perdas das outras pessoas. Vi relatos de muitas pessoas próximas que morreram de Covid-19”.

Ao fim de 2020, ela gravou um documentário com o avô de 92 anos para entender como uma pessoa idosa estava atravessando a pandemia diante do isolamento de amigos e família.

“Criei um vínculo inacreditável com ele e uns 20 dias depois (íamos continuar gravando), ele partiu, junto da família. Uns meses depois,  perdi uma outra tia e uma sobrinha. Foi daí que a perda da  morte começou a me atravessar de maneira muito mais avassaladora”.

Desde que começou o projeto, Mirian se sente atravessada. “As imagens que as pessoas atravessam meu corpo de forma única. Eu acho que isso é o ápice da performance, que é o ato de ritualizar e entender. Todas essas conversas vão se tornar imagens futuramente, e elas dizem muito. Dizem não só sobre mim, dizem muito sobre o coletivo. Eu acho que nesse período de pandemia, o luto é coletivo”.

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Esclerose Múltipla: luto, desafios e aprendizados de uma mulher negra https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/esclerose-multipla-luto-desafios-e-aprendizados-de-uma-mulher-negra/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/esclerose-multipla-luto-desafios-e-aprendizados-de-uma-mulher-negra/#respond Wed, 29 Sep 2021 20:36:02 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/ester-maria-esclerose-multipla-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2514 Psicóloga conta como foi descobrir e lidar com a Esclerose Múltipla em seu cotidiano e relações sociais.

Na manhã de 12 de outubro de 2016, a psicóloga Ester Maria Horta sentiu um desconforto na vista direita. Correu para um Pronto Socorro focado em oftalmologia. Descobriu que não havia nada nas retinas, mas um edema de papila, ligado diretamente ao nervo óptico. No neurologista, entendeu que o sintoma era um alerta para outra doença. Após diversos exames, o diagnóstico foi finalmente encontrado: Esclerose Múltipla (EM).

“Quando recebi o informe de que se tratava de algo neurológico que precisaria ser investigado, eu literalmente ‘gelei’. Foi um momento ali congelado, a vivência de uma pausa, de um fim. Lembro de sair da sala de exames e caminhar meio que fora do ar até chegar ao encontro do meu marido. Ele segurou minha mão e me acolheu. Era o que eu precisava. Era o sentimento de que uma nova jornada iria se iniciar”, conta.

De lá para cá, a psicóloga precisou se reinventar. Entendeu o processo de conviver com uma doença crônica também como um tipo de luto, que exige tempo para entender as mudanças.

“O luto, na perspectiva psicanalítica, é uma reação à perda de um ente querido ou de algum objeto de afeto que, neste caso, pode ser a própria saúde”, explica Ester. “Quando se recebe o diagnóstico de uma doença crônica – definida como uma doença de evolução lenta, com duração longa que, no geral, acompanha um paciente durante toda a vida – vivencia-se o luto pois perdeu-se aquele objeto amado, no caso a saúde física.”

Ela explica que o diagnóstico, apresentado de forma abrupta, gera insegurança e ansiedade frente ao futuro, surgindo assim o medo da morte e do incerto. “E isso é justamente o processo do luto, inicia-se um período de transição entre o ‘viver’ o adoecimento para para o ‘conviver’ com o adoecimento. É um processo doloroso justamente porque é preciso que o sujeito precise retirar seus investimentos de afeto do objeto perdido, no caso sua saúde. É um processo que demanda tempo para que o ego consiga transpor o afeto antes direcionado ao objeto perdido, no caso a saúde, o corpo e a vida antes do diagnóstico”.

Para quem não sabe, a Esclerose Múltipla (EM) é uma doença que atinge, geralmente, pessoas jovens, entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres. Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas no mundo têm EM.

Segundo dados da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), estima-se que, no Brasil, a cada 100 mil habitantes 15 indivíduos vivem com EM, sendo uma média de 35 mil brasileiros com a doença. Uma antiga noção aponta que a doença acomete mais mulheres jovens e brancas, dificultando o diagnóstico e o tratamento de pessoas negras.

“Estudos sugerem que o risco de desenvolver esclerose múltipla é até 47% maior em mulheres negras em comparação com homens ou mulheres brancos, e a incidência de esclerose múltipla é pelo menos tão alta em homens negros quanto entre seus homólogos brancos, conforme afirma Mitzi Joi Williams, fundador da Life Wellness Group Multiple Sclerosis Center em Atlanta”, diz a psicóloga.

Por ser considerada uma doença heterogênea, os sintomas são variados, a depender da área do sistema nervoso acometida, dificultando um diagnóstico mais rápido. Ester enxerga isso com preocupação, já que falta informação, e o acesso aos exames ainda não é uma realidade para todos os pacientes, principalmente entre negros e pobres. Por isso ela está construindo, em parceria com a também neuropsicóloga Marcela Silva, um projeto de democratização do acesso aos conhecimentos e serviço especializado de neuropsicológica às famílias periféricas.

“Num país desigual como o nosso, milhares de pessoas seguem sem acesso a um diagnóstico e tratamentos especializados. Portanto, é preciso lutar por políticas públicas e de Estado, pela defesa e manutenção do SUS e pela divulgação da informação Esclerose Múltipla e outras condições neurológicas pouco conhecidas entre as pessoas. Guardar estas experiências comigo seria contribuir para a manutenção de um estigma.  Que mais pessoas se somem nessa caminhada”.

Nesta entrevista para o Morte Sem Tabu, Ester explica o que é a esclerose múltipla e conta sua experiência pessoal de como aprendeu a lidar com a doença e com o luto após descobri-la.

Ester é especialista em Neuropsicologia pela Divisão de Psicologia do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP) há 10 anos. Neuropsicóloga na Baobá Neuropsicologia. Membro do conselho da Associação Aliança Pró Saúde da População Negra, membro da coordenação do Núcleo de São Paulo da ANPSINEP (Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadores), membro e co-fundadora do Movimento Afro vegano (MAV), Cofundadora da Adelinas  – Coletivo Autônomo de Mulheres Negras.

Confira abaixo!

 

ester maria horta fala sobre esclerose múltipla
‘Sem roamantizar, experienciar o adoecimento crônico me trouxe um novo olhar para a vida’/Arquivo Pessoal


Morte Sem Tabu: Ester, confesso que sei muito pouco sobre esclerose múltipla. E muita gente que nos lê também. Pode explicar o que é?  

Ester Maria Horta: O termo “esclerose múltipla” se refere a múltiplas áreas de cicatrização (escleroses) resultantes da destruição dos tecidos que envolvem os  neurônios (bainha da mielina) no cérebro e na medula espinhal. Essa destruição denomina-se desmielinização. Desta forma, a Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crônica, autoimune, desmielinizante, inflamatória, que afeta o sistema nervoso central.  Ela é autoimune pois é o  próprio sistema imunológico, responsável por combater agentes externos como vírus e bactérias, que ataca células saudáveis. No caso da EM, ataca a bainha de mielina dos neurônios. Imagine um cabo elétrico, ele tem um fio elétrico interno, mas para que a condução da energia aconteça ele precisa estar recoberto por um isolamento externo certo? A bainha de mielina funciona como a capa de um fio elétrico (um condutor, mas também age na manutenção do neurônio) que, quando perdida, acaba gerando dano na função do neurônio, tal qual um fio desencapado não conduz seu potencial elétrico adequadamente. Ou seja, dependendo da região do cérebro na qual tenha ocorrido a lesão, as manifestações serão diferentes. Atinge geralmente pessoas jovens, entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres. Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas no mundo tem EM, sendo que no Brasil estima-se que existam 15 indivíduos com EM a cada 100 mil pessoas no Brasil, uma média de 35 mil brasileiros com a doença, segundo a Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM).

Morte Sem Tabu: E quais os sintomas iniciais da EM e como ocorre o diagnóstico?

Ester: A Esclerose Múltipla é uma doença heterogênea, podendo ocasionar diversos sintomas neurológicos a depender da área do sistema nervoso acometida. Não existe uma manifestação neurológica típica, porém alterações visuais, fraqueza nos membros, desequilíbrio, descoordenação, alterações de sensibilidade e distúrbios urinários são as queixas mais frequentes. Fisioterapia e tratamentos medicamentosos que atuam na supressão ou modulação do sistema imunológico ajudam a combater os sintomas e a progressão da doença. A EM é uma doença que costuma ter um início insidioso, com sintomas iniciais  difusos que se confundem com outras doenças e, geralmente, há um longo caminho de idas a médicos e especialistas até que se ocorra o primeiro surto da doença.

Como  bem define a  Associação AME- Amigos Múltiplos pela Esclerose, de forma geral, os sintomas mais comuns podem ser: sintomas sensitivos –  como perda da sensibilidade em determinada região do corpo, formigamentos, dor inexplicável; neurite óptica –  é o segundo sintoma mais comum, ocasionando embaçamento visual, perda do brilho das cores, até perda visual; e Sintomas motores e cerebelares –   podem  causar perda de força em algum ou múltiplos membros, descoordenação motora e tonturas.

