Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Rir é resistência: o evitável adeus de Paulo Gustavo e de 3 mil pessoas https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/rir-e-resistencia-o-evitavel-adeus-de-paulo-gustavo-e-de-3-mil-pessoas/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/05/rir-e-resistencia-o-evitavel-adeus-de-paulo-gustavo-e-de-3-mil-pessoas/#respond Wed, 05 May 2021 15:24:51 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/paulo-gustavo-reproducao-redes-sociais-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2364 por Camila Appel e Jéssica Moreira

Às 21h12 da terça-feira (4), o Brasil recebeu com dor a notícia da morte do humorista Paulo Gustavo. Além de Paulo, só ontem, outras 3.025 pessoas morreram em decorrência do novo coronavírus.

Ao todo, são mais de 412 mil vidas interrompidas por uma doença para a qual não há tratamento precoce com comprovação científica, mas já há vacina. Por falta de vontade política, o imunizante não chegou a tempo de minimizar os efeitos do vírus no corpo de todos aqueles que partiram. Aglomerações, sem a proteção básica de uma máscara, foram incentivadas. A “gripezinha”, ironizada. 

A morte de Paulo, esse rosto que bateu recordes de bilheteria e fez milhões irem ao cinema para rir, unifica, mas não diminui, as dores distribuídas por todo país. Cada um de nós conhece alguém que morreu ou que está, neste momento, internado entre a vida e a morte. 

O luto nacional que estamos vivendo há mais de um ano encontra-se com os lutos individuais. Os anônimos, as dores próximas ou longínquas de quem convive com o inexplicável do ‘nunca mais te ver’. O desaparecimento repentino da pessoa amada não cabe na palavra que passa a representá-lo: saudades.

Os familiares, amigos e fãs de Paulo estabeleceram uma corrente de fé e esperança pelas redes sociais no último mês. Dialogou com todos que estavam vivenciando processos semelhantes, em vigília pela cura de seu ente querido.

É nosso dever registrar esse momento para além dos números e dos gráficos. Trazer a alegria dos tantos Paulos que partiram sem fazer a última piada. 

Paulo era jovem, tinha apenas 42 anos. Segundo a humorista e amiga pessoal Tata Werneck, não apresentava comorbidades. A última crise de asma do artista foi há 10 anos, reafirmando a surpresa de uma morte fora do grupo de risco. As mortes na faixa dos 40 e 49 anos cresceu nas estatísticas: 626% em janeiro e 419,23% em fevereiro, o maior aumento entre todas as faixas etárias.

Estamos em choque. Não pelo inesperado. Mas a constatação de chegarmos num ponto de tristeza e descaso profundos.

A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da pandemia começou a receber depoimentos no dia da morte de uma referência nacional. Uma vítima que trazia para si as qualidades de quem “não está na hora de morrer”.

Ele fazia o bem, distribuindo alegrias e sorrisos. Ele era casado com o dermatologista Thales Bretas. Tinham dois filhos bebês, Romeo e Gael, fruto de uma longa tentativa de reprodução assistida. Quebraram mais um tabu, falando abertamente sobre isso, ajudando outras pessoas a se abrirem. 

Paulo Gustavo é uma referência nacional, trouxe avanços para nossa cultura e fortaleceu a comunidade LGTBQI+, na pele de Dona Hermínia, inspirada em sua mãe, e em várias outras personagens. Era considerado um gênio. Representava o Brasil no que temos de melhor. E foi morto pelo nosso pior.

Lemos que a morte é inconveniente, chega sem pedir licença. Ela não espera um projeto ser concluído, palavras de amor serem finalmente declaradas. Mas as mortes por conta da Covid-19 poderiam, sim, ser prevenidas por ações estratégicas melhor elaboradas.

Nossos governantes ignoraram a pandemia durante muito tempo. Dão o exemplo da crueldade e da displicência. São o oposto de Paulo Gustavo. Rejeitaram diversas ofertas de vacinas. Entre elas, a de 70 milhões de doses que chegariam até dezembro do ano passado, da Pfizer: a melhor vacina que existe no mundo contra o novo coronavírus.


“O presidente Bolsonaro expôs a vida e a saúde dos brasileiros a grandes riscos ao tentar sabotar medidas de proteção contra a propagação da Covid-19. O Supremo Tribunal Federal e outras instituições se empenharam para proteger os brasileiros e para barrar muitas, embora não todas, as políticas anti direitos de Bolsonaro. Essas instituições precisam permanecer vigilantes”, disse a diretora adjunta da Human Rights Watch no Brasil, Anna Lívia Arida, diante da 31ª edição do relatório mundial da organização.

A Covid-19 encontra outras, tantas, desigualdades em solo brasileiro: a insegurança alimentar, a falta de saneamento básico e a necessidade de continuar saindo para trabalhar, como mostramos em texto deste blog quando o Brasil bateu a marca de 300 mil mortos em meio a um rastro de fome. Por trás disso, a necropolítica: uma política de morte, que define quem vive e quem morre.

Um levantamento da CNN com base em boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde mostra que a chance de uma pessoa negra morrer pelo novo coronavírus é 38% maior que a de um branco. Pardos e pretos também representam 57% dos mortos pela doença. A Agência Pública também mostrou que o Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras. 

Aqui, damos o nosso adeus e nos juntamos ao abraço coletivo de todos aqueles que, assim como a família de Paulo Gustavo, estão sofrendo em decorrência da partida de uma pessoa que amam. 

O ofício de Paulo Gustavo era usar sua genialidade para o humor. Se “rir é um ato de resistência”, vamos resistir realçando ainda mais nosso ofício também. Escrever, criar, denunciar. A morte em si não é evitável, mas a morte por esse vírus já é. A prioridade é, deveria ser, desde o início, vacinar a população.

No fim, a morte sempre nos arrebata. Uma ou mil. Uma ou quase duas mil. Uma ou mais de 3 mil. Por minuto, por hora ou por anos. Ela não deixa ignorar o medo e a indignação. 

A mensagem na virada de ano, na Globo, do ator Paulo Gustavo traz a importância das artes para nossas vidas. A arte dramática, o cinema, o teatro, artes plásticas, a dança, a cultura em geral. Ele se declara orgulhoso em ser artista. Uma classe que tanto tem sofrido nesse ano pandêmico.

Ele se despede:

“Contra o preconceito, a intolerância, a mentira e a tristeza já existe vacina. É o afeto, é o amor. Então, diga o quanto você ama a quem você ama e a quem você ama. Mas, não fique só na declaração, ame na prática, na ação. Amar é ação, amar é arte. Muito amor, gente. Até logo.”


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O adeus a Alipio Freire, o homem que queria a Lua https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/o-adeus-a-alipio-freire-o-homem-que-queria-a-lua/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/o-adeus-a-alipio-freire-o-homem-que-queria-a-lua/#respond Fri, 30 Apr 2021 22:55:54 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/alipio-freire-creditos-ivan-trimigliozzi-memorial-da-resistencia-de-sp-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2349 por Tatiana Merlino*

Um “revolucionário de veludo”. Foi assim que um amigo definiu Luiz Eduardo Merlino, meu tio, jornalista e militante que não pude conhecer porque foi morto em 1971, aos 23 anos, em decorrência das torturas comandadas por Carlos Alberto Brilhante Ustra durante a ditadura civil-militar. Pego emprestada a expressão “revolucionário de veludo”, no entanto, para descrever Alipio Freire, meu amigo que morreu na quinta-feira passada, 22 de abril, de Covid-19.

Voz grave, sorriso largo, cabelos brancos longos amarrados num rabo. Bigodes, óculos, pele morena, dedos longos. Alto e altivo, caminhava com uma bengala, vestia calça jeans e all star. Um charme. Foi assim que o conheci pessoalmente, no início dos anos 2000, embora já o conhecesse por meio de relatos, textos, e livros sobre a ditadura, como o “Tiradentes: um presídio da ditadura”, organizado por ele próprio.

Era um homem de grandes ideais, enorme generosidade e gentileza no trato. “Rigoroso na análise e generoso no gesto”, como alguém escreveu esses dias. Tratava a todos de forma igual, sem distinção, como também contam inúmeros relatos sobre ele.

Alipio Freire ao lado de seu próprio autoretrato, na exposição "Pequenas Insurreições" que ele fez a curadoria/Daniel Garcia/Teoria e Debate
Alipio Freire ao lado de seu próprio autoretrato, na exposição “Pequenas Insurreições” que ele fez a curadoria (Daniel Garcia/Teoria e Debate)

Logo que nos conhecemos, Alipio me contou que conheceu Merlino, que haviam trabalhado juntos na imprensa. Ele foi uma das pessoas que me ajudou, ao longo de vários anos, a juntar histórias para recriar um tio que nunca conheci. Ajudou a plantar flores na lápide que habitava o meu peito. E me ajudou a conhecer mais sobre a ditadura, apresentou relatos e personagens, contou dezenas de histórias. Foi fundamental na minha formação de jornalista e defensora de direitos humanos com os temas ligados à tortura, à memória, à justiça e à militância contra a ditadura.

