Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A urgência de vida em mim: 7 anos sem meu pai https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/a-urgencia-de-vida-em-mim-7-anos-sem-meu-pai/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/a-urgencia-de-vida-em-mim-7-anos-sem-meu-pai/#respond Fri, 02 Jul 2021 21:55:16 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/arquivo-pessoal-jessica-moreira-1-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2423 Desde 2014, o 2 de julho virou uma data a ser lembrada. É o dia da morte do meu pai: o Sebastião, o Tiãozão, o papishow, como eu o chamava. Já contei a história dele aquiSe estivesse vivo, faria 63 anos e já estaria vacinado. Também conheceria o Davi e o Miguel, os netos que chegaram depois da Bia, a única que ele carregou nos braços.

Mas meu pai morreu e, naquele 2 de julho, uma Jéssica também morreu dando espaço a essa que hoje eu sou. Mas  perder essa pilastra não foi, não é fácil. Não é possível reerguê-la, mas ressignificar sim.

Alguns anos antes de sua morte, sonhamos juntos o meu intercâmbio. Ele não tinha condições de pagar sozinho um curso de Inglês, então se juntou à mãe e à vó e, mensalmente, somavam as moedas na cozinha de casa para pagar o boleto da escola de idiomas.

Tião e seu irmão, Tiago crianças/ Arquivo pessoal

Foi assim até o dia que eu disse que não queria mais gastar dinheiro com o curso, pois dali em diante eu mesma iria guardar o que ganhasse para estudar fora.

O pai contou ao meu tio João: “a Jéssica vai para a Austrália”. E no outro dia minha prima Rosana já estava me dando parabéns pela viagem. Eu nem tinha dinheiro. O sonho, porém, agora não era só meu. Estava posto a toda família.

“Então, não precisa pagar conta nenhuma em casa, guarda tudo que conseguir”, foi a ajuda dele. Para quem é da periferia, sabe que apoiar em casa financeiramente é algo quase natural.

Durante dois anos, eu juntei tudo que consegui. Em março de 2014, fechei um pacote para Dublin, Irlanda, e o pai até tomou uma cerveja para celebrar.

Também convenceu a prima Camilla a também ir morar comigo noutro país. Para quem veio do interior de São Paulo, Atibaia, e viveu toda a vida em Perus, extremo noroeste de São Paulo, ver a filha e a sobrinha do outro lado do mundo era um jeito de também realizar seu sonho, mas de uma família toda.

A viagem estava marcada para 28 de julho. A ansiedade batia mais nele e nos familiares do que na gente. Era o sonho coletivo se espraiando.

Mas isso tudo mudou de forma em junho. O pai começou a sentir fortes dores por todo o corpo. Sem convênio, o levamos a uma consulta paga, onde a estupidez do médico o deixou ainda pior. Foi no Pronto Socorro que descobriram que a Diabetes havia chegado a 490 e que, em nível tão alto, estava prejudicando os membros.

A saga de hospital em hospital durou vinte dias. Eu brigava em todos eles. A frieza de enfermeiras e médicos se somava ao frio das próprias paredes. Mas o pior de tudo foi uma chefe de enfermagem que esperou eu chegar para conversar sobre o estado do pai, mesmo com minha mãe e tia na visita: “você é mais esclarecida”.

De repente, o diploma universitário, o curso de inglês, a caminhada árdua de meus pais para oferecer a mim educação, era a desculpa para não oferecer informação, um direito que deve ser garantido independente do grau de escolaridade.

Jéssica Moreira e o Pai, Sebastião /Arquivo pessoal

Num outro dia, o enfermeiro do plantão fez questão de me chamar e mostrar as costas de meu pai em carne viva por conta de um tampão que outro enfermeiro colocou erroneamente. Ele não me deu escolha de não ver.

Do nosso lado, foram dias e dias dormindo no hospital, ou nem conseguindo dormir em casa. Mesmo sendo grave, ele só conseguiu uma vaga na UTI depois de uma semana. Enquanto isso, ficou pelo menos dois dias num corredor e os outros num quarto sem nenhuma estrutura.

Naquele 2 de julho, por volta das 11h, o tempo parou, congelou. Estava a 30 km de casa. Não tive paciência para esperar o trem. Peguei um táxi. Eu tinha pressa. Pressa de estar com os meus, de viver alguma dor, mas desde aquele dia eu passei a ter pressa de viver.

No meu luto, eu não parei. Nem todo luto é igual. Pelo contrário, eu acelerei. Desde então, a idade de meu pai se tornou um limite. Parece mórbido, eu sei, mas custou para mim começar a imaginar que eu poderia ir além dos 56.

Uma pressa em aprender tudo, em me aventurar, em trabalhar e não deixar nada para amanhã. Era como se nada fosse dar tempo.

A pressa também me atropelou e me doeu. Me distanciou de algumas pessoas e me fez querer abraçar o mundo sem conseguir antes me abraçar. Gerou frustrações e o medo de não conseguir chegar. Onde? Nem eu sabia.

Passados sete anos, eu sinto que agora eu começo a me desenhar uma mulher de cabelos grisalhos. Talvez filhos, quem sabe netos. Mas contando aos mais novos a história do Tião.

A viagem atrasou e fui para Dublin em 10 de agosto de 2014, coincidentemente o Dia dos Pais daquele ano. Ele não pôde ver esse sonho-coletivo se tornar palpável, mas todas as vezes que eu caminhava no chão gelado irlandês, eu pensava: eu estou pisando no meu sonho.

Chego aos 30, sendo 7 deles em luto, mas querendo viver, pra continuar fazendo aquilo que o pai ensinou: sonhar.

“Meu pai me ensinou a sonhar”/ Arquivo pessoal

 

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Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/nao-foi-troca-de-tiros-kathlen-foi-assassinada/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/nao-foi-troca-de-tiros-kathlen-foi-assassinada/#respond Wed, 09 Jun 2021 19:06:03 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/kahtlen-romeu-instagram-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2410 Infelizmente, a política mais atual do Brasil continua sendo a política da morte. O alvo? Corpos pretos, periféricos e favelados.

Há tempos não consigo nem processar os tantos lutos que nos atravessam, pois logo vem mais um, e outro e outro. Não que isso seja novo. Sabemos que andar na rua e correr o risco de morrer não vem de hoje.

Mas eu sinto que há uma crueldade sem disfarce que faz questão de sublinhar a que veio. Não consigo escrever sobre Kathlen de Oliveira Romeu sem me imaginar ou imaginar outras mulheres iguais a mim. 

Kathlen tinha apenas 24 anos de idade. Era designer de interiores e modelo. Estava grávida de 14 semanas e suas postagens nas redes sociais mostram uma mulher feliz na construção de uma família preta, à espera de sua primeira criança. Cheia de planos, e vida. Literalmente, carregando uma vida no ventre.

Caminhava ao encontro de sua tia e foi assassinada em uma terça-feira à luz do dia na Comunidade do Lins, no Rio de Janeiro. Não, não dá pra ser feliz e caminhar tranquilamente na favela onde você nasceu.

Sua morte é um retrato cruel e doloroso do que significa ser uma mulher negra no Brasil hoje. Demorei muito para escrever esse texto. Faz um mês  que narrei sobre a chacina de Jacarezinho. Me senti num interminável déjà-vu, repetindo as mesmas palavras sobre como o racismo mata pessoas que vêm de onde eu venho, como a necropolítica rege o cotidiano de favelas e periferias.

Já repararam como as balas ditas “perdidas” sempre encontram um alvo? Desde 2017, 15 gestantes foram baleadas e oito morreram no Rio de Janeiro, apontam dados da ONG Fogo Cruzado.

Isso se chama racismo estrutural e integra as estratégias de genocídio em curso da população negra. De novo: necropolítica, política de morte desenhada pelo Estado, onde ele escolhe quem vai viver e quem pode ser descartável. Não foi troca de tiros, Kathlen foi assassinada.