É importante observar que os sintomas devem durar mais de 24h para serem considerados de origem neurológica. Tais sintomas podem também variar, ir e vir, o que torna o diagnóstico mais desafiante. É possível que a pessoa  tenha  um sintoma e, em seguida, meses ou anos depois tenha um completamente diferente, e não notar a relação entre os dois eventos. Quanto ao diagnóstico, este necessita ser realizado por neurologista, de preferência com especialidade no diagnóstico de EM. A  ressonância magnética (RM) é o melhor exame de imagem para detectar a esclerose múltipla. De forma geral, o exame é capaz de detectar as áreas de desmielinização no cérebro e na medula espinhal. O acesso a tratamentos que atuam na supressão ou modulação do sistema imunológico e fisioterapia aliado a um cuidado na saúde como um todo, incluindo os cuidados de saúde mental,  ajudam a combater os sintomas e a progressão da doença.

Morte Sem Tabu: Ester, como foi quando você descobriu a doença?

Ester: Na manhã do dia 12 de outubro de 2016, algumas semanas antes do meu aniversário de 30 anos,  subitamente, ao despertar, notei que minha vista direita estava estranha, havia uma espécie de “borrão” bem no centro do meu campo de visão à esquerda. Assustada, primeiramente cheguei a pensar se tratar de algo nos olhos, olhando no espelho tudo estava normal. E como já tenho diagnóstico de epilepsia (controlada há mais de 13 anos) fiquei ainda alarmada quando já imaginando poder se tratar de algo neurológico. Como não tive outros sintomas fui primeiro num pronto socorro de olhos onde no dia seguinte realizei exames de campo visual (que se mostrou alterado) e o de retinografia que acusou que não era nada na retina e sim um “edema de papila” (ou seja, no nervo ótico), e sendo assim que era necessário que eu procurasse um neurologista.

Naquele mesmo dia, orientada por uma neurologista colega de trabalho, acompanhada de meu marido, fui a um hospital,  cujo pronto socorro havia  a especialidade de  neurologia na emergência. Já no pronto socorro foi detectada a neurite óptica (a desmielinização/inflamação do nervo óptico), via Ressonância Magnética, mas era preciso investigar a causa. Lá, fiquei internada por uma semana, tratei com pulsoterapia (corticoide intravenoso) e foram realizados diversos exames  como tomografia, ressonância magnética, líquor, fan e outros exames laboratoriais que descartaram causas virais, infecciosas ou cancerígenas.

O resultado do  exame de líquor, que seria decisivo, só saiu alguns dias depois que tive alta do hospital e indicou a esclerose múltipla. Eu estava aguardando este resultado para decidir o que faria em seguida. Mas anos antes, em meados de 2013, experienciei sintomas que eram até então inespecíficos: fadiga, eventos súbitos de dificuldade de manter o equilíbrio e  de caminhar. Eram sintomas que iam e vinham, e afetaram minha rotina, minha vida acadêmica e profissional, porém sem respostas médicas para o que era.  De 2015 a 2016 voltei a ter os mesmos eventos, até que em outubro ocorreu o primeiro “surto” de EM, tal como descrevi acima. Com esse histórico, tive diagnóstico fechado por um neurologista especialista na área. Hoje, quase 5 anos depois, sigo sem novos surtos da doença, graças a um diagnóstico e tratamento adequados. Mas esta  não é uma realidade para todos os pacientes de EM. Ainda mais neste ano de pandemia, que encaramos escassez de medicamentos devido ao sucessivos atos que visam desmonte do SUS, inclusive para EM, aumento abusivo dos planos de saúde e direitos sendo retirados para pessoas com deficiência.

Morte Sem Tabu: Você é psicóloga, faz diversas reflexões sobre luto, e costuma dizer sobre seu próprio luto em relação à doença. Como é isso pra você? Por que você traz esse processo também como um luto? 

Ester: O luto, na perspectiva psicanalítica, é uma reação à perda de um ente querido ou de algum objeto de afeto que, neste caso, pode ser a própria saúde. Quando se recebe o diagnóstico de uma doença crônica – definida como uma doença de evolução lenta, com duração longa que, no geral, acompanha um paciente durante toda a vida – vivencia-se o luto pois perdeu-se aquele objeto amado, no caso a saúde física. Além de amigos e familiares poderem também viver um luto antecipatório, antecipando a possibilidade de perda daquele ente querido, frente a um diagnóstico, o que acaba muitas vezes gerando distanciamento, as pessoas se distanciam daquela pessoa que ainda em vida carrega em si o estigma de uma morte em potencial, por ser a doença uma ameaça à vida.

Desta forma, o luto antecipatório envolve a família, amigos e entes queridos próximos ao paciente. Cada um desenvolve mecanismos a fim de interpretar e lidar com a possibilidade da morte e para o enfrentamento do que estará por vir. No meu caso, quando ainda nos exames iniciais recebi o informe de que se tratava de algo neurológico e  que precisaria ser investigado, eu literalmente ‘gelei’. Foi um momento ali congelado, a vivência de uma pausa, de um fim. Pois era justamente o que mais temia, até então ainda imaginava que poderia ter sido algo apenas na retina.

Nesse momento, lembro de sair da sala de exames e caminhar meio que fora do ar até chegar ao encontro do meu marido que me aguardava na sala de espera e só conseguir dizer  “A causa é neurológica…” com um misto de sentimentos, relembrando a jornada que eu já havia passado com o diagnóstico de epilepsia que, naquele momento, era algo já distante e superado. Era algo como “lá vamos nós outra vez..,”. Naquele momento, meu marido segurou minha mão e me acolheu. Era o que eu precisava, pois era o sentimento de que uma nova jornada iria se iniciar.

O diagnóstico, apresentado em nossa vida de forma abrupta, gera insegurança e ansiedade frente ao futuro, surge o medo da morte, o medo do incerto. E isso é justamente o processo do luto, inicia-se um período de transição entre o ‘viver’ o adoecimento para para o ‘conviver’ com o adoecimento. É um processo doloroso justamente porque é preciso que o sujeito precise retirar seus investimentos de afeto do objeto perdido, no caso sua saúde. É um processo que  demanda tempo para que o ego consiga transpor o afeto antes direcionado ao  objeto perdido, no caso a saúde, o corpo e a vida antes do diagnóstico.

E esta dor que tanto se refere  apesar de parecer abstrata, não está perdida em nosso corpo, ela tem uma razão e uma explicação fisiológica de ser, ou melhor, neurofisiológica. Do ponto de vista neuropsicológico, o luto, a percepção da perda desencadeia respostas psicológicas que se intercomunicam pelas vias neurológicas. Neste sentido há a participação do  sistema límbico  –  conjunto das estruturas neurais que são associadas com os comportamentos e a memória emocionais –  em especial da amígdala, uma destas estruturas,  que por meio da ínsula que está altamente envolvida no sentido do estado interno do corpo e atua no estado de consciência.  São circuitarias que se encontram em atividade diferenciada num processo de luto e estão relacionadas aos sintomas de alteração de percepção do próprio corpo no processo de luto, aquela “sensação de corpo pesado, cansado”. A amígdala também é ativada nos episódios de memórias recorrentes e ruminantes que surgem num processo de luto bem como  na fase de resolução e compreensão deste, na qual são produzidos sentimentos diversos, agradáveis, desagradáveis ou mesmo neutros. Pessoalmente, experienciar o adoecimento crônico, longe de romantizar essa vivência, me trouxe um novo olhar para a vida, mais aprofundamentos de leituras e estudos nesta temática e  em especial um olhar ainda mais cuidadoso no que diz respeito às pessoas que me deparo na minha prática profissional enquanto psicóloga-neuropsicóloga.

Morte Sem Tabu: No dia 30 de agosto comemorou-se o Dia Nacional de Conscientização sobre a Esclerose Múltipla. Muito pouco se fala como a doença acomete mulheres negras. Pode falar um pouco sobre isso?

Ester: Celebrada pela primeira vez em 2006, a data foi criada pela  ABEM com o objetivo de buscar uma representatividade nacional que aumentasse a visibilidade da Esclerose Múltipla, seus pacientes e os desafios por eles enfrentados no dia a dia. Desde 2014, o mês de agosto ganhou cor em prol da conscientização desta  doença autoimune que mais acomete jovens adultos em todo o mundo. O Agosto Laranja foi criado pela AME – Amigos Múltiplos pela Esclerose com o objetivo de ser um movimento coletivo para desmistificar essa condição crônica de doença e fomentar o diagnóstico precoce, mais qualidade de vida, acolhimento, respeito e dignidade para quem convive com a doença, seus amigos e familiares. A condição atinge geralmente pessoas jovens entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres,  então quando falamos da mulher negra sabemos que essa condição vai se somar com os desafios que o ser mulher negra, num país marcado por uma cultura sexista, patriarcal e racista.

Com minha experiência tive contato com pesquisas que demonstram que, diferentemente do que se pensa, a EM é tão comum na população negra quanto na população branca. Ao integrar a comunidade da organização ‘We are illmatic’ – uma organização americana, sem fins lucrativos, de mulheres negras pacientes de Esclerose Múltipla, tive acesso a  estudos que demonstram ainda que ela é, na verdade, mais comum na população negra.

