Covid-19 e um memorial para guardar as lembranças dos nossos

Por muitas vezes, a História — essa que se escreve com maiúscula — excluiu dos documentos oficiais as memórias de gente anônima, de gente que vive à margem, tanto dos direitos humanos, quanto dos grandes centros, geográficos ou sociais.

Mas é em momentos de crise, como a que vivemos agora, que essa tentativa de apagamento fica ainda mais evidente, reforçando a importância de contar as nossas próprias histórias e a dos nossos mortos.

Até esta terça-feira (7) já eram mais de 65 mil óbitos em decorrência de Covid-19 no país, sendo mais de 16 mil só em São Paulo. A letalidade da doença é muito maior territórios periféricos — onde a presença de negros é maior — não me deixa mentir: o inimigo invisível chamado coronavírus tem uma geografia muito bem localizada: periferias, cortiços, vielas, como já bem cantou Racionais MCs

Um levantamento da Rede Nossa SP mostra que os bairros periféricos de SP com maior número de negros também são aqueles com mais casos de óbitos pela Covid-19: Sapopemba, zona leste de São Paulo. Brasilândia, zona norte. Grajaú, Jardim Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís, na zona sul.

A morte, para nós, chega muito antes da hora. Ela aparece na falta: de saneamento, de saúde, de moradia, de informação. Em um processo contínuo de genocídio dos povos negros e indígenas.

Homenagens no Cemitério Vila Nova Cachoeirinha, em SP/ Léu Britto/Agência Mural

Passado e presente

Eu sou de Perus, na região noroeste da capital paulista. Por muito tempo, o local foi conhecido por conta da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, descoberta no início dos anos 1990. Das 1047 ossadas encontradas no espaço, ao menos 49 foram identificadas como de desaparecidos políticos e as demais eram de jovens executados pelo esquadrão da morte ou de vítimas de meningite durante os anos da Ditadura Militar.

Para contar essa história e mostrar como todas as mortes são políticas, é que, em tempos considerados “normais”, ativistas e moradores realizam trilhas da memória, com visitas ao cemitério e atuação no Centro de Direitos Humanos Carlos Alberto Pazzini (CDDH-CAP)que luta pelo registro da memória da época a partir da periferia.

“Apesar do alto número de óbitos, os militares negavam a existência da epidemia de meningite, assim como o atual governo, que naturaliza a morte”, conta Amanda Vitorino, estudante de Direito e integrante do CDHH. Ela aponta, ainda, como a subnotificação do passado também pode ser encontrada em tempos atuais, diante das tentativas de Jair Bolsonaro (sem partido) em não divulgar os dados sobre a pandemia: “a omissão de dados oficiais faz com que as pessoas não conheçam a real dimensão dos problema que nos atinge. Durante a ditadura, informações foram escondidas para preservar o suposto “milagre econômico”.

Um levantamento realizado pelo Opera Mundi mostra que nos anos de chumbo, mais especificamente em 1974, os casos de meningite não apenas foram escondidos pelo governo da época, como também foram proibidos de divulgação pela mídia. Só naquele ano 2.500 pessoas morreram por conta da doença.

Foto de flores em um cemitério
Cemitério São Luís (SP)/ Léu Britto/Agência Mural

Guardar nossas memórias

É nesse cenário insólito, de dor e de luto, que iniciativas como a Rede Apoio Covid-19 se faz ainda mais importante, ampliando as memórias periféricas que sempre foram silenciadas. Gestado por alguns meses, o site, lançado na segunda-feira (6) reúne uma série de iniciativas voltadas ao amparo das famílias vítimas da pandemia, entre essas o registro das histórias dos entes queridos e outros acolhimentos e cuidados, como oficina de escrita para enlutados.

Iyá Adriana T’Oluaiyê, pedagoga e uma das coordenadoras da coalizão, diz algo muito bonito sobre a existência desse espaço: “a rede tem esse papel de acolher, de dar voz a essas famílias e suas vítimas, com um papel extremamente bonito de olhar para essas famílias e fazer justiça às suas histórias”.

Para ela, as histórias são aquilo de mais valioso que que construímos em vida. “Histórias que merecem ser lembradas. Famílias que merecem ser acolhidas”, diz a Iyá, que enxerga a rede como um espaço de olhar para os nossos — negros, periféricos, indígenas –, para que a gente não repita os erros do passado e, parafraseando a poeta polonesa Wislawa Szymborska, não deixemos que a História arredonde os esqueletos para zero.