Não há “meus sentimentos” capaz de exprimir a dor e a fúria de ver mais um corpo negro tombando. Não há cartilha, empatia capaz de abraçar a dor,  a palavra ainda não dá conta da barbárie. A morte chegou antes da vida, matando não só a mãe, mas a possibilidade de futuro de uma família preta que se constituía.

No período da escravidão, as mulheres negras não podiam viver a maternidade. Elas eram separadas de seus filhos. Elas não podiam ter uma família. Para uma mulher negra, a possibilidade de se relacionar afetivamente e viver sua maternidade é uma forma de existência. É o mais alto da resistência.

Por isso, hoje, eu não tenho muito o que dizer. Não aguento mais me repetir.

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Rir é resistência: o evitável adeus de Paulo Gustavo e de 3 mil pessoas https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/rir-e-resistencia-o-evitavel-adeus-de-paulo-gustavo-e-de-3-mil-pessoas/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/rir-e-resistencia-o-evitavel-adeus-de-paulo-gustavo-e-de-3-mil-pessoas/#respond Wed, 05 May 2021 15:24:51 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/paulo-gustavo-reproducao-redes-sociais-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2364 por Camila Appel e Jéssica Moreira

Às 21h12 da terça-feira (4), o Brasil recebeu com dor a notícia da morte do humorista Paulo Gustavo. Além de Paulo, só ontem, outras 3.025 pessoas morreram em decorrência do novo coronavírus.

Ao todo, são mais de 412 mil vidas interrompidas por uma doença para a qual não há tratamento precoce com comprovação científica, mas já há vacina. Por falta de vontade política, o imunizante não chegou a tempo de minimizar os efeitos do vírus no corpo de todos aqueles que partiram. Aglomerações, sem a proteção básica de uma máscara, foram incentivadas. A “gripezinha”, ironizada. 

A morte de Paulo, esse rosto que bateu recordes de bilheteria e fez milhões irem ao cinema para rir, unifica, mas não diminui, as dores distribuídas por todo país. Cada um de nós conhece alguém que morreu ou que está, neste momento, internado entre a vida e a morte. 

O luto nacional que estamos vivendo há mais de um ano encontra-se com os lutos individuais. Os anônimos, as dores próximas ou longínquas de quem convive com o inexplicável do ‘nunca mais te ver’. O desaparecimento repentino da pessoa amada não cabe na palavra que passa a representá-lo: saudades.

Os familiares, amigos e fãs de Paulo estabeleceram uma corrente de fé e esperança pelas redes sociais no último mês. Dialogou com todos que estavam vivenciando processos semelhantes, em vigília pela cura de seu ente querido.

É nosso dever registrar esse momento para além dos números e dos gráficos. Trazer a alegria dos tantos Paulos que partiram sem fazer a última piada. 

Paulo era jovem, tinha apenas 42 anos. Segundo a humorista e amiga pessoal Tata Werneck, não apresentava comorbidades. A última crise de asma do artista foi há 10 anos, reafirmando a surpresa de uma morte fora do grupo de risco. As mortes na faixa dos 40 e 49 anos cresceu nas estatísticas: 626% em janeiro e 419,23% em fevereiro, o maior aumento entre todas as faixas etárias.

Estamos em choque. Não pelo inesperado. Mas a constatação de chegarmos num ponto de tristeza e descaso profundos.

A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da pandemia começou a receber depoimentos no dia da morte de uma referência nacional. Uma vítima que trazia para si as qualidades de quem “não está na hora de morrer”.

Ele fazia o bem, distribuindo alegrias e sorrisos. Ele era casado com o dermatologista Thales Bretas. Tinham dois filhos bebês, Romeo e Gael, fruto de uma longa tentativa de reprodução assistida. Quebraram mais um tabu, falando abertamente sobre isso, ajudando outras pessoas a se abrirem. 

Paulo Gustavo é uma referência nacional, trouxe avanços para nossa cultura e fortaleceu a comunidade LGTBQI+, na pele de Dona Hermínia, inspirada em sua mãe, e em várias outras personagens. Era considerado um gênio. Representava o Brasil no que temos de melhor. E foi morto pelo nosso pior.

Lemos que a morte é inconveniente, chega sem pedir licença. Ela não espera um projeto ser concluído, palavras de amor serem finalmente declaradas. Mas as mortes por conta da Covid-19 poderiam, sim, ser prevenidas por ações estratégicas melhor elaboradas.

Nossos governantes ignoraram a pandemia durante muito tempo. Dão o exemplo da crueldade e da displicência. São o oposto de Paulo Gustavo. Rejeitaram diversas ofertas de vacinas. Entre elas, a de 70 milhões de doses que chegariam até dezembro do ano passado, da Pfizer: a melhor vacina que existe no mundo contra o novo coronavírus.


“O presidente Bolsonaro expôs a vida e a saúde dos brasileiros a grandes riscos ao tentar sabotar medidas de proteção contra a propagação da Covid-19. O Supremo Tribunal Federal e outras instituições se empenharam para proteger os brasileiros e para barrar muitas, embora não todas, as políticas anti direitos de Bolsonaro. Essas instituições precisam permanecer vigilantes”, disse a diretora adjunta da Human Rights Watch no Brasil, Anna Lívia Arida, diante da 31ª edição do relatório mundial da organização.

A Covid-19 encontra outras, tantas, desigualdades em solo brasileiro: a insegurança alimentar, a falta de saneamento básico e a necessidade de continuar saindo para trabalhar, como mostramos em texto deste blog quando o Brasil bateu a marca de 300 mil mortos em meio a um rastro de fome. Por trás disso, a necropolítica: uma política de morte, que define quem vive e quem morre.

Um levantamento da CNN com base em boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde mostra que a chance de uma pessoa negra morrer pelo novo coronavírus é 38% maior que a de um branco. Pardos e pretos também representam 57% dos mortos pela doença. A Agência Pública também mostrou que o Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras. 

Aqui, damos o nosso adeus e nos juntamos ao abraço coletivo de todos aqueles que, assim como a família de Paulo Gustavo, estão sofrendo em decorrência da partida de uma pessoa que amam. 

O ofício de Paulo Gustavo era usar sua genialidade para o humor. Se “rir é um ato de resistência”, vamos resistir realçando ainda mais nosso ofício também. Escrever, criar, denunciar. A morte em si não é evitável, mas a morte por esse vírus já é. A prioridade é, deveria ser, desde o início, vacinar a população.

No fim, a morte sempre nos arrebata. Uma ou mil. Uma ou quase duas mil. Uma ou mais de 3 mil. Por minuto, por hora ou por anos. Ela não deixa ignorar o medo e a indignação. 

A mensagem na virada de ano, na Globo, do ator Paulo Gustavo traz a importância das artes para nossas vidas. A arte dramática, o cinema, o teatro, artes plásticas, a dança, a cultura em geral. Ele se declara orgulhoso em ser artista. Uma classe que tanto tem sofrido nesse ano pandêmico.

Ele se despede:

“Contra o preconceito, a intolerância, a mentira e a tristeza já existe vacina. É o afeto, é o amor. Então, diga o quanto você ama a quem você ama e a quem você ama. Mas, não fique só na declaração, ame na prática, na ação. Amar é ação, amar é arte. Muito amor, gente. Até logo.”


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Marielle Franco: recordar sua morte é lutar por justiça https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/13/marielle-franco-recordar-sua-morte-e-lutar-por-justica/#respond Sat, 13 Mar 2021 23:10:45 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/marielle-franco-mario-vasconcellos-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2293 No dia 14 de março de 2018, eu voltava para casa de trem, quando abri o Whatsapp e em todos os grupos uma única mensagem: a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados.

Eu trazia o cansaço no corpo de quem atravessa todos os dias a cidade, rodeada de outros, sentados no chão ou correndo entre um vagão e outro para vender bala a um real. Na tela do celular, um rosto semelhante ao nosso –cabelo, olhos, boca, cor– havia entrado para a triste estatística de um país onde há um genocídio em curso há mais de 400 anos.

Que a morte nos ronda, isso não é novidade. O Atlas da Violência 2020 mostra que, em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil. A cada duas horas uma mulher perdeu a vida , 68% eram negras. 