Acontece que há menos pesquisas investigando a EM na população negra.  Estudos sugerem que o risco de desenvolver esclerose múltipla é até 47% maior em mulheres negras em comparação com homens ou mulheres brancos, e a incidência de esclerose múltipla é pelo menos tão alta em homens negros quanto entre seus homólogos brancos, conforme   afirma Mitzi Joi Williams fundador da Life Wellness Group Multiple Sclerosis Center em Atlanta.

Desta forma, a velha noção de que a esclerose múltipla é a doença de uma jovem mulher branca continua a afetar a rapidez com que os negros são diagnosticados e como são tratados. Outra pesquisa, mencionada pela National Multiple Sclerosis Society (Sociedade Americana de Esclerose Múltipla) constatou que de 60.000 artigos publicados sobre a EM, apenas 113, ou cerca de 0,2%, se concentram nos afro-americanos. E pessoas negras têm 47% mais chances de desenvolver EM do que pessoas brancas.

Já se sabe inclusive que ela apresenta curso e sintomatologia com especificidades na população negra, como por exemplo: ter recaídas mais frequentes e pior recuperação dessas recaídas, quadro mais incapacidade e maior risco de envolvimento dos nervos ópticos e medula espinhal (EM óptico-espinhal) e inflamação da medula espinhal (mielite transversa). Essa pesquisa, que inclui uma revisão de 2019 na Current Neurology and Neuroscience Reports e um estudo de 2018 no Brain, também mostra que pessoas negras com EM têm sinais anteriores de deficiência e mais problemas com locomoção e coordenação do que pessoas brancas. Além de estudos já apontam a relação de baixos níveis de vitamina D em pessoas negras com esclerose múltipla.

Aqui estamos falando de pesquisas estadunidenses, cuja população negra não é majoritária no país. E no Brasil, no qual a população negra compõe mais da metade da população (cerca de 56%), ainda não há estudos e levantamentos amplos que incluam o quesito raça/cor. Recentemente, em uma live referente ao Agosto Laranja promovida pela ativista Alyne Sousa , a convidada a escritora Jéssica Teixeira trouxe a problematização sobre pesquisas e  plataformas de monitoramento da EM no Brasil, apesar de trazerem dados importantes sobre acompanhamento de aplicação de políticas públicas não trazerem informação do quesito raça/cor.

Ainda que quando se fala em saúde, além das pesquisas se pautarem nos corpos brancos, mesmo quando se faz levantamento dos corpos negros, em regra, são corpos cisgêneros. É preciso pensar também em como as mulheres trans e travestis negras são afetadas, em vista de que lhes é negado o direito ao acesso ao acompanhamento básico de saúde, lhes é negada a humanidade.

Por meio dos dados do relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) apontam as violências a que mulheres trans e travestis negras são alvo, bem como os levantamentos da FONATRANS – Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, nos leva a inferir que é preciso pensar no subdiagnóstico ainda maior  da EM na população trans negra. Organizações como a ‘Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam – VNDI’  e o ‘Quilombo PCD’, apesar de não serem coletivos que abordam exclusivamente sobre EM, mas trazem a discussão e a voz de pessoas negras com deficiência, também nos aponta como falar da realidade da mulher negra nos leva a pensar na multiplicidade de vivências negras e como o diagnóstico de EM irá impactar de maneira diferente em cada uma destas vivências, ao se somar a outras opressões a que àquela mulher já está exposta. São também espaços que precisamos nos aproximar e fortalecer a fim de que possamos realizar um trabalho de base que chegue à mulher preta periférica e transformemos as políticas públicas e políticas de estado para que possam de fato proteger essa população.

Morte Sem Tabu: O que fazer para ampliar o acesso à informação sobre EM? 

Ester: Para você que está lendo mas não é uma pessoa com EM, porém convive com alguém que tem (ou mesmo que seja outro quadro autoimune), em primeiro lugar: 

  • Escute: entenda como a pessoa com EM está se sentindo e procure não comparar o estado de saúde dela com o de outras pessoas. Cada pessoa experiencia a EM de uma forma diferente.
  • Pesquise: é cansativo para uma pessoa com EM ter que, a todo momento, explicar o que ela tem. Uma das coisas legais que você pode fazer é pesquisar sobre, para compreender um pouco mais a realidade dela e para que você também possa ter mais informações para levar adiante e contribuir para combater tabus e preconceitos.
  • Acolha: Há dias bons e dias ruins, dependendo do curso da doença e de tantos outros fatores, muitas vezes o acolhimento que você oferecer vai contribuir muito para a qualidade de vida daquela pessoa.

Morte Sem Tabu: Pode deixar uma mensagem para pessoas que passaram ou estão passando por situações semelhantes à sua?

Ester: Gostaria de (re)afirmar que, ao mencionar, em específico, a minha vivência com EM, falo do meu lugar, do lugar de uma mulher negra cis e profisisonal da saúde, mas as histórias são múltiplas e minha experiência não pode ser tomada como um “exemplo” ou a simples ideia de que é “possível superar a doença” como um “caso de superação”. A “superação”, se é que se pode usar este termo, não depende única e exclusivamente da(o) paciente. Tive a possibilidade de ter direito de acesso ao diagnóstico e tratamento;  ter um plano de saúde, contar com o apoio de meu marido e minha mãe, além de já ter familiaridade com o assunto, dada a minha profissão.  Ainda assim, como qualquer outro paciente, enfrento desafios diários principalmente em lidar com o preconceito e perda de oportunidades que tais diagnósticos geram, fruto da desinformação e preconceito ainda existentes. Nesse percurso, depois que falamos abertamente sobre o diagnóstico, não temos como controlar as reações alheias, como abordei anteriormente, familiares, amigos e conhecidos também vivenciam um luto antecipatório e lidam com suas próprias ideias e tabus internalizados acerca da morte e do adoecimento.  Algumas pessoas podem se afastar, outras se silenciam, outras ignoram. Mas, ao mesmo tempo, novas amizades chegam e com elas novos aprendizados. Estar num grupo de apoio contribui para encontrarmos novas soluções e perspectivas. Dê tempo ao tempo. Há e haverão desafios e sintomas benignos, incômodos que vez ou outra ocorrem. Há e haverão dias bons e dias ruins. Espero que ao ler esta entrevista, este possa ter sido um dia bom e espero que assim continue. Num país desigual como o nosso, milhares de pessoas seguem sem acesso a um diagnóstico e tratamentos especializados. Portanto, é preciso lutar por políticas públicas e de estado, pela defesa e manutenção do SUS e pela divulgação da informação Esclerose Múltipla e outras condições neurológicas pouco conhecidas entre as pessoas. Guardar estas experiências comigo seria contribuir para a manutenção de um estigma.  Que mais pessoas se somem nessa caminhada. Juntos, de fato,  vamos mais longe. Estou à disposição para dar as mãos para mais colegas de caminhada.

Organizações para acompanhar:

AME (Amigos Múltiplos pela Esclerose) 

Abem (Associação Brasileira de Esclerose Múltipla

Blogs de mulheres negras que falam sobre sua experiência com EM:

Ester Maria Horta: @ester_psi (colabore com o projeto de neuropscologia comunitária doando pelo PIX: neuropsicologiacomumitaria@gmail.com)

Alyne Souza: @aesclerosadarara

Jéssica Teixeira: @jazzeflow


Atualizado em 30 de setembro de 2021 às 10:08

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Joan Didion: o luto de uma escritora sem crença https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/joan-didion-o-luto-de-uma-escritora-sem-crenca/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/joan-didion-o-luto-de-uma-escritora-sem-crenca/#respond Mon, 02 Aug 2021 11:53:03 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/joandidion_-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2443 Julia Ferry

“O ano do pensamento mágico” e “Blue Nights” são dois livros da escritora Joan Didion dedicados ao seu marido John, e à filha, Quintana. Em um relato pungente, a autora escreve sobre a dor de perdê-los. O que vemos nesses livros, é a escrita do luto que não nos oferece um consolo, nem a promessa de um ensinamento ou reparação, mas o compromisso com uma transmissão honesta sobre a dor de viver a perda. “Este é o primeiro livro sobre o luto escrito por alguém sem crença. Joan Didion, só Deus sabe, acredita na realização humana”, diz David Hare no documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold“, dedicado à escritora. 

O corpo fino e frágil que vemos no documentário que acompanha quase 80 anos de vida da autora, é narrado nos dois livros, como depositários do medo e da dúvida. Didion conta que viver as suas perdas é viver um imenso medo. Medo de não ser mais capaz de se levantar de uma cadeira, que se estende para o temor de não conseguir pensar e até mesmo falar. “Quando digo que sinto medo de me levantar de uma cadeira dobrável em uma sala de ensaio na West 52nd Street, do que realmente sinto medo?”, ela interroga.

O medo como um afeto que antecede a experiência da perda é um sentimento  comum entre as pessoas. A ideia de perder alguém é, por si só, geradora de profundas angústias. Há vidas inteiras que são vividas atravessadas por esse  medo, que parece nos revelar não só a fragilidade que é própria da vida, mas a indeterminação que nos constitui: O que é o “eu” sem o “você”? 