Foram duas décadas de companheirismo e amizade. Alipio foi e é umas das grandes referências na minha vida. Uma mistura de tio, padrinho, companheiro de luta, amigo, mestre.

Nossos primeiros anos de convivência foram no Brasil de Fato, jornal que ele ajudou a fundar e onde fui uma das primeiras a integrar a redação. Nós, os jornalistas da equipe de redação, participávamos das reuniões do conselho editorial, do qual faziam parte figuras importantes de vários setores da esquerda brasileira, entre eles, Alipio.

Eram aulas sobre conjuntura política brasileira. As análises de Alipio eram feitas de pé, voz grave, pausas, cabeça erguida. Foi também numa dessas reuniões, em 2006, que ele levantou-se quando um dos participantes fez uma consideração que desagradou a um outro. O segundo, irritado, dirigiu-se ao primeiro, de forma pouco amigável. Alipio, que estava sentado entre os dois, ergueu-se e levantou também sua bengala, impedindo que algo ali acontecesse.

Alipio começou a participar do dia a dia da redação. Todos ganhamos apelidos hilários, malucos ou impronunciáveis. Ele era o mais velho, mas o mais jovem entre nós. Foram tantas conversas no bar, piadas, risadas, histórias. Alipio chegava na redação jogando balas nas nossas mesas. E escrevia os editoriais. Ao terminá-los, pedia sempre a opinião de um de nós. Era erudito e humilde. Sempre nos tratou como iguais. Nas reuniões de pauta e do conselho, fazia desenhos e bilhetes. Nos e-mails, sempre começava com um “grande e querida camarada”.

Além das firmes posições de esquerda e da generosidade, tinha um humor único e fazia piadas que só ele podia fazer, como bem lembrou a amiga Dafne Melo, que trabalhou conosco no jornal. Nesses dias de balanço da morte do meu amigo, fui me reencontrar com ele em dezenas de mensagens de e-mail, entre elas uma em que dizia “há duas coisas das quais não podemos abrir mão:1. De nos indignarmos. 2. De dar risada –inclusive de nós mesmos, e sobretudo dos nossos inimigos”.

Alípio Freire em uma das saídas do Cordão da Mentira. Créditos: Sato do Brasil/Jornalistas Livres.
Alípio Freire em uma das saídas do Cordão da Mentira. (Sato do Brasil/Jornalistas Livres)

Quando comecei a namorar o Igor Ojeda, que o Alipio dizia ter “o melhor texto de sua geração”, pouco depois Igor foi morar na Bolívia, para trabalhar como correspondente do jornal. Alipio, vendo-me saudosa do namorado, inventou um apelido boliviano para mim, pelo qual seguiu chamando-me até hoje, como no último recado deixado em minha caixa postal do celular, dias antes de ser internado.

Já não sei qual era o ano, mas era um dia do fechamento do Brasil de Fato. Um carro da ENEL parou na frente da casa de esquina da Eduardo Prado, no Campos Elíseos, e funcionários da empresa preparavam-se para cortar a luz. Alipio saiu à porta e subiu na escada que estava apoiada no poste, onde a energia seria cortada. Os homens ficaram atônitos e um deles disse, por rádio: “Tem um vovô aqui na escada”. A luz não foi cortada.

Alipio foi um grande lutador pela verdade, memória e justiça pelos crimes cometidos pela ditadura militar. Escreveu livros, organizou debates, fez filmes, foi a escolas, participou de atos. E esteve ao lado de nós, a família de Luiz Eduardo Merlino, durante as ações que movemos contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu assassino. Esteve nas audiências, nos atos, uma presença forte e solidária.

Em 2008, quando entramos com a primeira ação civil declaratória, que tinha a intenção de exigir que o Estado reconhecesse a responsabilidade de Ustra nas torturas e assassinatos de Merlino, no período em que as audiências aconteceram, comecei a receber telefonemas ameaçadores. “Agitados os cachorros do doutor Adalberto”, disse uma voz masculina, logo depois que eu voltei de um passeio com meus cachorros. Doutor Adalberto era meu pai, já falecido àquela época, delegado de polícia que encontrou o corpo de Merlino no IML logo após seu assassinato.

As ligações seguiram. “Seus terroristas”. Havia também chamadas insistentes de um número identificado, que não dizia nada quando eu atendia. Era uma noite de fechamento do Brasil de Fato, quando ligamos de volta para o número que me telefonava sem parar. Havia uma caixa postal e uma voz masculina dizia “xoxota estuprada”. Nesta noite, ao escrever o editorial, Alipio relatou as ameaças. E ao voltar para casa, fui ‘escoltada’ por Alipio e por Danilo Cesar. Quando chegamos ao destino, Alipio desceu do carro e disse algo ao segurança do prédio. Eu jamais me esqueci ou me esquecerei desta noite.

Dias depois, quando houve a audiência no Tribunal de Justiça de São Paulo, além de ex-presos, amigos e jornalistas, também compareceu um conhecido policial civil que cometeu crimes no Dops durante a ditadura. Foi nos intimidar e falar para os jornalistas ali presentes que éramos terroristas. Alipio também estava ali, corajoso e solidário.

A solidariedade e amizade de Alipio seguiram. Ele esteve, esteve sempre, como definiu bem esses dias Delana Corazza, também amiga de Alipio. Esteve presente à cerimônia no Tuca, quando ganhei meu primeiro prêmio de jornalismo, em 2009. Esteve presente no aniversário de um ano da minha filha Catarina, a quem, num gesto tipicamente de Alipio, presenteou com uma edição de bolso do Manifesto Comunista e uma coroa de princesa e a quem chamava de “Pequena Imperatriz Proletária.”

Assim que Alipio foi internado, foi criada uma rede imensa de amor e solidariedade, composta por amigos e companheiros. Pessoas de inúmeras gerações e trajetórias juntaram-se num grupo de Whatsapp para torcer pela recuperação do nosso amigo. Amigos da prisão, da época da fundação do PT, do teatro, dos jornais que ele ajudou a fundar e de sua linda história, de arte e literatura. Gente de várias faixas etárias.

Foi nesse contexto que conheci o relato do ator Celso Frateschi, também ex-preso, que traduz a capacidade de Alipio de lutar pela vida, e de uma forma só sua, usando o humor:  “ [….] Estávamos com mais uns vinte  companheiros jogados num cativeiro da OBAN que ficava num quartel perto do Ginásio do Ibirapuera. Alipio foi levado para uma cela contígua e barbaramente torturado durante muitas e muitas horas. Durante muito tempo fomos torturados por sua tortura. Na minha lembrança, foi na madrugada que ele chegou carregado, sem nenhum movimento no corpo. Me revoltou a deformação de seu belo rosto, muito machucado, pois seus cabelos e seus bigodes foram arrancados com um alicate. O pau de arara tinha interrompido a circulação em seus membros e Alipio não conseguia se mexer. Estávamos todos assustados,  revoltados e impotentes diante de tanta violência e requintes de crueldade. Lembro que meu irmão Paulo e eu com ajuda e ajudando os outros companheiros, conseguimos encostá-lo em uma das paredes da cela. Lentamente, ele mal conseguia esticar suas pernas, respirou fundo umas duas ou três vezes, abriu o seu largo sorriso e pronunciou com um desejo verdadeiro e um pouco de deboche: ‘Ah! Quem me dera arfar docemente nos braços argentinos de Angelita!’. Nunca soube de quem escrevera esses versos, pois para mim sempre foram do Alipio. Foi um aprendizado definitivo, além da racionalidade. Todos, apesar da situação, rimos muito, o moral se elevou e nos preparamos melhor para enfrentar o “inferno”.”

Após a luta armada contra a ditadura, quando integrou a organização Ala Vermelha, Alipio foi renovando permanentemente sua militância e luta. Foi um dos fundadores do PT, era parceiro e apoiador do MST, esteve com as Mães de Maio e Cordão da Mentira, sem nunca abandonar a “ponte para a utopia”. Em diversas entrevistas que deu sobre o que viveu na ditadura, citou os versos da música “Começaria tudo outra vez”, de Gonzaguinha: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama em meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão”. Em um depoimento ao Instituto Vladimir Herzog, seguiu: “A gente só é capaz de fazer o que está colocado enquanto alternativa pela história. Errar, nós vamos sempre errar. Só não errará quem nada fizer, o que já é um erro de começo”.

Em 2008, quando foi organizado o primeiro ato no DOI-CODI, na rua Tutoia, desde a ditadura, Alipio disse uma frase que hoje Nicolau Leonel relembra: “O nosso projeto seria muito mesquinho se ele se reduzisse ao espaço de nosso tempo biológico individual. Nós temos um compromisso com os jovens, por isso eu estou aqui. Por isso continuarei em todas as manifestações. Há um compromisso de continuidade na construção de outro mundo. É óbvio que se nós da minha geração conseguirmos assistir isso, será fantástico. Mas se não conseguirmos e soubermos que estamos colocando novos alicerces para um mundo igualitário e livre, eu acho que teremos sido vitoriosos”.   