Mas a morte de Marielle trouxe um recado muito certeiro a uma ala da sociedade à qual me vejo parte. Nos últimos anos, atravessamos algumas pontes. Chegamos ao ensino superior, graças à luta incansável do movimento negro e demais movimentos sociais no Brasil, resultando em políticas das quais me beneficiei: cotas raciais, de escola pública e o Prouni (Programa Universidade para Todos).

Também aprendemos a contar nossas próprias histórias e a escrever leis. Ressignificamos os feminismos a partir de vivências pretas e periféricas e entendemos que sonhar novas geografias também era direito nosso, assim como a arte, a cultura e a diversão.

Mas nada continuava fácil. Aliás, nunca foi. No Rio de Janeiro de 2018, o cenário era bélico, com intervenção federal maquiada de auxílio na segurança pública. No cenário nacional, estávamos literalmente dentro de um golpe que havia derrubado a primeira presidenta do país. Dali a alguns meses, aconteceria as famigeradas eleições de 2018. Entre jogos políticos e fake news, um povo sem esperança.

Eu cheguei em casa atordoada. Não consegui dormir naquele dia 14. No outro, a minha tarefa no trabalho era postar nas redes sociais os vídeos, fotos e homenagens para Marielle. Era uma dor, mas também um abraço entender seu tamanho por todo o Brasil e também no mundo. No fim da tarde, fui para a Av. Paulista, em São Paulo, onde uma multidão se reuniu.

O ato daquela noite era muito mais que apenas uma manifestação. Era um funeral coletivo. Um choro e um abraço conjunto pela morte de alguém que representava um pouco do que a gente estava tentando ser.

Ao encontrar outras mulheres, a gente não dizia nada, só se abraçava. Havia um lamento profundo e sem adjetivos. Essa tristeza não foi só minha. Fiz uma pergunta nas minhas redes sociais essa semana, e algumas amigas autorizaram que eu compartilhasse com vocês os sentimentos que também as marcaram:

Estávamos hospedados no Rio Vermelho, Salvador (BA), para participar no Fórum Social Mundial. Um grupo imenso estava exausto esperando a janta. Uma pessoa da mesa do lado de fora começou a chorar muito sentida. Fui olhar no celular e li bem devagar em voz alta: ‘uma vereadora do Rio morreu. Uma tal de Marielle’. As pessoas da mesa que conheciam Marielle ficaram mal. As pessoas estavam chorando na rua, escoradas nas paredes, na mureta de retenção do mar. Eu não sabia quem era Marielle. Acordei no outro dia chorando. Eu não conhecia nada, mas no dia seguinte ela era uma mulher preta e lésbica, igual eu.” (Gisele Brito)

Lembro de estar em casa sozinha, abrir o Facebook e ler a notícia e começar a chorar. Lembro das paredes encolherem e eu sentir que estava sem esperança para o futuro. Na manifestação eu me senti menos só, com mais possibilidades de pensar alternativas. Senti muita vergonha por não conhecer o trabalho da Marielle antes dela ser assassinada, e de firmar o compromisso de conhecer as mulheres que estavam lutando enquanto vivas, enquanto produtoras de política e conhecimento.” (Cecília Garcia)

“Entrei num surto de depressão muito fundo, a ponto de ser segurada enquanto batia minha cabeça na parede gritando que queria morrer. Comecei a me tratar com antidepressivo. Era a junção de tudo que essa morte significa: uma mulher negra, uma mulher que ama outra mulher, uma mulher de esquerda, uma mulher periférica, uma mulher num cargo público.”  (preferiu não se identificar).

ato marielle franco
Ato na Avenida Paulista em homenagem a Marielle Franco/Renato Schincariol/AFP

MEMÓRIA COLETIVA

Me encontrar com as memórias dessas mulheres é um jeito de compreender e ressignificar a morte de Marielle, assim como somar forças contra aquilo que nos afeta, como o genocídio da população negra, a violência estatal contra nossos corpos e a desigualdade social. 

“Nesse cenário que vivemos, onde temos discursos de ódio e intolerância, o trabalho de memória é de extrema relevância, porque permite que esses grupos possam denunciar as violências que sofrem. A memória coletiva funciona como uma denúncia”, é o que explica Soraia Ansara, docente da USP e doutora em Psicologia Social.

Sendo as memórias coletivas as vivências que recordamos junto às outras pessoas, no momento que recordamos alguém como Marielle, reconhecemos o crime político e garantimos que sua trajetória não seja esquecida.

“Recordar isso potencializa a luta contra o genocídio. E a favor dos Direitos Humanos. Tomar as bandeiras que ela defendia — da população negra, periférica, das mulheres, da população LGBTQI+ — tudo isso é potencializado quando é recordado”, explica Soraia.

“Chegando em casa, dei uma olhada no celular, e a primeira imagem foi a de Marielle sorrindo e a notícia. Não consegui abrir a porta, fiquei parada, imobilizada, as luzes se apagaram. Lembrei de todas as mulheres que estão ou estavam em luta. Queria estar com elas. Chorei. Era um choro de medo e revolta. Naquele dia, não liguei a TV, me desconectei da internet e fiquei com o sorriso de Marielle por muito tempo no meu olhar, na cabeça.” (Carina Zacarias)

“Lembro que estava nos meus primeiros meses em Dublin, Irlanda, no 7º mês pra ser exata. Fiquei muito chocada e triste com a notícia. Lembro que fui tomar café com uma amiga e falamos sobre a importância de fortalecermos umas às outras, mesmo na distância, e do poder curativo da escuta” (Thaís Santana)

“Estava acompanhando a mesa mediada por Marielle, morava sozinha em Buenos Aires e fui tomar banho. Quando me conectei de novo, soube da notícia e me esvaziei.” (Ariane Aboboreira)

“Um sentimento de desesperança e a pergunta de como seria dali pra frente, quando calam a voz de alguém como Marielle. A semana e o mês seguinte foram muito angustiantes.” (Jaqueline Barreto)

Como disse Thaís Santana no relato acima, a escuta tem poder curativo. A memória também. Por isso, é tão importante falar dos nossos mortos e manter o legado daquilo que realizaram em vida presentes. Marielle não vive mais. Não fisicamente. Mas suas ideias e ideais estão agora impressos em leis, escolas, movimentos, nomes de ruas,  praças e o Instituto Marielle Franco reivindica também uma estátua para preservar seu legado.

O Instituto Marielle Franco lançou a campanha #MarçoporMarielleeAnderson para continuar cobrando justiça por suas mortes. Em 12 de março de 2019, aconteceu a prisão de Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, o primeiro como executor e o segundo como motorista do carro. A organização produziu um dossiê sobre os três anos de investigações em torno do assassinato, em uma linha do tempo contando os fatos e uma lista com 14 perguntas sobre o caso.

Rememorar a morte de Marielle é relembrar que esse crime não está congelado no passado. Ainda não temos uma resposta à pergunta ‘Quem mandou matar Marielle?’ e, por isso, ele está acontecendo aqui e agora.

Leia também:
Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural?

O luto como política de resiliência
Precisamos falar sobre o luto das mulheres negras 

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Dois anos depois de Brumadinho: luto, lama e luta https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/dois-anos-depois-de-brumadinho-luto-lama-e-luta/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/dois-anos-depois-de-brumadinho-luto-lama-e-luta/#respond Mon, 25 Jan 2021 22:55:51 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/rompimento-barragem-brumadinho-isis-medeiros-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2247 Joeliza Feitosa trabalhava em Belo Horizonte (MG) quando ouviu as primeiras notícias sobre o rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em 25 de janeiro de 2019. Sua maior preocupação era a filha, moradora das margens do Rio Paraopeba, em Juatuba.

Saiu correndo, com receio da chegada do rejeito no local. Pediu para a filha desocupar a casa. Ela ficou, a lama não atingiu a residência. Desde aquele dia, no entanto, tudo mudou na vida da família.