Como apresentou a filósofa Judith Butler, a experiência da perda demonstra a nossa dependência em relação aos outros que amamos, não apenas para viver nossas vidas, mas para nos definirmos como pessoas. Somos sujeitos despossuídos, nos diz Butler. Não temos propriedade e posse do nosso predicado. Somos despossuídos pelos outros, desfeitos pela sua presença em nossas vidas. Nos transformamos e nos descobrimos com os nossos encontros. Como somos também, inevitavelmente, despossuídos na ausência daqueles que amamos. Perder alguém é abalar as próprias noções de si.  Em “Luto e Melancolia”, Freud afirma que não sabemos exatamente o que perdemos quando perdemos alguém. E aí está a perplexidade de uma pessoa, que não é apenas uma presença e uma ausência, mas uma alteridade inapreensível.

Didion não para de sentir medo, mesmo depois de ter perdido. Há um medo que é tão impreciso quanto a experiência que o originou. A perda é uma experiência imprecisa: o que eu perdi com essa pessoa? O eu é forçado a se encontrar com a sua inconsistência. Não só a morte, mas separações dolorosas também impõe essa experiência. Há quem a ideia de perder seja tão devastadora, que procura com todas as forças barrar inícios, relações e proximidade. Assim, quem sabe não amando tanto, evita-se o sofrimento pela perda. É a tentativa de um controle absoluto e programado do que é da ordem do contingente.

A experiência da perda é tão radicalmente devastadora, não só porque nos leva a transformar aquilo que somos, mas nos mostra, no seu espanto, o quanto nunca fomos donos de nós mesmos. Por isso é possível dizer: “não queria querer o que eu quero”, ou nas palavras de Simone Weil: “a contradição, por si mesma, é a prova de que nós não somos tudo”. Não temos escapatória às coisas que nos atravessam. Algo nos escapa, o outro, a própria vida.

Didion se interroga se não perdeu, junto com o marido e a filha, até mesmo as funções motoras e cognitivas, descrevendo a desconfiança nas suas capacidades mais familiares e primárias. As habilidades do seu corpo e a sua capacidade de comunicar sobre esse estado de desespero lhe parecem instáveis: “E se eu nunca mais conseguir localizar as palavras que contam?”. Não só sua própria fragilidade, mas também o dispositivo de narração que se expressa é colocado em questão.

Como escritora, ela conta que “imaginar o que alguém diria ou faria é tão natural para mim quanto respirar”. Mas imaginar o que John falaria, ou escreveria, era não apenas doloroso como ultrajante. O marido, também escritor, era o primeiro leitor e crítico de tudo que ela escreveu. Ela então se pergunta sobre uma frase que tenta completar: “como ele a teria escrito? O que teria em mente? Como queria que ela ficasse?” e conclui que “a decisão cabia a mim agora. Qualquer escolha que eu fizesse carregaria um potencial abandono, até mesmo uma traição”.

Didion “resolve” seu dilema na seguinte passagem: “Deixei como estava. Por que você sempre tem que estar certa? Por que você sempre tem que ter a última palavra? Pelo menos uma vez na vida, deixe para lá”. Essas últimas três frases foram faladas pelo marido e endereçadas a ela, em uma pequena discussão que tiveram. Ela desloca o contexto das palavras de John para as perguntas que faz para si mesma, na ausência dele. Falar com as palavras já ditas pelo outro, essa ainda é uma possibilidade. E foi a saída encontrada por Didion, que inventa através das suas palavras, e das palavras que lhe foram ditas pelos outros, uma escrita possível sobre o luto. Escrever sobre John, seu marido, e Quintana, sua filha, é um gesto de fazê-los viver em um livro, um gesto que ao mesmo tempo acena para essas vidas, e afirma as suas mortes. Dizer para nós com as palavras deles, dizer para si mesma com as palavras dos outros, o luto de uma escritora sem crença.

*Referência Judith Butler: Vida precária: os poderes do luto e da violência. Autêntica Business, 2019.

Julia Ferry (juliaferry@hotmail.com) – Psicanalista, formada em Psicologia pela PUC-SP, mestranda em Psicologia Social pela USP. 

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A urgência de vida em mim: 7 anos sem meu pai https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/a-urgencia-de-vida-em-mim-7-anos-sem-meu-pai/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/a-urgencia-de-vida-em-mim-7-anos-sem-meu-pai/#respond Fri, 02 Jul 2021 21:55:16 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/arquivo-pessoal-jessica-moreira-1-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2423 Desde 2014, o 2 de julho virou uma data a ser lembrada. É o dia da morte do meu pai: o Sebastião, o Tiãozão, o papishow, como eu o chamava. Já contei a história dele aquiSe estivesse vivo, faria 63 anos e já estaria vacinado. Também conheceria o Davi e o Miguel, os netos que chegaram depois da Bia, a única que ele carregou nos braços.

Mas meu pai morreu e, naquele 2 de julho, uma Jéssica também morreu dando espaço a essa que hoje eu sou. Mas  perder essa pilastra não foi, não é fácil. Não é possível reerguê-la, mas ressignificar sim.

Alguns anos antes de sua morte, sonhamos juntos o meu intercâmbio. Ele não tinha condições de pagar sozinho um curso de Inglês, então se juntou à mãe e à vó e, mensalmente, somavam as moedas na cozinha de casa para pagar o boleto da escola de idiomas.

Tião e seu irmão, Tiago crianças/ Arquivo pessoal

Foi assim até o dia que eu disse que não queria mais gastar dinheiro com o curso, pois dali em diante eu mesma iria guardar o que ganhasse para estudar fora.

O pai contou ao meu tio João: “a Jéssica vai para a Austrália”. E no outro dia minha prima Rosana já estava me dando parabéns pela viagem. Eu nem tinha dinheiro. O sonho, porém, agora não era só meu. Estava posto a toda família.

“Então, não precisa pagar conta nenhuma em casa, guarda tudo que conseguir”, foi a ajuda dele. Para quem é da periferia, sabe que apoiar em casa financeiramente é algo quase natural.

Durante dois anos, eu juntei tudo que consegui. Em março de 2014, fechei um pacote para Dublin, Irlanda, e o pai até tomou uma cerveja para celebrar.

Também convenceu a prima Camilla a também ir morar comigo noutro país. Para quem veio do interior de São Paulo, Atibaia, e viveu toda a vida em Perus, extremo noroeste de São Paulo, ver a filha e a sobrinha do outro lado do mundo era um jeito de também realizar seu sonho, mas de uma família toda.

A viagem estava marcada para 28 de julho. A ansiedade batia mais nele e nos familiares do que na gente. Era o sonho coletivo se espraiando.

Mas isso tudo mudou de forma em junho. O pai começou a sentir fortes dores por todo o corpo. Sem convênio, o levamos a uma consulta paga, onde a estupidez do médico o deixou ainda pior. Foi no Pronto Socorro que descobriram que a Diabetes havia chegado a 490 e que, em nível tão alto, estava prejudicando os membros.

A saga de hospital em hospital durou vinte dias. Eu brigava em todos eles. A frieza de enfermeiras e médicos se somava ao frio das próprias paredes. Mas o pior de tudo foi uma chefe de enfermagem que esperou eu chegar para conversar sobre o estado do pai, mesmo com minha mãe e tia na visita: “você é mais esclarecida”.

De repente, o diploma universitário, o curso de inglês, a caminhada árdua de meus pais para oferecer a mim educação, era a desculpa para não oferecer informação, um direito que deve ser garantido independente do grau de escolaridade.

Jéssica Moreira e o Pai, Sebastião /Arquivo pessoal

Num outro dia, o enfermeiro do plantão fez questão de me chamar e mostrar as costas de meu pai em carne viva por conta de um tampão que outro enfermeiro colocou erroneamente. Ele não me deu escolha de não ver.

Do nosso lado, foram dias e dias dormindo no hospital, ou nem conseguindo dormir em casa. Mesmo sendo grave, ele só conseguiu uma vaga na UTI depois de uma semana. Enquanto isso, ficou pelo menos dois dias num corredor e os outros num quarto sem nenhuma estrutura.

Naquele 2 de julho, por volta das 11h, o tempo parou, congelou. Estava a 30 km de casa. Não tive paciência para esperar o trem. Peguei um táxi. Eu tinha pressa. Pressa de estar com os meus, de viver alguma dor, mas desde aquele dia eu passei a ter pressa de viver.

No meu luto, eu não parei. Nem todo luto é igual. Pelo contrário, eu acelerei. Desde então, a idade de meu pai se tornou um limite. Parece mórbido, eu sei, mas custou para mim começar a imaginar que eu poderia ir além dos 56.

Uma pressa em aprender tudo, em me aventurar, em trabalhar e não deixar nada para amanhã. Era como se nada fosse dar tempo.

A pressa também me atropelou e me doeu. Me distanciou de algumas pessoas e me fez querer abraçar o mundo sem conseguir antes me abraçar. Gerou frustrações e o medo de não conseguir chegar. Onde? Nem eu sabia.

Passados sete anos, eu sinto que agora eu começo a me desenhar uma mulher de cabelos grisalhos. Talvez filhos, quem sabe netos. Mas contando aos mais novos a história do Tião.

A viagem atrasou e fui para Dublin em 10 de agosto de 2014, coincidentemente o Dia dos Pais daquele ano. Ele não pôde ver esse sonho-coletivo se tornar palpável, mas todas as vezes que eu caminhava no chão gelado irlandês, eu pensava: eu estou pisando no meu sonho.