Hoje, Alipio está morto e eu assisto chorando, em looping, a este trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós, em que ele fala sobre construir uma ponte para a utopia: ‘Nós queremos a Lua, algo que seja aparentemente impossível. E nós teremos a Lua”.

Alipio Freire em frame do trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós.
Alipio Freire em frame do trecho do filme “Nada Será Como Antes. Nada”? de Renato Tapajós

Ouço Alipio e sinto uma combinação de dor, saudade, amor e revolta. Penso em algumas palavras de ordem dos movimentos de luta por memória como o “Ni Olvido, Ni Perdón”, “Sem justiça não haverá paz” e “Eu sou os que foram”, que não sei de quem é a autoria, mas que ouvi pela primeira vez no espetáculo “Morro como um país”, da então Companhia Kiwi de Teatro, hoje Coletivo Comum.

Aprendi com Alipio e demais militantes e sobreviventes da ditadura que quando um companheiro morre, os que sobrevivem tem como tarefa continuar contando a história dos que morreram. Nós ainda não conseguimos fazer a ponte para a Lua. Também não conseguimos, apesar de muita luta, punir os torturadores da ditadura. E é um dos motivos pelos quais o Brasil elegeu um homem que louva a tortura, a ditadura, a morte, que representa a ditadura. E que hoje, por meio de um projeto genocida, nos mata, mata os nossos que lutaram contra a opressão da ditadura, mata Lays Machado e Alipio Freire.

Se não tivesse morrido por conta do projeto genocida de Jair Bolsonaro, Alipio seguiria lutando, e é esse o compromisso que temos de assumir, como diz o final da música de Gonzaguinha, a mesma da qual Alípio citava o começo: “Ao som desse bolero, a vida, vamos nós. E não estamos sós, veja meu bem. A orquestra nos espera, por favor. Mais uma vez, recomeçar”.

Alipio Freire, presente, agora e sempre!

*Tatiana Merlino é jornalista de direitos humanos e escritora. É coeditora do livro “Luta, substantivo feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à Ditadura”, organizadora de “lnfância Roubada: Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil” e coeditora de “Heroínas desta História: Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura”.

 

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300 mil mortes e um rastro de fome https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/300-mil-mortes-e-um-rastro-de-fome/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/300-mil-mortes-e-um-rastro-de-fome/#respond Thu, 25 Mar 2021 15:55:58 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/lambe-bolsocaro-marlene-bergamo-folhapress-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2316 Falar de morte constantemente não naturaliza nem diminui a dor e indignação frente a mais de 3 mil perdas em um único dia. Ou 300 mil óbitos em um ano de pandemia. O sentimento de tristeza atravessa nossa existência em cada conversa mediada pelas telas ou reportagens nas redes ou televisão.

Há uma frustração generalizada em toda a população, que após um ano esperava enxergar saídas para esse momento, não um afunilamento da tragédia. Embora a situação seja de calamidade em todo o mundo, aqui, a crise se intensificou em decorrência da uma política de morte (falamos de necropolítica aqui), má gestão e falta de um plano nacional que olhasse para toda a complexidade dos nossos territórios.

Afinal, quem é que pode fazer home office ou até mesmo lavar as mãos? Segundo o Unicef, 3 bilhões de pessoas (40% da população mundial) não têm acesso a água e sabão, fundamentais para se proteger do coronavírus.

No atual país da morte, há um grande número de pessoas pedindo socorro para continuar vivendo. A tragédia na saúde brasileira abriu chagas que já vinham se dilatando há anos, com a falta de direitos mínimos para a sobrevivência, como saúde, moradia e alimentação.

Há algumas semanas, o Governo editou duas MPs (medidas provisórias) que liberam o auxílio emergencial em 2021 para 45 milhões de pessoas. De R$600, o valor baixou drasticamente para R$ 250. O pagamento, porém, varia a partir da composição familiar.

Para as mulheres chefes do lar, a quantia será de R$ 375 e quem vive sozinho vai receber apenas R$ 150 por mês. Governadores de 16 estados apresentaram uma carta ao Congresso pedindo o aumento do auxílio emergencial para R$ 600 por mês.

A primeira etapa do benefício auxiliou 68,2 milhões de brasileiros, mas em setembro de 2020 já reduziu em média 13 milhões de pessoas. Agora, comparando com a primeira etapa de implementação do auxílio, o governo tirou o benefício de 24 milhões de pessoas.

Paola Carvalho, diretora de relações institucionais e internacionais da Rede Brasileira de Renda Básica, explica que isso significa que estados e municípios entraram em colapso, porque além das questões de saúde, terão que dar conta da assistência social da população.

“Isso não é suficiente para a subsistência de nenhuma família brasileira, especialmente em situação de pandemia, porque quando garantimos um auxílio emergencial exatamente para conseguir somas às ações de distanciamento social, de garantia de vida da população, nós não podemos oferecer um benefício muito aquém de uma cesta básica”, explica Paola.

A disputa política em torno do auxílio mostra um total desconhecimento do governo sobre a realidade da população brasileira. Na semana passada fui a um mercado aqui no bairro de Perus, periferia de SP, e uma cesta básica estava custando R$160, 1kg de carne moída R$30, um pacote de 5Kg de arroz não estava menos de R$22 e um botijão de gás nas principais capitais já passou de R$100. A Folha mostrou que no governo Bolsonaro a cesta básica subiu 33%.

“Os valores de R$150 ou R$250 não cobrem nem 1/4 do que seria uma cesta básica, fora as outras necessidades da população. Isso empurra a população para as ruas, nem que seja para pedir alimentação na porta do supermercado como temos visto no Brasil inteiro”, lembra Paola.

No ano passado, o auxílio de R$600 e também de R$1200 para mães chefes do lar garantiram a redução de indicadores de fome e extrema pobreza. Após décadas, o Brasil pode voltar a integrar o mapa mundial da fome.

São mais de 39 milhões de pessoas vivendo na miséria, 14 milhões em situação de extrema pobreza. O índice de desemprego fechou 2020 com taxa média de 13,5%, a maior da série do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), iniciada em 2012. São quase 14 milhões de pessoas desempregadas.

“Nesse novo formato de auxílio proposto pelo governo, que não permite abertura a novos cadastramentos e não garante o mínimo de R$600, nós não conseguiremos garantir condições dignas de distanciamento para a população brasileira”, aponta.

Ela explica que todos os países do mundo que enfrentaram a pandemia e hoje estão no processo de reabertura econômica, passaram por ações que visavam informar de forma precisa a população, sobre temas como vacinação, por exemplo. E ofereceram auxílio emergencial que garantisse aos mais pobres sobrevivência sem precisar ir para a rua.

“Esses países garantiram que os mais pobres tivessem direito ao distanciamento social, a proteger suas famílias e não serem levadas a tomar uma decisão entre sair para as ruas para tentar emprego ou alimentação e correr o risco de contrair o vírus, ou ficar em casa e morrer de fome”.

TEM GENTE COM FOME

A Coalizão Negra por Direitos junto a outras organizações criou a campanha Tem Gente com Fome, que visa angariar fundos para dar de comer a 222.895 famílias em todas as regiões do Brasil que foram mapeadas pelas organizações e redes que coordenam a ação. Para ajudar, entre em temgentecomfome.com.br.

 

Como sua contribuição ajuda/Divulgação Campanha Tem Gente com Fome


“Tem gente com fome” é parte do poema do poeta pernambucano Solano Trindade, que nos deixou em 1974. “Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino, em algum lugar. Se tem gente com fome, dá de comer”, diz um trecho.

Os sites Nós, mulheres da periferia e o Periferia em Movimento listaram 29 campanhas e organizações das periferias de SP e também outras regiões do Brasil que estão doando alimentos, cestas básicas ou amrmitex. Quem tem fome, tem pressa. Ajude! 

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Quem tem medo do coronavírus? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/quem-tem-medo-do-coronavirus/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/quem-tem-medo-do-coronavirus/#respond Thu, 11 Feb 2021 16:47:07 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/turistas-praia-sp-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2273 A maioria das pessoas não pensa (ou não quer pensar) na morte, até que se vê obrigada. Nos últimos meses, milhões não tiveram outra escolha, senão a de pensar sobre ela. Seja em relação a si próprio ou de quem está em volta. 

Embora especialistas apontem que uma dose de medo pode ser importante para gerar alerta de perigo iminente, muito medo não é saudável. Vimos os níveis de ansiedade e depressão subirem amplamente em todo o mundo, exigindo maiores cuidados com a saúde mental.

No entanto, há o grupo dos sem-medo. Ou, melhor, dos que têm tanto medo, mas tanto medo, que preferem bloqueá-lo completamente, na esperança fantasiosa de que assim zarpam de vez com a própria ameaça que os rodeia (Confira texto sobre medo da morte aqui no blog).