“Logo que a lama chegou, a cor do rio Paraopeba mudou. O cheiro do rio mudou. A gente não chegou perto porque ficou com medo. Mas dava pra perceber a devastação da fauna, dos peixes, da flora e, quando os dias foram passando, a morte das plantações”, relembra Joeliza, que hoje é aposentada e milita no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Já havia se passado três dias da tragédia quando a jornalista Lu Sudré chegou a Brumadinho. Era segunda-feira à tarde, as pessoas começavam a mensurar o tamanho da tragédia. Havia uma estrutura no Córrego do Feijão onde as pessoas podiam checar a lista de corpos encontrados, o que marcou sua cobertura.

“Uma das coisas mais perversas desse processo de luto era a espera e a falta de informação, porque você via as pessoas exaustas esperando algum tipo de dado e, às vezes, demorava para chegar a lista. Entrei em contato com a espera e falta de informação, que era o que mais atormentava as pessoas”, conta a jornalista do grupo Brasil de Fato.

Rio Paraopeba (MG)/ Nilmar Laje
Rio Paraopeba (MG)/ Nilmar Laje

Até hoje, foram contabilizadas 272 vítimas fatais, com ainda 11 desaparecidos. Mas não há número ou descrição que dê conta da dor e perda dos entes e também de todo um estilo de vida subsidiada por meio do rio. 

Um levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica realizado alguns dias depois do rompimento, mostra que pelo menos 305 dos quase 550 quilômetros do Rio Paraopeba foram contaminados por rejeitos. Foram 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que não apenas poluíram o rio, mas também toda uma comunidade que vivia à base da agricultura e pesca. A Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg) estima que entre 350 e 400 produtores rurais foram impactados. 

“Depois do envenenamento do rio, a Vale acabou com a nossa vida, com o nosso futuro, com nossos sonhos, com os nossos investimentos. Nosso sonho foi desmoronado. Nós temos um ao outro. Aos dois anos do crime, o que nos move é a luta, a esperança pela punição e, principalmente, para que a vida comece a valer mais do que o lucro”, diz Joeliza, que, assim como outros moradores e movimentos sociais, entende a mineradora como a verdadeira culpada da tragédia.

O custo de vida é alto e, com a pandemia, os preços dos alimentos subiram ainda mais. Antes da contaminação, ainda era possível se alimentar das plantas ou animais. “Não se pode mais nem chegar próximo ao rio, há placas recomendando que não se tenha nenhum contato”.

Mesmo passados dois anos, ainda não houve justa reparação à comunidade atingida. Havia uma ação no valor de R$54 bilhões, sendo R$26 bi para os danos sofridos pelo Estado e 28 bi aos danos morais e sociais da comunidade. 

A mineradora Vale tenta agora negociar o valor com o Estado a portas fechadas, sem a participação dos atingidos. Em nota, a empresa reconhece sua responsabilidade e diz que até o momento foram pagas 8.700 indenizações individuais.

Em dezembro de 2020, em torno de 1 mil atingidos realizaram manifestação no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) para reivindicar participação nas negociações com a Vale, prorrogando o auxílio emergencial para a população até janeiro de 2021. Hoje, é a Vale que decide quem recebe ou não a ajuda.

A água para beber precisa ser comprada, pois mesmo quando ela escorre da torneira fornecida pela Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), vem suja e com mal cheiro. “Nós temos diarreia, dores estomacais, alergias, incômodos diversos. E obrigados a ter uma despesa a mais com água mineral”.

Joeliza Feitosa durante manifestação em prol dos atingidos em Brumadinho/Nívea Magno

ATINGIDOS A LONGO PRAZO

Poucos meses depois, a filha de Joeliza engravidou. Seu bebê tem oito meses, mas ao contrário dos outros dois filhos, a criança sofre com inúmeros problemas de saúde, que a família entende como resquício da contaminação local. 

“Ele tem manchas na pele, problemas constantes nos rins, infecção de urina. Temos medo que seja em função da contaminação por metais pesados dada a proximidade que eles moram do rio Paraopeba. Até hoje os médicos não conseguem identificar, temos fé em Deus que não seja algo muito grave, mas o medo existe”.

Problemas de pele, coceira, alergia e outras doenças respiratórias são os problemas mais comuns, mas a depressão também assola a vida das comunidades atingidas. “Muita gente com depressão e houve muitas tentativas de suicídio, pois muitas pessoas estão sem nenhuma expectativa. Não conseguem mais planejar, sonhar ou resolver seus problemas diários. Aqui é uma cidade onde o emprego já era escasso. A situação foi se agravando com o crime da Vale e só piorou com a pandemia. As pessoas sentem na pele, na mente e no corpo a falta d’água, de comida e de trabalho”, relata Joeliza.

LUTO COLETIVO

A psicóloga Camilla Veras, mestre e doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP, lançou na última semana o livro “Lama, luto e luta” ( disponível para venda pela Editora Dialética), onde narra sua experiência de campo diante do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG),  no ano de 2015. O livro reflete sobre os lutos coletivos e a ressignificação por meio da luta comunitária.

“O sofrimento não é apenas individual, e poderia ter sido mitigado e minimizado com prevenção, segurança e monitoramento”, afirma. “Há muitas perdas em um processo como esse. Perda do modo de vida antes do rompimento; perda do rio, perda da terra, do trabalho, da casa onde fazia o jantar com a família ou de uma fase da vida. Existe um antes e um depois na vida das pessoas. São vários lutos, é difícil falar de um só. Este luto do campo mais simbólico afeta a vida das pessoas, pois fica como registro e marca do acontecimento, resultando em sofrimento psíquico”, explica.

O livro traz o conceito de trauma psicossocial, do salvadorenho Ignácio Martín Baró. Ele explica que, diferente do trauma individual, o trauma psicossocial é projetado como mecanismo de Estado, que além de produzir as políticas de morte, também se baseia nas políticas de destruição simbólica. 

“A própria  pandemia mostrou como o Estado brasileiro tem banalizado a morte. Não existe somente uma irresponsabilidade, mas um projeto que aposta na ausência de qualquer proteção social. O sofrimento não é de ordem natural.

O livro denuncia o modelo colonial e predatório da mineração brasileira, que, segundo Camilla “arranca da nossa terra riquezas, destrói territórios, contamina o solo e as águas, explora trabalhadores e despeja rejeitos e dejetos sob populações campesinas, ribeirinhas, quilombolas e indígenas. Mesmo depois de 5 anos, há pessoas lutando para serem reconhecidas como atingidas, lutando por indenizações, reassentamento. São situações que não foram resolvidas e que agravam o luto”.

ESCUTA ATIVA

Camilla alerta que em situações como essas os voluntários devem agir em consonância com a política pública local, até mesmo para evitar mais especulação da dor da população. “Há, muitas vezes, uma fetichização do sofrimento. Existem órgãos coordenados pela política pública. Caso se proponha a ajudar, é importante estar respaldado e integrado às diretrizes e orientações da política de saúde local. É importante tratar com respeito as populações e histórias, para não ser mais um agente de violação. Estabelecer uma escuta sensível que não abra questões que sejam difíceis de acompanhar e ajudar a dar o contorno necessário”.

Parece óbvio, mas é preciso pedir autorização antes de gravar ou fotografar uma pessoa. “Perceber o território, muitas vezes, é tão valioso quanto um relato. O relato é pré-moldado para o que se espera, já que há tanta gente fazendo as mesmas perguntas. Às vezes, numa caminhada ou uma procissão você consegue perceber ainda mais coisas”, diz a psicóloga.

Com o passar dos dias, a jornalista Lu Sudré entendeu que tinha que tomar cuidado com algo muito simples, mas que ainda não tinha se dado conta: o tempo verbal de suas perguntas. “Percebi que elas estavam no meio fio entre entender que a morte havia chegado para o filho e ter uma esperança de que ainda havia vida. Dizer ‘quantos anos tem seu filho’ e não ‘tinha’, por exemplo. Na primeira vez que eu falei no passado, a pessoa respondeu no presente. Comecei a tomar cuidado com o tempo verbal das coisas que estava falando para não fazer aquela pessoa sofrer ainda mais, não antecipar o processo de luto que ela estava vivendo”, relembra.