Chego aos 30, sendo 7 deles em luto, mas querendo viver, pra continuar fazendo aquilo que o pai ensinou: sonhar.

“Meu pai me ensinou a sonhar”/ Arquivo pessoal

 

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Chacina do Jacarezinho: ‘A gente não merece viver em um cenário de guerra’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/chacina-do-jacarezinho-a-gente-nao-merece-viver-em-um-cenario-de-guerra/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/chacina-do-jacarezinho-a-gente-nao-merece-viver-em-um-cenario-de-guerra/#respond Fri, 07 May 2021 02:31:23 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/chacina-rio-de-janeiro-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2368 O dia 6 de maio ficará registrado na história do Brasil como uma quinta-feira sangrenta. Como se não bastasse todas as dores e dificuldades que a pandemia evidencia, os moradores de Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ), amanheceram sob intenso tiroteio, invasão às suas casas, celulares confiscados e a morte de pelo menos 25 pessoas.

Nas redes sociais, fotos e vídeos denunciam que aquilo que o Estado do Rio de Janeiro chamou de operação foi uma verdadeira chacina. Além das 25 mortes registradas oficialmente, a população acredita que houve ainda outros homicídios.

O advogado Joel Luiz, nascido, crescido e militante de Direitos Humanos em Jacarezinho, caminhou com dor pelas ruas de sua infância. “Andamos pelo Jacaré, entramos em quatro, cinco, seis casas, todas com a mesma dinâmica: casas arrombadas, tiros de execução […] O menino morreu sentado em uma cadeira. Ninguém troca tiro sentado em uma cadeira, isso é execução. Isso é barbárie”, afirmou o advogado em vídeo em sua conta no Instagram.

A ação da polícia durou mais de 9h. Foi a mais letal da história da polícia do Rio, segundo dados da ONG Fogo Cruzado. A operação foi realizada pela DPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), com o apoio da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais).

“Mataram 25 pessoas ou mais. Isso acabou com o tráfico de drogas? Isso vai acabar com o tráfico de drogas? A partir de amanhã não vai ter mais drogas sendo vendidas nas vielas do Jacarezinho porque 25 pessoas foram mortas?, questionou Joel.

Para o advogado, o que presenciou hoje deixa claro a inexistência da democracia. “Isso aqui não é democracia. Definitivamente, isso aqui não é a democracia que se fala nos livros, que a gente aprende na faculdade, que falam no Jornal Nacional […]. Isso aqui não é nada do que a gente pensa sobre o que é viver em sociedade”, disse.

“É muito cruel você passar na rua onde você brincou, onde sentou com os amigos, tomou cerveja, você viveu a vida e ver uma dezena de marcas de tiro na porta de um bar, na loja de cosméticos. Balas e balas no chão, cartuchos”, lamentou o advogado. “Ninguém merece isso. Não estamos aqui falando em nome de A, B ou C. Só falando que isso aqui é cenário de guerra e a gente não merece viver em um cenário de guerra. Não é justo você entrar em seu território e ver cenário de guerra. Ver casas arrombadas. Que Dia das Mães essas pessoas vão ter?”.

Em nota oficial , as organizações, coletivos e ONGs locais também mostraram sua indignação. “Em meio a uma pandemia que matou 410 mil pessoas, 45 mil só no Rio de Janeiro, ocorreu a operação mais letal da história do estado, sob a justificativa de proteger ‘os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e demais moradores que residem nessas comunidades”.

No perfil de Joel nas redes sociais, há diversos vídeos de moradores e moradoras contando suas versões sobre a história de hoje. A imagem que vai marcar essa quinta-feira é a das paredes e piso de salas, cozinhas e escadas respingado sangue. Não só uma, mas muitas delas, escancarando uma realidade que mata de muitas formas as favelas.

Em um vídeo, uma moradora guia a pessoa com a câmera e mostrando os pingos de sangue pela escada. No fim das escadas, o cômodo cheio de sangue. “Filma, filma”, a mulher pede, como em um pedido de socorro e também registro daquilo que não basta mais ser apenas verbalizado. São imagens muito duras e difíceis de ver e de aceitar em qualquer circunstância.

Uma delas é uma senhora negra, que pede para não mostrar o rosto. Sua voz narra o inenarrável, a dor e indignação de uma mãe querendo informações sobre o corpo de um filho:

“Eles  apontaram a arma para mim de fuzil no meu rosto dizendo que eu tinha que morrer, só porque eu fui falar com eles, fui perguntar onde o corpo do meu filho estava. Meu filho morreu hoje, eles chegaram atirando. Eles são umas pestes”, diz a senhora em vídeo que pode ser visto aqui.

A CIDADE DA POLÍCIA

Desde 2013, o bairro do Jacaré abriga a Cidade da Polícia, um espaço da Polícia Civil do Estado do RJ, que comporta 15 delegacias especializadas, onde estão cerca de 3 mil agentes. A comunidade vive a aflição de estar sempre muito perto dos policiais.

“De um lado você está na Cidade da Polícia e você atravessa a rua e está no Jacarezinho. Isso mostra um pouco da complexidade da dinâmica da cidade do Rio de Janeiro. Que é essa cidade repartida ao meio”.

Quem conta isso é Seimour Souza, coordenador do Lab Jaca e do NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem). Conhecedor dos desafios e potenciais da comunidade, hoje Seimour ouviu os mais dolorosos depoimentos da boca daqueles que ele convive diariamente no Nica ou nas entregas de cestas básicas diante da pandemia.

“A palavra que resume o dia de hoje é medo. Medo do que aconteceu, medo de denunciar. As pessoas não querem falar. Tiveram pessoas assassinadas dentro de suas próprias casas e não querem falar, não querem ser identificadas, conta.

“É algo inominável pra gente. No cotidiano e na gramática do genocídio que a gente vive isso é só mais uma peça no mosaico do extermínio da população negra”, afirma Seimour. “O mundo, o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro segue naturalizando isso como se fosse justificável em alguma medida o assassinato de 24 pessoas, 25 incluindo o policial.”

#CHACINADOJACAREZINHO

Por volta das 12h, a população saiu pelas vielas da comunidade pedindo justiça e, à noite, realizaram um tuitaço pedindo justiça com a hashtag #ChacinadoJacarezinho. “São as mulheres negras que choram a morte dos seus filhos. Feliz Dia das Mães pra quem?”, escreveu em um dos tweets o Instituto Marielle Franco.

Eliane Vieira, integrante do Coletivo Mães de Manguinhos, diz que “o braço armado do Estado não pode sair por aí assassinando as pessoas como se fossem seres supremos que decidem a vida e a morte”.

Moradora de Manguinhos, próximo ao local da chacina, Elaine conta que as pessoas estão apavoradas. “Por medo da madrugada e por saber que a qualquer momento tudo pode acontecer”, diz.

Ela conta que as Mães de Manguinhos e demais movimentos organizados do Rio estão cobrando dos respectivos órgãos uma resposta nesse momento. “Não é possível que uma chacina dessa ainda seja encarada como operação”>

“Exigimos explicações e questionamos: como o Estado pretende atuar no território depois dessa chacina? Como recuperar o trauma das milhares de pessoas que foram submetidas ao terror policial? Como os familiares das vítimas serão amparados? Quais os mecanismos institucionais de prevenção às ações como as que vivenciamos no dia de hoje? Esperamos respostas”, aponta também a nota oficial das organizações locais.

“Ser um militante negro contra o genocídio no Brasil faz com que a gente se questione não ‘se a gente vai ser assassinado, mas quando quando e como. Esse dilema que a gente tem que enfrentar”, diz Seimour .

ATO

Nesta sexta-feira (7) acontece ato às 17h da tarde, no G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, contra as violações ocorridas no Jacarezinho. O ato está sendo organizado pelas organizações locais: LAB Jaca, NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem), IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), Associação de moradores do Jacarezinho, Cafuné na Laje, G.R.E.S Unidos do Jacarezinho, Jcré Facilitador, Jacaré Basquete e ONG Viva Jacarezinho. Clique aqui para mais informações.

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Rir é resistência: o evitável adeus de Paulo Gustavo e de 3 mil pessoas https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/rir-e-resistencia-o-evitavel-adeus-de-paulo-gustavo-e-de-3-mil-pessoas/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/rir-e-resistencia-o-evitavel-adeus-de-paulo-gustavo-e-de-3-mil-pessoas/#respond Wed, 05 May 2021 15:24:51 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/paulo-gustavo-reproducao-redes-sociais-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2364 por Camila Appel e Jéssica Moreira

Às 21h12 da terça-feira (4), o Brasil recebeu com dor a notícia da morte do humorista Paulo Gustavo. Além de Paulo, só ontem, outras 3.025 pessoas morreram em decorrência do novo coronavírus.

Ao todo, são mais de 412 mil vidas interrompidas por uma doença para a qual não há tratamento precoce com comprovação científica, mas já há vacina. Por falta de vontade política, o imunizante não chegou a tempo de minimizar os efeitos do vírus no corpo de todos aqueles que partiram. Aglomerações, sem a proteção básica de uma máscara, foram incentivadas. A “gripezinha”, ironizada. 