Olhar para o medo é sair da fortaleza de poder que cerca a muitos de nós, entendendo nossos limites, nossas fraquezas e que somos passíveis de cair a cada passo. Em tempos ditos “normais” (acrescente aqui muitas aspas), eu diria que cada um escolhe lidar ou não com seus medos. Mas em tempos de pandemia, os sem-medo precisam entender que sua escolha coloca em risco inclusive quem olha e cuida do medo que carrega.

Uma amiga próxima, que prefere não dizer o nome, discutiu com um de seus familiares porque ele se recusava a usar máscara em casa mesmo após cinco dias de febre, tosse e dores no corpo. Sabemos, todos esses são sintomas da Covid-19. A pessoa alegava que era seu direito decidir o que fazer.

Cansada das inúmeras discussões, a amiga, sem qualquer sintoma, isolou-se em seu quarto e passou a utilizar a proteção facial em todos os cômodos da residência. No fim, o exame da pessoa deu negativo. Mas poderia ter sido ao contrário e toda uma família acabar contaminada, inclusive sua mãe, idosa com doença crônica.

O exemplo é apenas uma ilustração do que vem acontecendo todos os dias no Brasil, quando o Presidente da República se recusa a olhar suas próprias fragilidades e de sua ínfima e desastrosa governança, e mente a si próprio negando a pandemia, a vacina, a ciência e, pior, fingindo não enxergar a trágica situação na qual se encontra o país. Vide o que aconteceu em Manaus em janeiro.

Em janeiro, a ONG Internacional Human Rights Watch publicou a 31ª edição de seu Relatório Mundial apontando Jair Bolsonaro (sem partido) como um dos culpados pela crise social e sanitária do Brasil. O relatório diz que Bolsonaro tentou “sabotar medidas contra a disseminação da Covid-19 no Brasil” e impulsionar “políticas que comprometem os direitos humanos.”

“O presidente Bolsonaro expôs a vida e a saúde dos brasileiros a grandes riscos ao tentar sabotar medidas de proteção contra a propagação da Covid-19. O Supremo Tribunal Federal e outras instituições se empenharam para proteger os brasileiros e para barrar muitas, embora não todas, as políticas antidireitos de Bolsonaro. Essas instituições precisam permanecer vigilantes”, é o que disse a diretora adjunta da Human Rights Watch no Brasil, Anna Lívia Arida.

O conceito de capacitismo pode explicar muito bem como funciona o grupo sem-medo da pandemia. Quem fala sobre isso é Victor Dimarco. Ator, diretor e dramaturgo, Victor é criador do filme ‘O que pode um corpo’, que reflete sobre o tema e um dos vídeos de seu perfil no Instagram traz a reflexão ligada à pandemia: 

“O capacitismo é uma estrutura de pensamento. Afeta nossa sociedade e está afetando também a forma como a gente está lidando com a pandemia. E como a sociedade também normalizou a morte a partir de uma visão capacitista e o egoísmo. O capacitismo parte de uma supremacia da capacidade. Ou seja, quem é mais capaz possui mais privilégios. Eu falo de capacidade corpórea ou financeira. Até porque , infelizmente, uma está ligada a outra. A gente ainda vive em um mundo onde alguns corpos valem mais que outros. Na pandemia, o que mais se falou, no senso comum, foi como a Covid-19 não representava um risco tão grande para grupos que não faziam parte do grupo de risco. Ou seja, as pessoas mais “capazes” socialmente. Esse senso comum pensa que esse grupo de pessoas “capazes” se sentissem no direito de voltar ás atividades não essenciais de seu dia a dia, fazendo aglomerações e afins e levando ainda mais o vírus”.

Sim, a vacina está aí, estamos confiantes. É emocionante ver nossas idosas e idosos sendo finalmente protegidos. Mas é importante dizer que há 21 dias a média de mortes diária está acima de 1 mil. Vale lembrar que esse número só foi registrado em maio de 2020, diante do pico da pandemia no país. Até agora, são 234.850 mil mortes e mais de 9 milhões de casos e uma variante do vírus rondando a nossa esperança.

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Por trás da falta de ar em Manaus, uma trajetória de políticas de morte https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/17/por-tras-da-falta-de-ar-em-manaus-uma-trajetoria-de-politicas-de-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/01/17/por-tras-da-falta-de-ar-em-manaus-uma-trajetoria-de-politicas-de-morte/#respond Sun, 17 Jan 2021 17:27:46 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/falta-oxigenio-em-manaus-bruno-kelly-reuters-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2214 Falta oxigênio, sobra irresponsabilidade política. Médicos tentam salvar seus pacientes com ventilação manual. Parentes se revezam para socorrer os familiares comprando cilindros. 

Faz tempo que respirar se tornou palavra ausente. Os joelhos no pescoço nunca dão trégua. Também estão nas mãos que carimbam as sentenças de morte.

Os exemplos são vários. Desde o começo da pandemia, Bolsonaro decidiu pelo genocídio. Genocida: que ou quem perpetra ou ordena um genocídio. Responsável pelo extermínio de muitas pessoas em pouco tempo.

Toda e qualquer decisão tomada por esse governo, inclusive o Ministério da Saúde pressionar a prefeitura de Manaus no uso de hidroxicloroquina e ivermectina, são assinaturas de morte.

Durante sua visita a Manaus, Pazuello lançou um aplicativo de uso exclusivo de médicos que incentiva o uso dessas medicações O MPF (Ministério Público Federal) segue investigando.

O governo do Amazonas já havia informado no dia 10 de janeiro sobre a falta de oxigênio. A fornecedora multinacional White Martins também alertou sobre a falta do item. A Folha informou neste domingo (17) que até mesmo uma parente de Pazuello apontou a ele a falta do material.

“Nós estamos em uma situação deplorável. Simplesmente acabou o oxigênio de toda uma unidade de saúde”, diz uma mulher vestindo máscara em um vídeo que correu as redes e também foi publicado na coluna da Monica Bergamo de sexta.

IMPOTÊNCIA E DESPROTEÇÃO

Impotência e desproteção. É assim que Jacqueline Pinheiro, farmacêutica clínica manauara, se sente. Ela trabalha em um hospital público da cidade, onde ainda não houve ausência de oxigênio, mas o alerta vermelho se estende para além das paredes dos serviços de saúde, preocupando a população.

“O dia a dia não está fácil. Agora mesmo não consigo dormir. A preocupação não deixa. Impotência e desproteção, emocional e social, me resumem. Eu acredito que lugar nenhum estava preparado para a grande demanda que receberia. A situação é caótica”, conta a farmacêutica. 

Depois de uma queda de braço entre comércio local e governo, o toque de recolher agora é uma realidade. Começa às 19h e acaba às 6h da manhã. A entrada no supermercado e farmácias está é reduzida. As frotas do transporte público também. É uma das ações possíveis para conter o vírus.

Segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), o número de internações em Manaus chegou a um pico diário de 250 nesta semana, sendo que 2.221 pessoas foram internadas com covid-19 nos 12 primeiros dias de 2021. A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes  no Amazonas é, atualmente, de 143,1, sendo a mais alta do Brasil, atrás apenas de Rio de Janeiro e do Distrito Federal.

O professor universitário Eliseu da Silva mora em Parintins, a 23h de distância de Manaus de barco. Mesmo longe, sente por meio de amigos e familiares o impacto da tragédia que se aproxima.

“Aqui em Parintins, os hospitais estão superlotados. Tivemos problemas de oxigênio no Hospital Jofre Cohen e pacientes foram transferidos para o Hospital Padre Colombo. Chegou oxigênio na madrugada de quinta para sexta-feira”.

“Há um esgotamento físico. Hoje convivemos com a falta de leitos. Isso já é muito complicado. Como está superlotado, muitas famílias reclamam que não há mais resposta da condição de saúde dos familiares internados. Depois, se perde todo o contato. Há pessoas que só sabem da morte do familiar três dias depois do ocorrido”, conta.

Já não conseguimos enxugar lágrimas de parentes, amigos, conhecidos, porque logo vem outra notícia trágica. Estamos preocupados com quem não tem trabalho mas, ao mesmo tempo, preocupados com a vida que precisamos preservar. Sentimento dúbio de viver e manter a vida”, diz o professor.

UMA CRISE SANITÁRIA DE LONGA DATA

O sistema de saúde de Manaus foi um dos primeiros do Brasil a entrar em colapso no primeiro pico do coronavírus no país. A crise de saúde local, no entanto, já vinha sendo denunciada muito antes da pandemia.

“Infelizmente, o que está acontecendo em Manaus é o reflexo do nosso Governo. Mesmo antes da pandemia, nós já tínhamos hospitais lotados e falta de suprimentos e medicamentos. A pandemia veio para mostrar para o Brasil e para o mundo o que já vinha acontecendo”, aponta Jacqueline.

Segundo o presidente do sindicato dos médicos do Amazonas, Mario Vianna, a situação atual do governo de Manaus se iniciou em julho de 2019. “Denunciamos o caos bem antes da pandemia, mostramos vídeos e fotografias do caos da saúde do Amazonas inclusive com salários com até oito meses de atraso.”