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Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/vamos-falar-sobre-o-privilegio-branco-de-morrer-de-morte-natural/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/12/14/vamos-falar-sobre-o-privilegio-branco-de-morrer-de-morte-natural/#respond Tue, 15 Dec 2020 00:29:20 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/parem-de-nos-matar-creditos-luna-costa-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2182 Eu poderia iniciar este texto dizendo que faz dez dias que as primas Emily Victória da Silva e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos foram assassinadas na porta de casa, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro (RJ). 

Ou pouco mais de um ano do massacre de Paraisópolis (SP), onde 9 jovens foram mortos por estarem se divertindo no espaço público.

Ou quase um mês do assassinato em público de João Alberto Freitas, em um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre (RS). Mais de mil dias que não temos respostas de quem matou, quem mandou matar Marielle Franco.

Ou algumas horas da violenta morte de…

A cada 23 minutos uma pessoa negra é morta no Brasil. Antes de você terminar esse texto, pode ser que mais uma mulher ou homem negro seja morto em algum canto do nosso país.

Dói. Chega a doer tanto que, muitas vezes, paralisa. Faz mais de duas semanas que estou tentando escrever esse texto, mas a palavra faltou, a palavra se dissipa toda vez que não dá conta da realidade. Mesmo escrevendo sobre o tema recorrentemente, nada disso é parte do ciclo natural da vida. Que sejam dados nomes aos bois. Parafraseando Chico Science, o Estado é racista e mata gente inocente.

Muitas vezes me pergunto sobre o papel de minha escrita no mundo, enquanto a cada palavra mais um de nós cai. A frustração bate forte. Recordo que para eu falar sobre isso hoje, muita gente veio antes de mim (Luiz Gama, Antonieta Barros, Almerinda Farias Gama) e tantos outros que, em seu tempo, ou também neste agora utilizam suas canetas para denunciar o racismo estrutural. Prossigo.

‘Enquanto a gente morre de bala’

Diante da morte de João Alberto entrei em contato com um texto de Tatiana Nascimento. A palavreira, doutora em estudos da tradução e brasiliense o escreveu em agosto, diante do alvejamento de Jacob Black por policiais nos Estados Unidos. “O direito à morte natural é um privilégio branco” é o verso-título do poema que se segue:

enquanto a gente morre de bala
y c diz que morre de dó
enquanto a gente morre de fome
y vc diz que morre de pena
enquanto a gente morre de raiva
y você diz que morre de culpa

mas não morre, não,
né, vossa mercê?
de soco
de susto
de medo
de sua pele

alva; que o alvo
do ódio letal, até na
boca-tua piedade blazê,

é
todo
mundo
que não
parece gente

feito o sinhô acha

que gente deva de ser.

#paremdenosmatar

O poema materializou o hiato que vejo entre mortes brancas e negras e que, tantas vezes, não dou conta de traduzir. “essa disparidade entre as vidas que são tratadas como importantes (brancas) y as que são dizimáveis (racializadas como negras, indígenas) é o ponto de percepção pra escrita desse poema, mas também pra noção de que o maior privilégio branco desfrutável quase incontestavelmente é a prerrogativa de humanidade ser branca, remeter a um sujeito branco”, explica a palavreira.

Tatiana faz questão de manter seus dizeres em caixa baixa, imprimindo na escrita a individualidade que se perde em um mundo que exige de nós, negros e negras, um único padrão. “a colonialidade é uma máquina constante atuando na produção de valores de vida e valores de morte hierarquicamente distribuídos por raça/cor/etnia”, diz.

No Ensaio “racismo visual / sadismo racial: quando (?) nossas mortes importam” (n-1, 2020), a escritora analisa como a produção imagética audiovisual, a mesma que nutre imaginários, senso comum e pedagogias sobre o viver, pode acabar se utilizando da banalização das mortes para sustentar um moralismo antirracista da própria branquitude.

“nossas mortes são oferecidas em sacrifício pra que as consciências brancas antirracistas sejam ativadas. e se isso não é o sadismo racial colonial com requintes, é o quê?”, questiona.

Segundo o Atlas da Violência 2020, 75,7% das vítimas de homicídios são pretas e pardas. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%. Segundo a ONG Rio da Paz, 12 crianças foram mortas por armas de fogo no estado do Rio de Janeiro em 2020.

Para Tatiana, a violência pode ser encarada como a metodologia de estruturação do racismo, mas que muitas vezes acontece de modo imperceptível e até banal, já que a maioria da população foi acostumada a conviver com a morte negra estampada estereotipadamente e de forma sensacionalista na televisão.

“mesmo que a alta frequência de assassinatos de jovens negros no brasil seja desesperadora pra nós, e pouco discutida criticamente, ela é transparente no que abunda: as pessoas foram acostumadas pelo “jornalismo policial” a almoçar assistindo um desfile de corpos negros mortos na tela de tv. mortes “normalizadas” e tratadas como bem público alimentam a sensação de segurança do ‘cidadão de bem'”, pontua a palavreira.

Ato Vidas Negras Importam/
Ato Vidas Negras Importam/Junho de 2020 (SP)/ Semayat Oliveira/NMP

Necropolítica: a política da morte 

Mas por que essas mortes são normalizadas? Ao longo de 2020, me deparei muitas vezes com a palavra necropolítica ou política da morte. Eu tinha uma vaga ideia do que poderia significar, mas não compreendia muito bem como aplicá-la. Cansa ter que aprender tantos conceitos para descrever aquilo que se vive na prática, ao atravessar a rua ou entrar no supermercado, mas é preciso aprofundar o assunto para debatê-lo de frente. Não apenas entre nós, alvo certeiro e cansado dessa estrutura racista, mas também a branquitude. 

O termo foi criado por Achille Mbembe, filósofo africano de Camarões, negro, historiador e teórico político que se debruça sobre isso no ensaio Necropolítica. “Mbembe diz que necropolítica é uma política da morte adaptada pelo Estado. É um fenômeno, onde o Estado vai escolher aqueles corpos que são descartáveis ou não são descartáveis. Aquelas pessoas que o Estado mata ou deixa morrer”, contextualiza a advogada, mestre e doutora em Direito pela USP, Allyne Andrade

Exemplo disso é quando o Estado deixa de construir uma política de prevenção às populações negras e pobres diante da pandemia de Covid-19. A ONG Instituto Polis divulgou um levantamento com dados de 1 de março a 31 de julho que apontam que homens negros foram os que mais morreram por Covid-19.

A necropolítica opera também quando o Estado não regulamenta normas ambientais, não impedindo que garimpeiros, grandes empresas e  grileiros avancem sobre o território indígena, levando doenças e a contaminação da água, está permitindo que a morte seja levada para povos indígenas.

Segundo a especialista, o corpo negro é visto, muitas vezes, como um corpo criminoso, em especial os homens negros. “A polícia assassina pessoas comuns porque acha que elas são perigosas e a gente já viu pessoas mortas segurando guarda-chuva, andando na sua própria moto ou carro. Nós temos uma polícia militarizada que está em constante guerra. Quem são os inimigos? Supostamente, o inimigo [para eles] seria o tráfico de drogas. Mas a gente vê que os inimigos são os corpos negros, periféricos e subalternaizados”.

‘A cor da violência policial: a bala não erra o alvo’, novo relatório da Rede de Observatório da Segurança, mostra o retrato da dinâmica racista da letalidade brasileira em diferentes estados brasileiros:  97% dos mortos pela polícia na Bahia são negros; Ceará não notifica a cor dos mortos em 77% dos casos; Nove em cada dez mortos pela polícia são negros em Pernambuco; 51% da população do RJ é negra, mas entre os mortos pela polícia negros são 86% e São Paulo vê aumento da letalidade policial e entre os mortos 64% são negros. 

A necropolítica pode operar também na educação, quando a política educacional se nega a disseminar de determinados saberes –como história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo– ou, então, quando há falta de investimento da escola pública. “Isso também ceifa vidas. Embora não seja uma morte matada, uma morte física, é uma morte das potencialidades, uma morte do espírito, é uma morte do desenvolvimento”, complementa Allyne.