A morte de Paulo, esse rosto que bateu recordes de bilheteria e fez milhões irem ao cinema para rir, unifica, mas não diminui, as dores distribuídas por todo país. Cada um de nós conhece alguém que morreu ou que está, neste momento, internado entre a vida e a morte. 

O luto nacional que estamos vivendo há mais de um ano encontra-se com os lutos individuais. Os anônimos, as dores próximas ou longínquas de quem convive com o inexplicável do ‘nunca mais te ver’. O desaparecimento repentino da pessoa amada não cabe na palavra que passa a representá-lo: saudades.

Os familiares, amigos e fãs de Paulo estabeleceram uma corrente de fé e esperança pelas redes sociais no último mês. Dialogou com todos que estavam vivenciando processos semelhantes, em vigília pela cura de seu ente querido.

É nosso dever registrar esse momento para além dos números e dos gráficos. Trazer a alegria dos tantos Paulos que partiram sem fazer a última piada. 

Paulo era jovem, tinha apenas 42 anos. Segundo a humorista e amiga pessoal Tata Werneck, não apresentava comorbidades. A última crise de asma do artista foi há 10 anos, reafirmando a surpresa de uma morte fora do grupo de risco. As mortes na faixa dos 40 e 49 anos cresceu nas estatísticas: 626% em janeiro e 419,23% em fevereiro, o maior aumento entre todas as faixas etárias.

Estamos em choque. Não pelo inesperado. Mas a constatação de chegarmos num ponto de tristeza e descaso profundos.

A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da pandemia começou a receber depoimentos no dia da morte de uma referência nacional. Uma vítima que trazia para si as qualidades de quem “não está na hora de morrer”.

Ele fazia o bem, distribuindo alegrias e sorrisos. Ele era casado com o dermatologista Thales Bretas. Tinham dois filhos bebês, Romeo e Gael, fruto de uma longa tentativa de reprodução assistida. Quebraram mais um tabu, falando abertamente sobre isso, ajudando outras pessoas a se abrirem. 

Paulo Gustavo é uma referência nacional, trouxe avanços para nossa cultura e fortaleceu a comunidade LGTBQI+, na pele de Dona Hermínia, inspirada em sua mãe, e em várias outras personagens. Era considerado um gênio. Representava o Brasil no que temos de melhor. E foi morto pelo nosso pior.

Lemos que a morte é inconveniente, chega sem pedir licença. Ela não espera um projeto ser concluído, palavras de amor serem finalmente declaradas. Mas as mortes por conta da Covid-19 poderiam, sim, ser prevenidas por ações estratégicas melhor elaboradas.

Nossos governantes ignoraram a pandemia durante muito tempo. Dão o exemplo da crueldade e da displicência. São o oposto de Paulo Gustavo. Rejeitaram diversas ofertas de vacinas. Entre elas, a de 70 milhões de doses que chegariam até dezembro do ano passado, da Pfizer: a melhor vacina que existe no mundo contra o novo coronavírus.


“O presidente Bolsonaro expôs a vida e a saúde dos brasileiros a grandes riscos ao tentar sabotar medidas de proteção contra a propagação da Covid-19. O Supremo Tribunal Federal e outras instituições se empenharam para proteger os brasileiros e para barrar muitas, embora não todas, as políticas anti direitos de Bolsonaro. Essas instituições precisam permanecer vigilantes”, disse a diretora adjunta da Human Rights Watch no Brasil, Anna Lívia Arida, diante da 31ª edição do relatório mundial da organização.

A Covid-19 encontra outras, tantas, desigualdades em solo brasileiro: a insegurança alimentar, a falta de saneamento básico e a necessidade de continuar saindo para trabalhar, como mostramos em texto deste blog quando o Brasil bateu a marca de 300 mil mortos em meio a um rastro de fome. Por trás disso, a necropolítica: uma política de morte, que define quem vive e quem morre.

Um levantamento da CNN com base em boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde mostra que a chance de uma pessoa negra morrer pelo novo coronavírus é 38% maior que a de um branco. Pardos e pretos também representam 57% dos mortos pela doença. A Agência Pública também mostrou que o Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras. 

Aqui, damos o nosso adeus e nos juntamos ao abraço coletivo de todos aqueles que, assim como a família de Paulo Gustavo, estão sofrendo em decorrência da partida de uma pessoa que amam. 

O ofício de Paulo Gustavo era usar sua genialidade para o humor. Se “rir é um ato de resistência”, vamos resistir realçando ainda mais nosso ofício também. Escrever, criar, denunciar. A morte em si não é evitável, mas a morte por esse vírus já é. A prioridade é, deveria ser, desde o início, vacinar a população.

No fim, a morte sempre nos arrebata. Uma ou mil. Uma ou quase duas mil. Uma ou mais de 3 mil. Por minuto, por hora ou por anos. Ela não deixa ignorar o medo e a indignação. 

A mensagem na virada de ano, na Globo, do ator Paulo Gustavo traz a importância das artes para nossas vidas. A arte dramática, o cinema, o teatro, artes plásticas, a dança, a cultura em geral. Ele se declara orgulhoso em ser artista. Uma classe que tanto tem sofrido nesse ano pandêmico.

Ele se despede:

“Contra o preconceito, a intolerância, a mentira e a tristeza já existe vacina. É o afeto, é o amor. Então, diga o quanto você ama a quem você ama e a quem você ama. Mas, não fique só na declaração, ame na prática, na ação. Amar é ação, amar é arte. Muito amor, gente. Até logo.”


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Como se ama na ausência? Uma homenagem de filho para pai https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-se-ama-na-ausencia-uma-homenagem-de-filho-para-pai/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/como-se-ama-na-ausencia-uma-homenagem-de-filho-para-pai/#respond Wed, 05 May 2021 13:03:46 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/odilson-francisco-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2280 Há algumas semanas, me deparei com o depoimento de Paulo Ferraz nas redes sociais. No dia 7 de maio completa três meses da partida de seu pai, Odilon Francisco Ferraz.

Nascido em 5 de outubro de 1944, em Cachoeira de Minas, mudou-se para Mato Grosso em 1957. Acompanhou de perto a colonização do estado e se dedicou à topografia por aproximadamente 30 anos. Nos últimos 25, se dedicou ao comércio. Faleceu ao 76 anos, em Cuiabá, após um infarto em decorrência da Covid-19.

No passado, Odilon passava dias viajando à trabalho. Paulo precisou aprender a amar na distância e na ausência. Mesmo diante da lonjura, ele e o pai continuaram próximos e grandes amigos. Nos reencontros, sentavam-se numa mesa, abriam uma garrafa de cerveja e passavam o dia conversando. Aqui em casa era igual. Meu pai era bom de prosa e de copo. Todo sábado, sentávamos na varanda, uma cerveja do lado e o rádio na voz de Moisés da Rocha, com seu samba pedindo passagem.

Escritor e professor de Literatura, Paulo faz dança com as palavras, mesmo num momento tão difícil, em um relato emocionado que traz a pergunta que muitos de nós, enlutados, gostaríamos de responder: ‘como é que vou conversar agora [com meu pai], quando o reencontro não é mais possível?’.

Como é possível continuar amando, mesmo numa distância tão mais longa que a geográfica? Numa ausência que parece tão irredutível? No livro ‘A máquina de fazer espanhóis’, de Valter Hugo Mãe, o personagem principal, Silva,  perde a companheira na terceira idade e vai morar em um asilo. Em uma das reflexões, a personagem diz assim:

“o meu projeto era esquecer tudo, era protestar contra a morte da laura convencendo-me de que, depois da morte de alguém que nos é essencial, ao menos a memória do amor deveria ser erradicada também”.

No meio da narrativa, um companheiro da casa, Anísio franco, que indica o seguinte aprendizado:

‘nada disso, senhor silva, nada disso, o que me faz correr é sempre o mesmo, uma vontade de saber mais e o de deixar contado às pessoas, nos livros. deixar nos livros aquilo que se descobre, porque um livro, com o que contém, pode ser uma fortuna eterna”.

Sabe, eu não tenho uma resposta exata à pergunta do Paulo. Mas sigo o conselho de Valter Hugo Mãe, nas palavras do senhor Anísio e entendo que, enquanto houver memória, existe amor. No mais, deixamos registrada aqui as memórias de Paulo sobre o pai Odilon:

Paulo Ferraz

Meu pai foi o meu maior modelo, o homem que mais admirei em toda minha vida e olha que tem uma penca de pessoas que admiro. Quando criança ele era pra mim um herói, eu sei que todas as crianças pensam isso e precisam acreditar em uma força sobre-humana, mas meu pai tinha poderes que eram só dele.

Passava meses na Amazônia, chegava lá por estradas de terra ou em aviões que o vento tirava da rota, e uma vez na mata enfrentava até onça, e na falta de onças tinha que se proteger dos grileiros ou das tribos que repeliam os grileiros. Com meu pai longe, tive que aprender até a falar por meio de rádio amador, câmbio.