Diante da impotência em exercer o exercício da profissão, muitos médicos estão diante de um verdadeiro cenário de guerra, conta Vianna. Embora muitos já tenham atuado em situações limítrofes, agora estão esgotados fisicamente e emocionalmente. 

“Falta medicamentos, pacientes estão no chão. Se sentem até ameaçados, situação totalmente anormal, única palavra que consigo pra desenhar é cenário de guerra”, diz. “O estado tem uma das maiores taxas de infecção dos profissionais de saúde. Não há proteção individual, as estruturas hospitalares não são muito bem planejadas”, critica o sindicalista.

Um outro médico que prefere não se identificar por receio de perseguições, assinala que a situação da área da saúde é calamitosa há décadas. “Estamos há quase duas décadas sem reajuste de salário. Aqui tem terceirização de trabalho na ponta. Muitos ficaram quase um ano inteiro, entre 2019 e 2020, trabalhando sem receber. Chegaram ao ponto de não terem condição de se locomover para o trabalho. O sistema de saúde está numa areia movediça. ela se movimenta. Entra e sai governo, a impressão é que só tem gente da mais elevada incompetência”, desabafa o médico.

NATURALIZAÇÃO DA MORTE

Olhar as imagens de Manaus e conversar com quem está lá é estarrecedor. Daqui do Sudeste, não sabemos do problema um terço. Afinal, desse lado do Brasil, impera o ego pela corrida da vacina, que duela contra o extremismo de um presidente que pula no mar para demonstrar saúde em um país onde 1 mil morrem por dia pela Covid-19.

Bater panelas é ínfimo. É preciso maior mobilização social contra o genocídio em curso. Mas o medo de contaminação também nos paralisa e adoece trancados dentro de casa. Faz tempo que a população brasileira se sente de mãos atadas.

Atrás de cada máscara, esgotamento, cansaço, medo. É difícil viver morrendo. Neste domingo (17) a Anvisa aprovou o uso da vacina no Brasil. A torcida é grande, queremos viver. Mas falta oxigênio em Manaus, médicos se recusam a fazer testes do coronavírus nas periferias. “Eu não posso respirar” não apenas atravessou 2020, como também chega nos primeiros dias de 2021 lembrando que ainda vai demorar para recuperarmos o ar.

Mas como bem poetizou Pablo Neruda, “por estes mortos, nossos mortos, peço castigo. Para os que salpicaram a pátria de sangue, peço castigo. Para o verdugo que ordenou esta morte, peço castigo. Para o que deu a ordem de agonia, peço castigo. Para os que defenderam este crime, peço castigo”.

+ Leia também:
O luto como política de resiliência
Vamos falar sobre o privilégio branco de morrer de morte natural?

 

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‘Seríamos mais gentis uns com os outros se aceitássemos o medo da morte’ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/02/seriamos-mais-gentis-uns-com-os-outros-se-aceitassemos-o-medo-da-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/11/02/seriamos-mais-gentis-uns-com-os-outros-se-aceitassemos-o-medo-da-morte/#respond Mon, 02 Nov 2020 14:39:16 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/98040940_1031999907195557_1772374123628986368_o-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2148 Finados é um momento importante para esse blog. Afinal, é um dia em que todos querem falar sobre morte, nosso assunto diário. É também próximo à nossa data de aniversário. Morte sem Tabu nasceu há seis anos. Não por uma coincidência, é a idade do meu filho.

Esse é um espaço para compartilhar a dor e a complexidade dos mais variados lutos, acolher relatos, falar sobre suicídio abertamente e sem pisar em ovos (mas com respeito e responsabilidade), entrevistar profissionais do setor funerário, abordar livros, arte, autonomia no final da vida. Vida.

Hoje é um Finados atípico, bem descrito por Fininho na Folha de S.Paulo (leia aqui). Os cemitérios abrem suas portas para receberem as famílias dos que morreram de COVID-19. Muitas, visitarão seus túmulos pela primeira vez. Sem a pressa e a dureza do enterro sem velório a que foram submetidas.  

Um dia propício para falarmos sobre narrativas de conforto para lidar com nosso medo da morte. Esse tema é explorado pelo filme “Into the Night: Portraits of Life and Death” (Noite adentro: retratos da vida e da morte), da premiada documentarista americana Helen Whitney.

Recentemente, a entrevistei por intermédio de Tom Almeida, idealizador do Movimento Infinito. 

O filme é uma exploração das narrativas de conforto oferecidas por pessoas como a diretora funerária e comunicadora Caitlin Doughty, o astrofísico Adam Frank, o ator Gabriel Byrne e o ambientalista Max More.

Para o ator, a arte conforta como uma possibilidade de legado e a transmutação de um sentimento complexo. Para o ambientalista, é a  ideia de imaginar o corpo retornando à terra e de lá crescer uma árvore, em sua beleza majestosa. Para o astrofísico, é contemplar nossa pequenez na vastidão do universo. 

“E o que me traz mais conforto, depois de ter feito esse filme, é entender que todos nós estamos todos juntos nessa. Isso me traz mais conforto do que qualquer outra coisa. As pessoas estão se perguntando as mesmas coisas, têm esperanças e receios que não são tão diferentes dos meus. Isso nos torna menos solitários. Sim, estamos nessa juntos”, diz Helen.

            A diretora entende que o medo da morte, apesar de nos unir, também pode nos separar, ao negarmos que temos isso em comum. Seríamos mais gentis uns com os outros se aceitássemos o medo da morte. É o que  está por trás de algumas das nossas maiores crueldades e das maiores conquistas. É  que está por trás da construção de catedrais, da escrita de poemas, da atividade de colocar tinta nas paredes, da arte”. 

Como reação ao filme, ela se surpreendeu com a adesão de um público mais jovem, enxergando a possibilidade de falar sobre morte para viver a vida de forma mais plena.  

Para o filme, Helen também trouxe as narrativas dos que buscam a imortalidade, como os transhumanistas. Mas ela  não gostaria de viver para sempre. “Eu sinto que, conforme envelheci,  fiquei mais inteligente e mais gentil com os outros e comigo mesma. Mas demorou um pouco para eu chegar aqui, então eu gostaria de aproveitar a recompensa disso tudo só um pouquinho mais…”. 

Infinito.etc

O lançamento desse filme foi um dos atrativos da edição desse ano do Festival Infinito, criado por Tom Almeida.

Ao abraçar seu pai nos últimos minutos da sua vida na cama do hospital, Tom acessou um amor tão intenso que sentiu o infinito dentro da finitude, o permanente na impermanência. Dessa percepção surgiu o nome do festival, que teve sua terceira edição neste ano.

            Ele começou em 2018 como “Inspiração sobre Vida e morte”, a primeira série de eventos organizados para abordar o tema da morte, trazendo aos brasileiros o conhecimento de iniciativas pioneiras ao redor do mundo. “Não podemos perder o protagonismo da nossa própria doença”, diz Tom. “A melhor forma de oferecer esse protagonismo é informar”. 

Tom agregou e potencializou nossa voz em uma série de eventos e estratégias de comunicação que têm alcançado muitas pessoas e ressoando em espaços importantes.

Pensando nas dificuldades impostas pela pandemia aos rituais fúnebres, ele organizou guias para cerimônias fúnebres virtuais (disponíveis nesse link) e a terceira edição, online, do Festival  Infinito, com 3 mil inscritos (2 mil foram gratuitos). Nas suas palavras “para passar um final de semana inteiro falando e ouvindo sobre a morte e se sentir completamente vivo”.

Algumas pessoas são presença registradas nas edições desse evento, como a médica paliativista Ana Claudia Arantes, a musicista Yoko Sen, que redesenha o som dos hospitais, os bipes dos aparelhos, para tornar a experiência mais acolhedora, o diretor do Zen Hospice Project Roy Remmer, o fundador da plataforma “Death Over Dinner”, Michael Hebb e a Ana Michelle Soares.

Por ter sido um evento completamente online e contar  com figuras internacionais, como Andrew Solomon, o famoso autor de “Demônio do Meio-Dia”, a organização recebeu inscrições dos Estados Unidos, Portugal, Suíça. Existe toda uma estrutura de eventos e iniciativas para discutir a morte ao redor do mundo. Podemos dizer que o Brasil, finalmente,  está incluído nessa discussão.

 

Festival inFINITO 2020 01: Solenta Sonada e Tom Almeida
Festival inFINITO 2020: Tom Almeida (divulgação)
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Covid-19 e um memorial para guardar as lembranças dos nossos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/07/covid-19-e-um-memorial-para-guardar-as-lembrancas-dos-nossos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/07/07/covid-19-e-um-memorial-para-guardar-as-lembrancas-dos-nossos/#respond Tue, 07 Jul 2020 19:45:38 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/cemiterio-creditos-leonardo-britto-agencia-mural.png https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2013 Por muitas vezes, a História — essa que se escreve com maiúscula — excluiu dos documentos oficiais as memórias de gente anônima, de gente que vive à margem, tanto dos direitos humanos, quanto dos grandes centros, geográficos ou sociais.