É importante lembrar, no entanto, que embora o termo esteja sendo utilizado agora, as práticas de morte vêm de muito antes, com o próprio processo de escravização e colonização do território e dos corpos. “Esse não é um processo que começa hoje, é um processo que começa com a colonização, com a escravidão, a escravidão que marca esse corpo negro como um corpo descartável, como um corpo matável”, relembra a advogada.

A força do movimento negro contra a necropolítica

O cenário é desanimador, mas é imprescindível trazer o importante trabalho que vem sendo desenvolvido pelos movimentos negros e indígenas na denúncia do racismo contra nossos corpos. Se hoje os dizeres “Vidas Negras Importam” e “Parem de nos matar” ganham as ruas de todo o país, é porque há muita gente trabalhando nisso há muitos anos. Destaco abaixo o trabalho de algumas organizações que vêm ampliado a discussão antirracista no Brasil, entendendo, porém, que os movimentos são muitos e vale revisitar essa lista muitas vezes ainda:

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‘Num largo quintal de memórias, ressignifico o luto em meio à pandemia’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/18/num-largo-quintal-de-memorias-ressignifico-o-luto-em-meio-a-pandemia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/18/num-largo-quintal-de-memorias-ressignifico-o-luto-em-meio-a-pandemia/#respond Wed, 18 Nov 2020 16:48:12 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/volaurentina-creditos-barbara-almeida-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2156 A ‘ficha’, como dizem, caiu mais latente no meio da pandemia, já que a gente não pode arredar pé, fugir de casa, respirar outra coisa que não seja a lembrança. A pandemia comprimiu tudo, inclusive as dores.

 

Quando eu nasci, vó Laurentina tinha 67 anos. Fui a penúltima neta de uma família de 16. Moramos juntas desde que cheguei ao mundo, sobrando pra mim os mimos, as broncas e ‘ó lá a louça, Jércinha’. Nosso quintal sempre foi cheio. Cadeado aberto a quem quisesse chegar. A casa abastecia os vizinhos quando faltava água na vila e, mesmo pequena, acolhia toda a família no almoço de domingo.

Ali, paravam também a mulher do bairro Gato Preto –que eu nunca soube o nome– pra quem a vó reservava mensalmente uma cesta de mantimentos, e o Divino Espírito Santo, uma pomba branca num manto vermelho carregada por um homem que recebia moedas.

Eu cresci assim, vendo a bondade da vó  quarar a roupa debaixo do rancho. Ouvindo Eli Correia, enquanto cuidava da gente ou da criação – como bem chamava os animais da casa. Em agosto de 2020, o Bidu, nosso derradeiro cachorro, partiu, aos quase 12 anos. E, de repente, me dei conta que ele foi a última ‘criação’ que conheceu a vó Laurentina. Contei muito dela já no Nós, mulheres da periferia.

vó
Vó Laurentina no processo de produção de farinha de rosca/Jéssica Moreira

Era 18 de novembro de 2019. Eu estava voltando de uma viagem ao Chile. O avião saía às 15h. Aqui em Perus, no mesmo horário, a vó sofria o primeiro desmaio. Ambulância. Correria. Eu no avião, sem nem imaginar. São Paulo, Aeroporto de Guarulhos. Às 19h, botei os pés em solo paulista, a vó em algum outro solo que não esse, que não mais entre a gente. Ia embora minha passarinha.

Desde aquele dia, os santos da vó me miram sem parar, me acompanhando com os olhos, mesmo grudados na parede. O chão de cera esfola os pés em falta e as baratas, até as baratas, devem olhar profundo para os meus medos caducos.

Eu acho que até as vigas da casa tombam tristeza, rachadas de todas as chuvas protegidas por santa Bárbara. As fotos pretas, brancas, plantadas, todas, no fundo da lata de leite em pó de 1997, estão todas tristes. O rádio ainda deve gritar, silenciosamente: rezas, padre nosso, ave maria, crendospai. mas agora sem ela pra ouvir. Todos, tudo, num luto tão profundo, tão doído, que seria injusto dizer que o luto afeta só a mim. Ele está em tudo.

Vó Laurentina costurando/Jéssica Moreira

Algumas horas antes de partir, o cachorro Bidu entrou em casa, foi até o quarto da vó, cheirou o chinelo que ela usava, e que ainda fica debaixo do guarda-roupa. No outro dia, ele também já não estava aqui. Quintal esvaziado outra vez, despertando os outros lutos. Mais antigos ou mais recentes? Tanto faz, o tempo do luto não é cronológico, não tem linearidade.

Faz 1 ano hoje da passagem da vó, mas essa é a primeira vez que eu falo sobre ela no pretérito. Até aqui, era como se eu ainda devesse chegar na ponta dos pés em casa pra não acordá-la no quarto do lado.

A ‘ficha’, como dizem, caiu mais latente no meio da pandemia, já que a gente não pode arredar pé, fugir de casa, respirar outra coisa que não seja a lembrança. Eu realmente achava que, depois da partida dela, eu e meus primos, tios e tias iríamos ficar mais perto, até mesmo para conseguir aquecer um ao outro e cuidar da perda de nossa matriarca juntos.

Vó Laurentina morreu aos 96 anos, em 18 de novembro de 2019

Mas a pandemia comprimiu tudo, inclusive as dores. Agora, sou eu aqui, minha mãe e prima, num largo quintal de memórias, tendo que se reinventar sem a vó, dia após dia. Fazia só quatro meses da ausência dela, quando a pandemia se alastrou. Não deu tempo de mudar a casa, pintar a fachada ou trocar o móvel de lugar.

O que fizemos foi ressignificar. No canto da cama, colocamos o meu computador. Aqui, leio, faço poesia e escrevo pra vocês. Olho a janela, a mesma que ela mirava céu todo dia, e tento impregnar de vó Laurentina o meu olhar sobre as telhas do vizinho, o pipa enroscado na janela em dias claros ou de chuva forte.

Você também pode ter o seu relato sobre o processo de luto publicado aqui no Blog Morte Sem Tabu. Basta enviar o seu relato para o e-mail mortesemtabu@gmail.com com nome e sugestão de foto. 

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100 mil mortes e por que o luto é uma questão de saúde pública https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/08/09/100-mil-mortes-e-por-que-o-luto-e-uma-questao-de-saude-publica/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/08/09/100-mil-mortes-e-por-que-o-luto-e-uma-questao-de-saude-publica/#respond Sun, 09 Aug 2020 20:36:42 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/cemiteriovilaformosa-laloalmeida-folhapress-320x213.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2058 Ultrapassamos os cem mil mortos. São cem mil lembranças. Cem mil nomes. Cem mil faces. Cem mil rupturas abruptas que irão ser sentidas nas mais diversas dimensões por aqueles que permanecem em uma nação que nada fez, nada fará, para dar freio ao inimigo invisível que beira todo e qualquer lugar que estejamos.

Não é possível simplesmente ‘tocar a vida’. Precisamos lembrar que as 100 mil perdas são resultado de uma necropolítica (conceito elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe), que, entre outros elementos, expõe uma sociedade ancorada a políticas que definem quem vai viver e quem vai morrer.

Não é difícil identificar que a morte por Covid-19 bateu ainda mais forte nos territórios periféricos. A doença encontrou a já existente vulnerabilidade social, a fome e outras doenças, como diabetes e pressão alta, que acometem principalmente mulheres e homens negros. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 1 de agosto, que tinha uma amostra de 93.563 mortes, pretos e pardos eram 40% dos óbitos. É de todos, mas principalmente do luto dessas famílias que estamos falando.

‘1 milhão de enlutados’

Não são só números de um boletim as vidas que o Brasil deixou pra trás. São histórias, muitas não contadas, que formam teias cheias de afeto, de trajetórias e planos de vida que levarão tempo e energia para serem ressignificadas por quem ficou.

Estamos falando de familiares que não foram ouvidos e que, arrisco a dizer, não serão cuidados em sua dor, tanto individual, quanto coletiva. A morte, tantas vezes tabu, agora está escancarada, mas será que estamos realmente acolhendo quem está enlutado, entendendo que falar de luto também é uma questão de saúde pública?