Isso pra mim soava como aventura, mas era trabalho, e era necessidade, e era perigoso, e a gente sentia um alívio imenso quando ele voltava. Com o tempo aprendi a ver nele uma capacidade ímpar de se superar, uma inteligência rara de quem só tendo o grupo escolar aprendeu a operar um teodolito e a passar ângulos, rumos e azimutes para o papel, fechar um perímetro de quilômetros quadrados; uma inteligência que lhe permitia falar sobre todos os assuntos, e como gostava de falar, ah, como gostava.

Como aprendi com ele, e como agora puxando na memória continuo a aprender, pois tudo o que ouvi ressoa agora em mim. Por passar temporadas fora de casa, às vezes dois meses, ele me ensinou a amar à distância, a amar na ausência, a amar guardadinho no peito, pois o amor se impõe sobre o espaço, o amor se impõe sobre a geografia, o amor se impõe sobre o tempo, o amor se impõe sobre o silêncio.

Quando ele finalmente resolveu que ficaria em casa, foi quando eu saí para São Paulo e assim seguimos nos amando à distância, falando pelo telefone por mais de vinte anos, desde 1995, nos vendo nas férias, mas cada reencontro era como se nunca houvesse separação, além de pai e filho, eu já com vinte e ele com cinquenta, viramos dois bons amigos, desses que se sentam numa mesa, abrem uma garrafa de cerveja pra conversar sobre o dia a dia e o dia passa sem a gente ver.

Como é que vou conversar agora, quando o reencontro não é mais possível? Câmbio? Câmbio? Eu que há anos vinha planejando escrever um romance sobre a chegada de uma família de mineiros no Mato Grosso, uma família de mineiros com oito crianças, a nona nasceria aqui, que teve que aprender a navegar pelo rio Arinos e a extrair látex de seringueiras (eles tinham um seringal nativo, me faltou perguntar como é que acharam as árvores? Quem autorizou a extração? E aquele seringalista de Diamantino? Quem comprava a produção, o Banco da Borracha?).

Tinha tanta coisa pra perguntar… como era a vida entre os alemães? E o dia que descobri que meu pai guardava na memória palavras em alemão? Voltei a sorrir como o velho menino quando ele contou eins, zwei, drei, vier, fünf…. Como vocês se relacionavam com os “beiços de pau”? Como era mesmo a história do garoto que um dia saiu da mata gritando “Jaguaretê! Jaguaretê!”? E o dia que o Rômulo lutou com um jacaré pra salvar o cachorro? E tinha lontras, sim, eu me lembro que tinha lontras….

Ele sabia que eu andava pensando nisso, pois vez ou outra a gente tocava no assunto, falávamos do José Ferraz, militante da década de 1930 (que acabou preso em 1964, pelo visto mesmo longe de Minas seguia sendo vigiado), que aprendi a admirar, tamanha a admiração que meu pai tinha pelo meu avô.

E eu que tanto admiro meu pai, queria que meus filhos tivessem tido mais tempo com ele, que tivessem aprendido com ele tudo o que aprendi, que tivessem comigo essa mesma relação entre a fantasia e a realidade. Nessa semana, quando o medo era proporcional ao amor, eu pus os pés na Mantiqueira, pertinho de onde ele nasceu, onde estivemos juntos há alguns anos, e eu vi com meus filhos passar um bando de mutuns, mas foi como se eu os visse pelo meu pai, como se eu estivesse emprestando meus olhos pra ele, pra que ele visse a mata, pra que ele visse os pássaros pulando de um galho para o outro.

Tenho certeza de que ele foi um homem bom, foi um homem feliz e realizado, pois construiu uma vida digna com a coragem, as mãos e a inteligência, viveu mais de cinquenta anos ao lado da minha mãe, formou três filhos (a gente antes dizia, formou, hoje sei lá), dos quais se orgulhava e estava assistindo aos seus cinco netos crescerem.

Talvez por que hoje eu tenha 46 anos, há algum tempo vinha reconhecendo em mim formas e gestos do meu pai. Estávamos ficando cada vez mais parecidos, até os corações se pareciam, o dele e o meu perdem o ritmo. E num dia em que o meu disparou, ele pegou um avião e veio cuidar de mim.

Eu queria ter podido cuidar dele, estava voltando hoje justamente para ajudá-lo a se recuperar, queria pegar na mão dele e falar que estava ali do seu lado, esperando para irmos embora juntos. Mas ele partiu horas antes de eu chegar em Cuiabá.

Espero que nos seus sonhos ele tenha visto os mutuns, tenha sentido a terra úmida da Mantiqueira e as gotas de chuva que caem entre as folhas dentro da mata. Se hoje eu tenho profissão, títulos, livros é porque meu pai se arriscou por mim, por meus irmãos e, especialmente, por minha mãe (quem disse que eu estava errado ao dizer que ele era um herói?).

Não só se sacrificou, mas principalmente nos deu lições de como sonhar, lições de como vencer, lições de como respeitar, lições de como amar. Esse homem bom e amigo que partiu hoje vai deixar muita saudade e continuará sendo para mim meu modelo de pai, meu modelo de homem, a pessoa que eu sempre quis ser. Pai, como é que era mesmo a história do jaguaretê?

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300 mil mortes e um rastro de fome https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/300-mil-mortes-e-um-rastro-de-fome/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/300-mil-mortes-e-um-rastro-de-fome/#respond Thu, 25 Mar 2021 15:55:58 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/lambe-bolsocaro-marlene-bergamo-folhapress-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2316 Falar de morte constantemente não naturaliza nem diminui a dor e indignação frente a mais de 3 mil perdas em um único dia. Ou 300 mil óbitos em um ano de pandemia. O sentimento de tristeza atravessa nossa existência em cada conversa mediada pelas telas ou reportagens nas redes ou televisão.

Há uma frustração generalizada em toda a população, que após um ano esperava enxergar saídas para esse momento, não um afunilamento da tragédia. Embora a situação seja de calamidade em todo o mundo, aqui, a crise se intensificou em decorrência da uma política de morte (falamos de necropolítica aqui), má gestão e falta de um plano nacional que olhasse para toda a complexidade dos nossos territórios.

Afinal, quem é que pode fazer home office ou até mesmo lavar as mãos? Segundo o Unicef, 3 bilhões de pessoas (40% da população mundial) não têm acesso a água e sabão, fundamentais para se proteger do coronavírus.

No atual país da morte, há um grande número de pessoas pedindo socorro para continuar vivendo. A tragédia na saúde brasileira abriu chagas que já vinham se dilatando há anos, com a falta de direitos mínimos para a sobrevivência, como saúde, moradia e alimentação.

Há algumas semanas, o Governo editou duas MPs (medidas provisórias) que liberam o auxílio emergencial em 2021 para 45 milhões de pessoas. De R$600, o valor baixou drasticamente para R$ 250. O pagamento, porém, varia a partir da composição familiar.

Para as mulheres chefes do lar, a quantia será de R$ 375 e quem vive sozinho vai receber apenas R$ 150 por mês. Governadores de 16 estados apresentaram uma carta ao Congresso pedindo o aumento do auxílio emergencial para R$ 600 por mês.

A primeira etapa do benefício auxiliou 68,2 milhões de brasileiros, mas em setembro de 2020 já reduziu em média 13 milhões de pessoas. Agora, comparando com a primeira etapa de implementação do auxílio, o governo tirou o benefício de 24 milhões de pessoas.

Paola Carvalho, diretora de relações institucionais e internacionais da Rede Brasileira de Renda Básica, explica que isso significa que estados e municípios entraram em colapso, porque além das questões de saúde, terão que dar conta da assistência social da população.

“Isso não é suficiente para a subsistência de nenhuma família brasileira, especialmente em situação de pandemia, porque quando garantimos um auxílio emergencial exatamente para conseguir somas às ações de distanciamento social, de garantia de vida da população, nós não podemos oferecer um benefício muito aquém de uma cesta básica”, explica Paola.

A disputa política em torno do auxílio mostra um total desconhecimento do governo sobre a realidade da população brasileira. Na semana passada fui a um mercado aqui no bairro de Perus, periferia de SP, e uma cesta básica estava custando R$160, 1kg de carne moída R$30, um pacote de 5Kg de arroz não estava menos de R$22 e um botijão de gás nas principais capitais já passou de R$100. A Folha mostrou que no governo Bolsonaro a cesta básica subiu 33%.

“Os valores de R$150 ou R$250 não cobrem nem 1/4 do que seria uma cesta básica, fora as outras necessidades da população. Isso empurra a população para as ruas, nem que seja para pedir alimentação na porta do supermercado como temos visto no Brasil inteiro”, lembra Paola.

No ano passado, o auxílio de R$600 e também de R$1200 para mães chefes do lar garantiram a redução de indicadores de fome e extrema pobreza. Após décadas, o Brasil pode voltar a integrar o mapa mundial da fome.

São mais de 39 milhões de pessoas vivendo na miséria, 14 milhões em situação de extrema pobreza. O índice de desemprego fechou 2020 com taxa média de 13,5%, a maior da série do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), iniciada em 2012. São quase 14 milhões de pessoas desempregadas.

“Nesse novo formato de auxílio proposto pelo governo, que não permite abertura a novos cadastramentos e não garante o mínimo de R$600, nós não conseguiremos garantir condições dignas de distanciamento para a população brasileira”, aponta.