Mas é em momentos de crise, como a que vivemos agora, que essa tentativa de apagamento fica ainda mais evidente, reforçando a importância de contar as nossas próprias histórias e a dos nossos mortos.

Até esta terça-feira (7) já eram mais de 65 mil óbitos em decorrência de Covid-19 no país, sendo mais de 16 mil só em São Paulo. A letalidade da doença é muito maior territórios periféricos — onde a presença de negros é maior — não me deixa mentir: o inimigo invisível chamado coronavírus tem uma geografia muito bem localizada: periferias, cortiços, vielas, como já bem cantou Racionais MCs

Um levantamento da Rede Nossa SP mostra que os bairros periféricos de SP com maior número de negros também são aqueles com mais casos de óbitos pela Covid-19: Sapopemba, zona leste de São Paulo. Brasilândia, zona norte. Grajaú, Jardim Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís, na zona sul.

A morte, para nós, chega muito antes da hora. Ela aparece na falta: de saneamento, de saúde, de moradia, de informação. Em um processo contínuo de genocídio dos povos negros e indígenas.

Homenagens no Cemitério Vila Nova Cachoeirinha, em SP/ Léu Britto/Agência Mural

Passado e presente

Eu sou de Perus, na região noroeste da capital paulista. Por muito tempo, o local foi conhecido por conta da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, descoberta no início dos anos 1990. Das 1047 ossadas encontradas no espaço, ao menos 49 foram identificadas como de desaparecidos políticos e as demais eram de jovens executados pelo esquadrão da morte ou de vítimas de meningite durante os anos da Ditadura Militar.

Para contar essa história e mostrar como todas as mortes são políticas, é que, em tempos considerados “normais”, ativistas e moradores realizam trilhas da memória, com visitas ao cemitério e atuação no Centro de Direitos Humanos Carlos Alberto Pazzini (CDDH-CAP)que luta pelo registro da memória da época a partir da periferia.

“Apesar do alto número de óbitos, os militares negavam a existência da epidemia de meningite, assim como o atual governo, que naturaliza a morte”, conta Amanda Vitorino, estudante de Direito e integrante do CDHH. Ela aponta, ainda, como a subnotificação do passado também pode ser encontrada em tempos atuais, diante das tentativas de Jair Bolsonaro (sem partido) em não divulgar os dados sobre a pandemia: “a omissão de dados oficiais faz com que as pessoas não conheçam a real dimensão dos problema que nos atinge. Durante a ditadura, informações foram escondidas para preservar o suposto “milagre econômico”.

Um levantamento realizado pelo Opera Mundi mostra que nos anos de chumbo, mais especificamente em 1974, os casos de meningite não apenas foram escondidos pelo governo da época, como também foram proibidos de divulgação pela mídia. Só naquele ano 2.500 pessoas morreram por conta da doença.

Foto de flores em um cemitério
Cemitério São Luís (SP)/ Léu Britto/Agência Mural

Guardar nossas memórias

É nesse cenário insólito, de dor e de luto, que iniciativas como a Rede Apoio Covid-19 se faz ainda mais importante, ampliando as memórias periféricas que sempre foram silenciadas. Gestado por alguns meses, o site, lançado na segunda-feira (6) reúne uma série de iniciativas voltadas ao amparo das famílias vítimas da pandemia, entre essas o registro das histórias dos entes queridos e outros acolhimentos e cuidados, como oficina de escrita para enlutados.

Iyá Adriana T’Oluaiyê, pedagoga e uma das coordenadoras da coalizão, diz algo muito bonito sobre a existência desse espaço: “a rede tem esse papel de acolher, de dar voz a essas famílias e suas vítimas, com um papel extremamente bonito de olhar para essas famílias e fazer justiça às suas histórias”.

Para ela, as histórias são aquilo de mais valioso que que construímos em vida. “Histórias que merecem ser lembradas. Famílias que merecem ser acolhidas”, diz a Iyá, que enxerga a rede como um espaço de olhar para os nossos — negros, periféricos, indígenas –, para que a gente não repita os erros do passado e, parafraseando a poeta polonesa Wislawa Szymborska, não deixemos que a História arredonde os esqueletos para zero.

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Finitude – jornalista trata com leveza e profundidade o tema mais universal e delicado da humanidade https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/22/finitude-jornalista-trata-com-leveza-e-profundidade-o-tema-mais-universal-e-delicado-da-humanidade/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/22/finitude-jornalista-trata-com-leveza-e-profundidade-o-tema-mais-universal-e-delicado-da-humanidade/#respond Mon, 22 Jun 2020 20:04:50 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/de703c2f-a88e-4fe0-971b-885ee6dc6b3a.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1993 Nesses seis anos de blog, vi um movimento bonito se fortalecer – a quebra do silêncio em torno de um tema universal e absoluto, a morte.

Os tabus criados e alimentados sobre a fase final da vida são prejudiciais à nossa sociedade. A relação médico paciente é muitas vezes baseada em insegurança, falta de informação e falta de cumplicidade. O médico, com receio de assustar a família, não é totalmente sincero sobre prognósticos e tratamentos. A família, com receio de incomodar o médico ou mesmo não ter acesso direto a um, sente-se perdida diante de uma doença sem perspectivas de cura.

O processo de esterilização da morte (sua passagem do ambiente doméstico aos hospitais – como coloca o sociólogo Norbert Elias) acaba favorecendo essa cultura.

Morremos sós.

Muitos morrem na UTI, entubados, distantes de  uma família que está insegura sobre essa ter sido a melhor alternativa. Se consolam com as palavras dos médicos: fizemos tudo o que poderia ter sido feito.

Mas estamos realmente fazendo tudo o que pode ser feito? Afinal o que é esse tudo?

Essa é uma das questões colocadas por uma voz que se destaca nesse movimento, a da jornalista Juliana Dantas. Ela toma frente do podcast semanal Finitude. 

Inicialmente, ele era tocado por seu criador, o jornalista Renan Sukevicius, para falar sobre diversos fins. Fim da vida, fim de relacionamento, fim das coisas. Tudo começou quando o colega, e amigo, a convidou para ser entrevistada sobre a morte do seu pai, o premiado jornalista Audálio Dantas. Entre seus reconhecimentos, está um prêmio concedido pela ONU, por importantes trabalhos na área de direitos humanos.

Juliana passou por uma experiência intensa. “Eu tive um luto em vida, acompanhando todo o processo de morte. Tanto da minha avó, quanto do meu pai. Ele morreu em 3 meses depois dela, no mesmo quarto, no mesmo hospital”.

Esse hospital é o Hospital Premier, o primeiro do Brasil a se dedicar integralmente aos cuidados paliativos. Fundado em 2004, se coloca como um espaço de acolhimento acima de tudo.

   Conheça os cuidados paliativos aqui.

Acompanhar a morte do seu pai nesse hospital foi uma experiência transformadora. Tanto pessoalmente quanto profissionalmente, já que ela personificou uma missão a partir disso.

A abordagem do hospital é única em todos os aspectos. Até a forma como o psicólogo se aproxima é diferente e foi essencial para ajudar Audálio, que não se conformava em ter que diminuir o ritmo, a começar a elaborar o que estava acontecendo.

“Ele não gostava que as pessoas soubessem do tamanho da gravidade da doença e ele não gostava de saber. Uma vez me disse: não quero que as pessoas sintam que eu sou carta fora do baralho”.

Ao invés de chegar com perguntas bruscas, o psicólogo iniciou a conversa com um interesse comum: Carolina de Jesus, a escritora descoberta pelo jornalista.

Juliana foi percebendo, aos poucos, que existia um abismo entre a medicina tradicional e a de cuidados paliativos.

“Meu pai ia parar a quimio e um amigo dele disse ‘Audálio, não desista’. Como é cruel esse ‘não desista’. O amigo não falou por mal, mas é um completo desconhecimento sobre o que significa parar a quimio e ter qualidade de vida. Aí, eu pensei – meu deus, preciso falar sobre isso porque é uma das poucas questões brasileiras que passa não pela condição financeira necessariamente, mas pelo acesso à informação”.

 

Juliana diz ter escutado muitos relatos de pessoas que se arrependem de terem entubado o pai, e outras dizendo ‘não quero morrer igual minha mãe’.

“As pessoas fazem isso achando que elas estão fazendo de tudo, mas elas estão tomando as decisões em falso, sem todas as informações à disposição”.

Juliana sentiu que seu “tudo” seria não entubar o pai e poder oferecer coisas que tivessem um significado para ele. Ela aprendeu a fazer Sururu, uma comida típica do Alagoas, estado natal de Audálio. Um momento significativo foi comer jaca, a fruta predileta do pai, no jardim do hospital.