A psicóloga Gabriela Casellato, organizadora dos livros “Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade” e “O Resgate da Empatia: suporte ao luto não reconhecido” explica que a pandemia seguinte à de Covid-19 pode se tornar a de saúde mental.

“Falamos que a morte de uma pessoa pode deixar, ao menos, outras 11 enlutadas, sendo isso apenas uma média do número de pessoas com vínculos mais estreitos com quem faleceu. Se multiplicarmos esse número dos 100 mil ao menos por 10, já estaremos falando de 1 milhão de enlutados em decorrência de Covid-19 só no Brasil”, explica.

De maneira geral, a cada mil enlutados, ao menos 250 vão desenvolver problemas de origem física e psicológica que devem ser olhados com atenção. “Nesse momento, cerca de 250 mil podem estar nesse estado. Muitas pessoas que, futuramente, serão pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde), mas que poderiam ser cuidadas desde o início com tratamento preventivo para amenizar o impacto, para diminuir os custos ou o tempo do tratamento”.

O luto atravessa tudo

Muita gente entende o luto apenas como um processo de tristeza, mas a psicóloga explica que, ao perder alguém, quem fica terá sua vida modificada nos mais diferentes níveis: psicológico, físico, financeiro, afetivo, amoroso, sendo um abalo geral, uma vez que a vida da pessoa que fica não volta mais ao estado anterior, fazendo com que ela passe por um processo de reinvenção.

“Isso demora tempo, requer energia, mas nem sempre a sociedade está disposta a esperar o enlutado. Todo mundo apressa o enlutado para voltar para uma situação de como era antes: o empregador, as redes sociais, a própria família”, alerta.

“Às vezes, até o enlutado se sente desconfortável ao se sentir feliz. É complexo, não é tão simples quanto aquela frase que diz que ‘com o tempo melhora’, pois não é com o tempo que melhora, mas sim como a gente lida com o tempo, como cuida do tempo e como faz pra se ajudar naquele tempo”.

Como apoiar nossos vizinhos, familiares e amigos?

Por experiência própria, posso dizer que a resposta não pode ser simplista. Como já dissemos aqui, nenhum luto é igual, mesmo quando acontece dentro da mesma família. Por isso, eles também não podem ser tratados de maneira semelhante. O que funciona a uma pessoa, pode não ser ser afetivo para a outra.

“Não temos como generalizar o luto. Cada um vai viver uma experiência diferente. Isso vai depender das circunstâncias da morte. Depende do histórico prévio da pessoa enlutada, se ela tem suporte ou não, se tem com quem conversar. Temos que olhar para cada situação e entender o tamaho do buraco para cada pessoa”, é o que diz Gabriela.

Geralmente, não sabemos muito bem o que fazer, então, nos precipitamos com frases e conselhos que podem não ajudar, mas até atrapalhar a dor do outro. Ela deixa algumas dicas para apoiar quem está passando por um processo de luto:

  • Escutar com atenção, respeitando a dor do outro com empatia é um bom começo
  • O enlutado não precisa de uma frase de efeito ou conselho, mas sim sentir que sua dor é válida e entendida pelo outro
  • Perguntar o que está precisando, abrir espaço para o enlutado poder se expressar é também uma possibilidade
  • Para além de ajuda emocional, é possível oferecer ajudas como ir ao supermercado, trazer um prato de comida e ir embora, por exemplo.

Leia aqui outros textos sobre luto do Blog Morte Sem Tabu

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Precisamos falar sobre o luto das mulheres negras https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/24/precisamos-falar-sobre-o-luto-das-mulheres-negras/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/24/precisamos-falar-sobre-o-luto-das-mulheres-negras/#respond Sat, 25 Jul 2020 00:16:26 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/nivia-foto-homenagem-rodrigo-320x213.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2035 Rodrigo Tavares Raposo nasceu antes da hora, em 7 de fevereiro de 1996. Pressa de vida. Cabeludo, com costeletas e corpo miúdo, até hoje o cordão umbilical está muito bem guardado, seguindo o costume da família. Aos 2 anos, já girava o mundo do quintal de casa em cima de uma bicicleta. Crescido, fez caratê, capoeira, natação e futebol. Acreditava em gente e que Nova Iguaçu (RJ), o seu lugar, era o maior celeiro de talento jovem que poderia existir. 

Rodrigo quando ainda era um bebê/Arquivo pessoal

Falar de Rodrigo, seu jeito e seus gostos é contar a história que Nivia Raposo, 45, gostaria de ter lido nas manchetes dos jornais em outubro de 2015, quando o filho mais velho foi arrancado dela praticamente na frente de casa, pela milícia de Nova Iguaçu, com um tiro nas costas.

Ele tinha 19. Iniciava carreira no Exército Brasileiro. Queria seguir os passos do avô e da família de militares. Acreditava na justiça, mas, em um dos fins de semana de folga do quartel, foi contraditoriamente morto após se recusar a pagar “pedágio” de um policial que o acusava de roubo em um bairro vizinho. Até hoje, ninguém foi preso. Nenhuma justiça foi feita.

“Quando o Estado mata, mata até aqueles que agem corretamente. Ensinei meu filho a respeitar as pessoas e a ser um homem com todos os superlativos, para simplesmente perdê-lo para sujeitos com desvios de conduta dentro de uma instituição que, teoricamente, é destinada a nos ‘servir e proteger'”.

Nivia prefere contar em mensagens escritas essa história. “Escrevo pra não esquecer”. Conscientemente, é o jeito que encontrou para garantir o direito à memória do filho com suas próprias palavras, trazendo a verdadeira identidade de Rodrigo.

“Viver o luto a cada dia não é fácil. Pode passar até 30 anos. Vai fazer cinco em 17 de outubro e eu rememoro a cada dia, quando leio as mensagens dos amigos no Facebook dele. Ele sempre se fez muito presente na vida dos amigos e, às vezes, se estendia aos familiares dos amigos. Ele era um ser humano iluminado”.

O luto atravessa tudo. Em alguns dias, Nivia prefere ficar sozinha, mais introspectiva, mas sempre pode contar com o filho mais novo, Thiago, que também faz questão de rememorar a vida do irmão. Em outros, ela planta girassóis. “Foi Rodrigo quem me ajudou a fazer esse jardim”.

Nivia durante fala do Observatório das Favelas (RJ)

Mães de Maio, de Junho, de Julho

Para uma mulher que teve a vida do filho ceifada pelo Estado, viver o luto passa principalmente pela memória coletiva. Aquela contada junto a outras mulheres, com o ouvido perto uma da outra, mas também os olhos, as mãos, pois são corpos que vivem a mesma dor.

“Temos um Estado que já está acostumado a apagar as histórias dos nossos ancestrais. Cabe a mim, como mãe, amplificar nossas lutas e me somar a todas que perderam seus filhos”, reforça Nívia.

Débora Silva, líder do Mães Maio, diz que essa luta vem do útero e que, mulheres como ela e Nivia, irão parir um novo Brasil. “As mães dizem que luto, para nós, é verbo. Do luto nós vamos à luta. Nosso sistema é capitalista, classista, racista e patriarcal. Mas acredito que essas mulheres são intelectuais orgânicas. Damos um um giro decolonial  no momento que o sistema criminalizou e marginalizou os corpos pretos caídos ao chão”.

Além de professora, Nivia também é militante da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, onde se apoia e também acolhe outras mulheres em situações semelhantes à sua. Muitas têm conseguido romper a dolorosa barreira do silêncio e se unido para falar das tristezas ainda encostadas, das memórias das suas crianças pequenas ou mais crescidas, mas sempre cobrar por justiça aos filhos e filhas. É isso que fizeram também ao realizar uma live no dia 23 julho, quando a Chacina da Candelária, no RJ, completou 27 anos.