Ela explica que todos os países do mundo que enfrentaram a pandemia e hoje estão no processo de reabertura econômica, passaram por ações que visavam informar de forma precisa a população, sobre temas como vacinação, por exemplo. E ofereceram auxílio emergencial que garantisse aos mais pobres sobrevivência sem precisar ir para a rua.

“Esses países garantiram que os mais pobres tivessem direito ao distanciamento social, a proteger suas famílias e não serem levadas a tomar uma decisão entre sair para as ruas para tentar emprego ou alimentação e correr o risco de contrair o vírus, ou ficar em casa e morrer de fome”.

TEM GENTE COM FOME

A Coalizão Negra por Direitos junto a outras organizações criou a campanha Tem Gente com Fome, que visa angariar fundos para dar de comer a 222.895 famílias em todas as regiões do Brasil que foram mapeadas pelas organizações e redes que coordenam a ação. Para ajudar, entre em temgentecomfome.com.br.

 

Como sua contribuição ajuda/Divulgação Campanha Tem Gente com Fome


“Tem gente com fome” é parte do poema do poeta pernambucano Solano Trindade, que nos deixou em 1974. “Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino, em algum lugar. Se tem gente com fome, dá de comer”, diz um trecho.

Os sites Nós, mulheres da periferia e o Periferia em Movimento listaram 29 campanhas e organizações das periferias de SP e também outras regiões do Brasil que estão doando alimentos, cestas básicas ou amrmitex. Quem tem fome, tem pressa. Ajude! 

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Marielle Franco: recordar sua morte é lutar por justiça https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/#respond Sat, 13 Mar 2021 23:10:45 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/marielle-franco-mario-vasconcellos-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2293 No dia 14 de março de 2018, eu voltava para casa de trem, quando abri o Whatsapp e em todos os grupos uma única mensagem: a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados.

Eu trazia o cansaço no corpo de quem atravessa todos os dias a cidade, rodeada de outros, sentados no chão ou correndo entre um vagão e outro para vender bala a um real. Na tela do celular, um rosto semelhante ao nosso –cabelo, olhos, boca, cor– havia entrado para a triste estatística de um país onde há um genocídio em curso há mais de 400 anos.

Que a morte nos ronda, isso não é novidade. O Atlas da Violência 2020 mostra que, em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil. A cada duas horas uma mulher perdeu a vida , 68% eram negras. 

Mas a morte de Marielle trouxe um recado muito certeiro a uma ala da sociedade à qual me vejo parte. Nos últimos anos, atravessamos algumas pontes. Chegamos ao ensino superior, graças à luta incansável do movimento negro e demais movimentos sociais no Brasil, resultando em políticas das quais me beneficiei: cotas raciais, de escola pública e o Prouni (Programa Universidade para Todos).

Também aprendemos a contar nossas próprias histórias e a escrever leis. Ressignificamos os feminismos a partir de vivências pretas e periféricas e entendemos que sonhar novas geografias também era direito nosso, assim como a arte, a cultura e a diversão.

Mas nada continuava fácil. Aliás, nunca foi. No Rio de Janeiro de 2018, o cenário era bélico, com intervenção federal maquiada de auxílio na segurança pública. No cenário nacional, estávamos literalmente dentro de um golpe que havia derrubado a primeira presidenta do país. Dali a alguns meses, aconteceria as famigeradas eleições de 2018. Entre jogos políticos e fake news, um povo sem esperança.

Eu cheguei em casa atordoada. Não consegui dormir naquele dia 14. No outro, a minha tarefa no trabalho era postar nas redes sociais os vídeos, fotos e homenagens para Marielle. Era uma dor, mas também um abraço entender seu tamanho por todo o Brasil e também no mundo. No fim da tarde, fui para a Av. Paulista, em São Paulo, onde uma multidão se reuniu.

O ato daquela noite era muito mais que apenas uma manifestação. Era um funeral coletivo. Um choro e um abraço conjunto pela morte de alguém que representava um pouco do que a gente estava tentando ser.

Ao encontrar outras mulheres, a gente não dizia nada, só se abraçava. Havia um lamento profundo e sem adjetivos. Essa tristeza não foi só minha. Fiz uma pergunta nas minhas redes sociais essa semana, e algumas amigas autorizaram que eu compartilhasse com vocês os sentimentos que também as marcaram:

Estávamos hospedados no Rio Vermelho, Salvador (BA), para participar no Fórum Social Mundial. Um grupo imenso estava exausto esperando a janta. Uma pessoa da mesa do lado de fora começou a chorar muito sentida. Fui olhar no celular e li bem devagar em voz alta: ‘uma vereadora do Rio morreu. Uma tal de Marielle’. As pessoas da mesa que conheciam Marielle ficaram mal. As pessoas estavam chorando na rua, escoradas nas paredes, na mureta de retenção do mar. Eu não sabia quem era Marielle. Acordei no outro dia chorando. Eu não conhecia nada, mas no dia seguinte ela era uma mulher preta e lésbica, igual eu.” (Gisele Brito)

Lembro de estar em casa sozinha, abrir o Facebook e ler a notícia e começar a chorar. Lembro das paredes encolherem e eu sentir que estava sem esperança para o futuro. Na manifestação eu me senti menos só, com mais possibilidades de pensar alternativas. Senti muita vergonha por não conhecer o trabalho da Marielle antes dela ser assassinada, e de firmar o compromisso de conhecer as mulheres que estavam lutando enquanto vivas, enquanto produtoras de política e conhecimento.” (Cecília Garcia)

“Entrei num surto de depressão muito fundo, a ponto de ser segurada enquanto batia minha cabeça na parede gritando que queria morrer. Comecei a me tratar com antidepressivo. Era a junção de tudo que essa morte significa: uma mulher negra, uma mulher que ama outra mulher, uma mulher de esquerda, uma mulher periférica, uma mulher num cargo público.”  (preferiu não se identificar).

ato marielle franco
Ato na Avenida Paulista em homenagem a Marielle Franco/Renato Schincariol/AFP

MEMÓRIA COLETIVA

Me encontrar com as memórias dessas mulheres é um jeito de compreender e ressignificar a morte de Marielle, assim como somar forças contra aquilo que nos afeta, como o genocídio da população negra, a violência estatal contra nossos corpos e a desigualdade social. 

“Nesse cenário que vivemos, onde temos discursos de ódio e intolerância, o trabalho de memória é de extrema relevância, porque permite que esses grupos possam denunciar as violências que sofrem. A memória coletiva funciona como uma denúncia”, é o que explica Soraia Ansara, docente da USP e doutora em Psicologia Social.

Sendo as memórias coletivas as vivências que recordamos junto às outras pessoas, no momento que recordamos alguém como Marielle, reconhecemos o crime político e garantimos que sua trajetória não seja esquecida.

“Recordar isso potencializa a luta contra o genocídio. E a favor dos Direitos Humanos. Tomar as bandeiras que ela defendia — da população negra, periférica, das mulheres, da população LGBTQI+ — tudo isso é potencializado quando é recordado”, explica Soraia.

“Chegando em casa, dei uma olhada no celular, e a primeira imagem foi a de Marielle sorrindo e a notícia. Não consegui abrir a porta, fiquei parada, imobilizada, as luzes se apagaram. Lembrei de todas as mulheres que estão ou estavam em luta. Queria estar com elas. Chorei. Era um choro de medo e revolta. Naquele dia, não liguei a TV, me desconectei da internet e fiquei com o sorriso de Marielle por muito tempo no meu olhar, na cabeça.” (Carina Zacarias)

“Lembro que estava nos meus primeiros meses em Dublin, Irlanda, no 7º mês pra ser exata. Fiquei muito chocada e triste com a notícia. Lembro que fui tomar café com uma amiga e falamos sobre a importância de fortalecermos umas às outras, mesmo na distância, e do poder curativo da escuta” (Thaís Santana)

“Estava acompanhando a mesa mediada por Marielle, morava sozinha em Buenos Aires e fui tomar banho. Quando me conectei de novo, soube da notícia e me esvaziei.” (Ariane Aboboreira)

“Um sentimento de desesperança e a pergunta de como seria dali pra frente, quando calam a voz de alguém como Marielle. A semana e o mês seguinte foram muito angustiantes.” (Jaqueline Barreto)

Como disse Thaís Santana no relato acima, a escuta tem poder curativo. A memória também. Por isso, é tão importante falar dos nossos mortos e manter o legado daquilo que realizaram em vida presentes. Marielle não vive mais. Não fisicamente. Mas suas ideias e ideais estão agora impressos em leis, escolas, movimentos, nomes de ruas,  praças e o Instituto Marielle Franco reivindica também uma estátua para preservar seu legado.

O Instituto Marielle Franco lançou a campanha #MarçoporMarielleeAnderson para continuar cobrando justiça por suas mortes. Em 12 de março de 2019, aconteceu a prisão de Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, o primeiro como executor e o segundo como motorista do carro. A organização produziu um dossiê sobre os três anos de investigações em torno do assassinato, em uma linha do tempo contando os fatos e uma lista com 14 perguntas sobre o caso.

Rememorar a morte de Marielle é relembrar que esse crime não está congelado no passado. Ainda não temos uma resposta à pergunta ‘Quem mandou matar Marielle?’ e, por isso, ele está acontecendo aqui e agora.

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