O hospital incentiva e possibilita que os familiares possam realizar atividades representativas, como o piquenique do Sururu, ou  arrumar uma jaca em horas.

“Até hoje eu não sei de onde apareceu essa jaca. Eu sempre tive conexão com esse hospital. Depois que meu pai morreu, continuei indo lá”.

Ninguém entra, ninguém  sai

O Premier chamou atenção durante a pandemia por ter adotado uma medida drástica: fechou suas portas por 45 dias para proteger seus 48 pacientes. Ninguém entra, ninguém sai. Com uma exceção: a jornalista Juliana Dantas.

Um dia após a declaração da quarentena, no dia 26 de março, Juliana recebeu a permissão de entrar no hospital e fez uma exclusiva para seu podcast, o Finitude. “Eu percebi muitas mudanças. Eu entrei pela lateral, que é um lugar que raramente se entra. De lá, é possível ver o jardim. O Samir Salman, superintendente do hospital, destruiu o estacionamento para fazer jardim e um espaço de convivência. Aliás, é o único hospital que eu conheço que não tem um valet cobrando 30,00 por hora. Começa por aí”.

Ela entra descrevendo o que vê e ressalta elementos que fazem desse espaço único. “Eu me vali muito da comparação. Se antes eu sabia que não tinha a tenda, agora eu sei que tem. Isso é elemento. Há elementos significativos do hospital, por exemplo: ter o nome do paciente na porta”.

Juliana entrevistou diversos profissionais que toparam, voluntariamente, se isolar no hospital durante todo esse tempo. As histórias são impactantes. Conhecemos o terapeuta ocupacional  português que acompanhou o nascimento do filho por vídeo e até hoje não o conhece,  a médica que deixou o filho de um ano para se dedicar a esses pacientes e a auxiliar de limpeza que enfrentou questionamentos da família por ter deixado os filhos aos cuidados do pai. Chegaram a ameaça-la de chamar o conselho tutelar. O hospital recebeu voluntários também, como o chefe de cozinha.

Os 45 dias iniciais viraram 90.  Juliana teve a permissão de retornar para acompanhar a abertura das portas e a reinserção desses profissionais na sociedade, nas suas vidas e rotinas anteriores. “Eles vão começar a flexibilizar, não porque entendem que o coronavirus recuou mas porque não querem esticar a corda da saúde mental dos funcionários”, diz Juliana.

Para todos nós, a abertura após a pandemia já será impactante. Agora imagina para quem entrou por um “portal paralelo” e está confinado há 90 dias em um hospital, enquanto sua vida lá fora continuava… Imagina as histórias que eles terão para contar. É o que Juliana vai descobrir.

 

((Navegue pelas categorias  do blog! Setor funerário, depressão, morte digna, religiões… O que você quer ser quando morrer…))

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A gente não tem um minuto de paz https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/01/tem-sangue-retinto-pisado/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/06/01/tem-sangue-retinto-pisado/#respond Mon, 01 Jun 2020 17:15:43 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1974 Enquanto eu me recupero da COVID-19, convidei a pesquisadora Cynthia Araújo para escrever um artigo para o blog. Cynthia sentiu um impulso de falar sobre um tema urgente. “Tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado, mulheres, tamoios, mulatos, eu quero o país que não está no retrato”. Obrigada pela oportunidade de publicar esse conteúdo aqui, Cynthia.

Tem sangue retinto pisado

Por Cynthia Araujo

Tem sangue retinto pisado,

atrás do herói emoldurado,

mulheres, tamoios, mulatos,

eu quero o país que não está no retrato

Até que ponto nós, brancos, podemos contar certas histórias?  Sempre me faço essa pergunta.

A sociedade brasileira é considerada por muitos a mais racista do mundo. Então, de branca para brancos: nós somos racistas. E a nossa indiferença contribui para a morte de pessoas negras. Então, nós também devemos falar sobre isso.

No Atlas da Violência 2018, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), observou-se que 71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas.

Um vídeo produzido pela Anistia Internacional, Coalizão Negra por Direitos e Periferia Connection, divulgado no último dia 25 de maio, lembra, dentre muitos e muitos outros, os homicídios de Kauã Vítor Nunes Rozário, aos onze anos; de Ághata Vitória Felix, com oito; e de Kauê dos Santos, aos doze. Crianças assassinadas por um Estado que deveria protegê-las, com a conivência de uma sociedade que dá peso menor a sua morte. Violências absurdas que foram amplamente divulgadas pela imprensa e são deliberadamente esquecidas por pessoas brancas como eu.

Na última semana, João Pedro, um menino negro de apenas quatorze anos, foi covardemente assassinado. Ele estava em casa, na Ilha de Itaoca, em São Gonçalo. A jornalista Thais Bernardes, editora-chefe do portal de jornalismo Notícia Preta(1), escreveu que o laudo cadavérico aponta que o menino foi assassinado com um tiro de fuzil pelas costas. Em casa.

A família de João Pedro passou a noite procurando por notícias suas. Ele já estava morto. A polícia já sabia que ele estava morto. Mas a família continuava procurando por ele.

Conceição Evaristo, uma das principais escritoras brasileiras contemporâneas, falou sobre a cruel atualidade da obra “O Genocído do Negro Brasileiro: o processo de um racismo desmascarado”, de Abdias Nascimento. Ela destaca que “jovens corpos negros defrontam com a precipitação da morte. Um deles, João Pedro Matos, 14 anos, com o seu corpo negro estava ‘marcado para morrer.”

Corpos matáveis”. Conhece essa expressão? Ela nos lembra que as crianças mortas pelas mãos do Estado são quase sempre pretas.

E que “a gente não tem um minuto de paz”.

Esse sentimento pode até sensibilizar pessoas brancas como eu. Mas logo voltamos para a segurança de quem não será violentado pela cor. De quem não terá que brigar pela biografia de um filho executado pela polícia, porque ele não é negro.

Brigar pela biografia. Tentar impedir que, além de matar o João Pedro, matem também a sua história. Para que não violentem a sua imagem depois de violentarem o seu corpo, criminalizando a sua existência.

No dia 19 de maio, pouco depois que o corpo do João Pedro foi localizado, o RJTV1 fez uma matéria sobre sua morte. Ela me causou um incômodo profundo – o mesmo que você está sentindo ao ler este texto, espero. Em um vídeo gravado, sua mãe, Rafaela Lenc, dizia: “Ele só tem quatorze anos. Ele não é bandido”.

Em transmissão ao vivo, o pai de João Pedro repetiu para o repórter Eudes Júnior que o filho não era bandido, era “um jovem de quatorze anos, um jovem com um futuro brilhante pela frente, (…) querendo ser alguém na vida. Mas infelizmente a polícia interrompeu o sonho do meu filho. A polícia chegou lá de uma maneira tão cruel, atirando, jogando granada, sem mesmo perguntar quem era. E eu entendo. Se eles conhecessem a índole do meu filho, quem era o meu filho, eles não faziam isso”.

A família de João Pedro preocupava-se em mostrar que ele não merecia morrer.

No episódio do podcast Finitude “Vidas negras importam”, o ativista negro e membro do canal Periferia Connection Wesley Teixeira deu voz ao meu incômodo: “parece que a vida da população negra tem que ser o tempo todo validada, [tem que] merecer viver”.

No dia 28 de maio, conversei com a tia do João Pedro, Denize Roza. Falei sobre a minha sensação de que os familiares do João tinham achado necessário ressaltar que o João Pedro era só uma criança, que ele não estava envolvido com nada errado.

Ela me disse que a família realmente queria deixar isso bem nítido: “A gente sabe que, na mente de muitas pessoas e até das polícias, se você mora numa favela, a grande maioria eles acham que são pessoas envolvidas com tráfico. E não é isso. A minha preocupação também era essa. Que ele não ia passar como se fosse um menino ruim, um menino bandido, um menino viciado, coisa que ele não era”.

Eu respondi que me doía muito saber que eles se preocupavam com isso, no lugar de apenas sentir a dor de perder o João. Falei sobre reconhecer mais um privilégio, dentre tantos: o de perder uma pessoa para a violência policial e não temer que o Estado e a sociedade a culpem por isso.

E pedi para a Denize falar um pouco mais sobre essa preocupação. Ela me respondeu que sempre orientava o João e os primos dele, seus filhos, a abrir a porta e deixar a polícia entrar:

Mas a realidade que a gente vive não é essa. Eles não chegam, batem no seu portão e perguntam se podem entrar. Eles entram. E muitas das vezes atirando. É muito complicado você querer criar seu filho decentemente, como o João era criado, como a mãe mesma relatou: protegi tanto meu filho, porque ele tinha bronquite, protegi tanto meu filho da pandemia e aconteceu isso com meu filho. Você tem um filho negro, você tem que ensinar o seu filho a se portar melhor do que uma criança branca. Por que eles podem ser confundidos com bandidos? Meu filho é uma criança como outra qualquer. Mas a gente sabe que na nossa sociedade não é assim. A gente tem que se policiar o tempo todo. Infelizmente, não adiantou. Pro João, isso não importou”.