Em uma conversa apenas com familiares de vítimas do Estado, acompanhei as falas beiradas de saudade, mas também cheias de acolhida e companheirismo. Além de Nivia, Bruna Silva, mãe de Marcos Vinicius, Rafaela Matos, mãe de João Pedro Matos, Vanessa Salles, mãe da Ágatha Félix, e tantas outras histórias que, algumas vezes, nós, gente com caneta e câmera na mão, precisamos nos atentar mais. [Abaixo, leia alguns trechos da live]

Maternidade ultrajada

O dossiê “A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil” aponta que as mulheres pretas vivem violência tanto no esforço quanto no isolamento e solidão para tentar proteger a vida de seus filhos. O medo não é à toa.

“Por trás destes números há também a violência não letal, mas intensa e continuada, que afeta milhares de mulheres negras, em sua maioria mães dos e das jovens assassinados. Estas violências são vividas tanto nos intensos esforços que desenvolve, geralmente em isolamento e solidão, para proteger e tentar preservar a vida de seus jovens, mas também após a morte destes, ao longo de suas ações para recuperar a dignidade dos jovens assassinados”, aponta o relatório.

Uma das lutas de Nívia é ressignificar a memória do filho Rodrigo/Arquivo pessoal

O Atlas da Violência de 2019, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que, em 2017, 75,5% das pessoas assassinadas no país eram negras — a maior proporção da última década, evidenciando o racismo estrutural de nossa sociedade.

O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) apontou em um estudo que, por dia, 32 crianças e adolescentes de 10 a 19 anos são assassinados no Brasil. Só em 2017, foram 11,8 mil, sendo 82,9% negros e do sexo masculino.

O que é morte tabu na periferia? 

Esse blog se chama Morte Sem Tabu. Mas, diferente da Nivia, falar da morte dos filhos ainda é um grande tabu para muitas das mulheres negras e periféricas que perderam seus meninos e meninas nas mãos do Estado ou outras violências que acometem nossos territórios.

“Elas têm medo das pessoas que mataram seus filhos e de serem perseguidas. Têm mais medo quando é o Estado que comete o crime, porque veem os policiais passando em frente às suas casas a todo momento”, é o que diz o jornalista Kaique Dalapola, que já passou pela Ponte Jornalismo e hoje atua no Portal R7, dedicando-se sempre a denunciar assassinatos da população negra nas periferias.

“Quando a pessoa é morta pela polícia, a família tem receio de denunciar. A maioria das famílias só aceita contar a história de maneira anônima e, mesmo assim, muitas vezes, os familiares não levam adiante”, aponta.

“Muitas vezes, a única que luta até o fim é a mãe. Em nenhum momento desacredita. Os outros familiares acabam naturalizando a morte e entendendo que o Estado está cumprindo seu papel”, diz o jornalista, que tenta sempre respeitar os tempos, os medos e os lutos de cada família entrevistada.

Na semana que conversamos, ele investigava a chacina de Embu Guaçu, extremo sul de SP, onde passou boa parte de sua adolescência. Diferente de outros jornalistas, que não têm relação direta com o território, Kaique sabe as realidades que permeiam suas reportagens.

“É sempre o mesmo perfil: jovem, negro e da periferia”, conta ele, que realiza uma postagem de 8h em 8h em sua conta no Twitter com o nome de uma pessoa negra da periferia assassinada pelo Estado. Segundo dados de boletins coletados pelo jornalista, mesmo em meio a uma pandemia, o maio de 2020 foi o maio mais letal da história de São Paulo, desde os crimes de 2006, que contabilizou 137 mortes (contabilizadas). Em 2020, o número foi de 68.

Violência em tempos de pandemia

Mesmo em meio a uma pandemia, as mortes não cessaram. Do começo do ano para cá, a polícia militar do Rio de Janeiro assassinou ao menos 741 pessoas. Em São Paulo não é diferente, até aqui foram 442 mortos pela PM.  Segundo a Plataforma Fogo Cruzado, na região metropolitana do RJ, só no primeiro semestre de 2020, 17 crianças foram atingidas por tiros na região, o que representa 70% a mais se comparado a 2019. Seis morreram baleadas.

É por isso, inclusive, que as mães vítimas de violência uniram seus lutos e dores na live citada, para pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) aprovar a ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), apelidada como “ADPF das Favelas”, construída coletivamente, e que tem como objetivo proibir as operações policiais em tempos de pandemia.

Foi já em meio à quarentena que o garoto João Pedro Mattos, de 14 anos, foi assassinado depois de levar um tiro na barriga dentro do quintal da própria tia, durante uma operação policial em São Gonçalo (RJ). “O estado não acabou apenas com os sonhos dele, mas com uma família inteira. Quero externar meu repúdio ao ato que o Estado comete com os jovens das comunidades. Se fosse na zona sul, tenho certeza que não invadiria atirando. É muito bom saber que não estamos sozinhos nessa luta”, foi parte do depoimento de Rafaela Matos, mãe de João Pedro Matos.

Veja outros depoimentos abaixo ou assista à Live >> Mães contra as operações: em memória das vítimas das chacinas da Candelária e de Acari

“Perdemos nossos filhos na mão do Estado, mas ainda temos mais filhos. Essa lei pode garantir a vida dessas crianças (…) Assim como essas mães, meu filho também foi morto com tiro nas costas. Para eles, não basta matar, eles têm que criminalizar. Todo dia nasce uma mãe na dor. Estamos cansadas de enterrar os nossos filhos”,  diz Bruna Silva, mãe de Marcos Vinicius, morto enquanto ia para a escola.

“O STF precisa aprovar essa lei para evitar que várias mães continuem perdendo seus filhos assim”, é o que disse também Catarina Ribeiro, que perdeu o filho há 78 dias, assassinado após uma operação policial em Nova Iguaçu, em maio.

“Poucas foram as vezes que falei publicamente. O caso do meu filho não foi para a mídia. Pode passar o tempo que for, a dor pela perda do filho será sempre a mesma. Esses meninos foram arrancados das nossas vidas. Eles também tiraram parte da minha identidade. Eu deixei de ser a Catarina para ser a mãe do Rogério. A minha vida dali pra cá, acabou (…) Ao mesmo tempo que meu filho perdeu a identidade, a cada dia que passa eu quero viver minha identidade para falar da dele”.

“Eu não sou a mãe do auto de resistência. Quando sujam nosso filho, sujam a gente. Eu deixei de ser a mãe do Lucas de Azevedo Alpino para ser a mãe do meliante. Eu não sou a mãe do meliante, eu sou a mãe do Lucas. Não vamos trazer nossos filhos de volta, mas evitamos que isso aconteça com outros Lucas, outros Matheus”, diz também Laura Azevedo, para citar a importância da lei neste momento e também de contar as memórias dos filhos.

“A dor continua aqui. É a mesma dor. Quando ouvimos outras mães falando, revivemos a dor com muita força. Há seis anos venho nessa luta por memória, verdade e justiça. Não basta apenas matar o corpo, eles precisam dar legitimidade a esses assassinatos. Eles assassinam a dignidade e memória de nossos filhos. Infelizmente, nossos filhos não vão voltar. Se a gente não morreu quando arrancaram nossos filhos da pior maneira possível, a gente tem uma missão: lembrando as Mães de Acari,  que são as pioneiras nessa luta, nesse enfrentamento: a gente tem que lutar”, diz Ana Paula Oliveira é mãe do Jonathan Lima

“Há muitas mães que seus filhos não estão mais aqui. Quando acontece com a gente, a gente consegue visualizar dentro das famílias o quão grande é essa dor e a saudade que vimos. Ágatha, menina como todas as outras crianças, que tinha sonhos e queria viver. Ágatha também foi executada. Eu sigo tentando sobreviver um dia após o outro. Eu vivo por ela. Eu sigo acreditando em Deus. O mundo é mau, mas podemos nos juntar para ficar bem. Que, um dia, a gente reencontre nossos filhos, seja em outro mundo, no céu, mas acredito que vou reencontrar minha filha. Quero dizer às mães que vivem a mesma dor: vocês estão vivas, e continuem vivendo para o amor do filho de vocês. De alguma forma, eles estão vendo a dor e batalha”, disse Vanessa Salles, mãe da menina Ágatha Felix.

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