Não importou, porque a cor que nos desiguala em vida também nos desiguala na morte. E precisamos que as histórias sejam contadas por quem vive essas histórias.

William Reis é coordenador do AfroReggae[2] e colunista da Veja Rio. No dia 26 de maio, ele escreveu a matéria “Coalizão Negra: Movimentos sociais se unem por João Pedro”. Nessa matéria, o William fala sobre o genocídio de jovens negros: “Você que está lendo agora esse texto pode se perguntar: Essas pessoas morrem porque são negras?’ A resposta é sim. Elas morrem porque são negras e pobres”.

Eu pedi para ele falar um pouco mais sobre essa naturalização da morte preta.

Ele me respondeu que “as pessoas morrem porque são negras, pois existe um sistema pra isso. Um sistema racista. Racismo é poder, e falta poder econômico, na saúde, na educação, no saneamento básico e na segurança [para as pessoas negras]. Sendo assim as pessoas negras historicamente morrem mais e, de tanto morrer, de tanto o racismo estar aí para que você morra, essas mortes são naturalizadas. As pessoas não associam isso à questão racial, porque, no Brasil, existe uma falsa democracia racial. Muitas pessoas acham que, pelo fato de aqui nunca ter tido leis segregacionistas, negros são iguais ou têm as mesmas oportunidades que pessoas brancas”.

Falei para ele que tenho a impressão de que a maioria das pessoas brancas não consegue associar a piada racista, a falta de representatividade do negro, o racismo no cotidiano à morte das pessoas negras.

Ele me disse que “os números mostram isso. Você tem o mapa da violência que mostra a violência por cor e classe social, você tem a anistia internacional falando que a cada 23 minutos morre um jovem negro, e você tem agora o observatório da violência no rio, são muitos órgãos. Acho que falta mesmo é o Brasil aceitar que somos racistas, pois estudos e órgãos sérios não faltam. Aceitamos isso ou vamos conviver com o fracasso como país e sociedade”.

Esse fracasso não é privilégio do Brasil. Enquanto escrevo esta matéria, o racismo faz outras vítimas. George Floyd, um homem negro de quarenta e seis anos, foi asfixiado pelo policial branco Derek Chauvin no último dia 25 de maio, em Minneapolis, Estados Unidos. Um vídeo amplamente divulgado mostra que Floyd estava no chão, algemado, com seu pescoço pressionado pelo joelho do policial. Ele dizia que não conseguia respirar e implorava por sua vida, até que perdeu os sentidos. Conforme informações da BBC, pouco depois de ser levado por uma ambulância, foi declarado morto.

Há cinco dias, protestos incisivos tomam conta dos Estados Unidos.

Em abril deste ano, o criador de conteúdo e ativista social Bruno Jerônimo perguntava em um artigo para o site Médium: “O sangue do povo preto importa?”

Perguntei ao Bruno o que ele pensa sobre o Brasil de João Pedro versus os Estados Unidos de Floyd:

Os protestos tiveram um avanço nesses últimos dias. Depois que o vídeo viralizou, a comunidade negra norte-americana foi para as ruas, expressar sua revolta e exigir prisão para os policiais de Minneapolis, responsáveis pelo assassinato de George. Devido ao cenário histórico-social, a população negra norte-americana consegue ter uma articulação maior do que a população negra brasileira. É só lembrar das lutas pelos direitos civis, Luther Ling, Malcom X, Panteras Negras e entre outros. O mito da democracia racial no Brasil aumenta o nosso pacifismo em relação aos protestos. Tem o Covid-19, que cria o receio de sair de casa e protestar, mas é notório que, comparada aos EUA, nossa revolta com esses casos têm peso diferente. João Pedro, 14 anos, morto pelas costas, Amarildo, que não sabemos o que houve com o corpo, os 80 tiros não foram solucionados, quem matou Marielle é uma pergunta que tem 808 dias sem respostas. Tem passado batido, sabe?

A Coalizão Negra por Direitos, aliança que reúne mais de cem entidades do movimento negro de todo o Brasil, notificou organismos nacionais e internacionais, para que haja investigação e responsabilização pela morte do João Pedro (os documentos protocolados podem ser encontrados aqui. Além disso, a Coalizão tem uma campanha permanente para que “os veículos da mídia passem a tratar os assassinatos deliberados, diários, sistemáticos em massa da população negra com o nome que eles têm: genocídio”.

Uma das entidades que compõem a Coalizão é a Uneafro , uma rede de educação popular de ação permanente em quarenta comunidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Conversei com o professor de história Douglas Belchior, um dos seus fundadores, sobre o trabalho da Coalizão.

Ele me disse que a Coalizão trabalha fazendo denúncias em cortes nacionais e internacionais, além de intervenções junto ao Executivo e ao Congresso Nacional, “visando à aprovação de leis que buscam a implantação de uma segurança pública humanizada no país, e não essa, que é uma segurança pública genocida, na nossa avaliação. No ano passado, estivemos muito no Congresso, em Brasília, além de termos ido à OEA e à ONU, por diversas vezes”.

O Douglas me explicou, também, que, embora existam outros escritórios e iniciativas de direitos humanos que atuam nesse sentido, os movimentos negros querem fazer a sua autorrepresentação: “nós somos o movimento que está na base, que é composta pelo povo que morre na bala da polícia, e nós, ao mesmo tempo que somos esse povo que labuta dia a dia, que enfrenta com o corpo a violência da polícia e do Estado e a desigualdade e a fome, a gente quer também ser o corpo que elabora a política, que formula, que se organiza”.

Para o Douglas, o João Pedro é mais uma criança preta vítima da política de segurança pública colocada em prática pelo Estado, que promove a morte deliberada de um segmento específico: o negro. E isso tem um nome: genocídio, praticado pela polícia mais violenta do planeta.

Hoje, dia 31 de maio, após a morte de mais um jovem negro pela polícia, desta vez Matheus Oliveira na favela do Catrambi, foi realizado um ato pelo fim das operações policiais violentas nas favelas, em frente ao Palácio da Guanabara, convocado por coletivos de favelas do Rio de Janeiro. A necessidade de visibilidade em meio à pandemia de Covid-19 veio com recomendações: “Mantenha distância de 2 metros das outras pessoas, volte para casa depois do ato, não crie aglomerações, vá de máscara. Se for grupo de risco não vá”.

Sigo muitos perfis de jornalismo negro e antirracista nas redes sociais. O ato foi amplamente divulgado, mas, antes pouco repercutiu na mídia em geral.

Para o Bruno Jerônimo,

O cenário artístico norte-americano é outro ponto que diferencia os Estados Unidos do Brasil, pois vemos o engajamento de celebridades mundiais, como LeBron James e Beyoncé, na esfera política, que faz com o que o povo negro tenha mais voz. Os protestos resultaram na prisão de Derek Chauvin, policial que matou George. Se será condenado ou não, veremos. No Brasil, as investigações andam lentamente sobre o caso João Pedro. Torço por justiça, apesar de ver que os fatos do passado não favorecem. Enquanto esse povo continuar adormecido, as mortes serão apenas números e postagens no Instagram. Isso me faz questionar se o sangue do povo negro realmente importa”.

Enquanto termino de escrever esta matéria, assisto ao vivo, pelo Instagram, a violência policial carioca. O jornalista negro da Rede Globo Marcos Luca Valentim, que havia participado do ato, realizado de forma absolutamente pacífica, acaba de ser ferido por uma bomba jogada pela polícia sem qualquer motivação.

Denize Roza lembra que todas as mães da ilha sentem a dor da mãe do João Pedro. Todas sabem que “poderia ter sido o seu filho”. Ela diz que a família quer justiça, “não só pelo João, por todas essas crianças e mães que já passaram por isso. E a gente sabe que isso não vai parar, infelizmente”.

Pergunto ao William Reis o que eu, branca, posso fazer para que isso pare. Ele me responde que “as pessoas brancas podem ajudar, acho que fazendo um papel dentro dos seus locais, onde convivem, se reeducando, educando as crianças brancas, cobrando uma diversidade no nosso país, entendendo que podem ajudar, mas que o protagonismo disso é negro. Não odiamos os brancos, odiamos o racismo do país”.

A Thais Bernardes concorda: “o papel do branco antirracista na sociedade racista é dar visibilidade para as causas negras. No seu espaço de convivência, seja no seu trabalho ou na sua família, levar as pautas e o olhar racializado sobre os temas”. Ela explica que “a luta antirracista não é de negro contra branco. Para uma sociedade plural como a nossa se constituir, é preciso ter diálogo. O nosso racismo é estrutural e estruturante. Os brancos ocupam lugares na sociedade que nós, negros, não ocupamos, ou em que somos minoria”.

Se ainda não convenci você sobre a nossa responsabilidade, compartilho a última fala da tia do João Pedro: “Tudo que a gente faz lembra ele. Vamos comer e lembramos daquilo que ele gostava de comer, daquilo que ele não gostava. Hoje a gente comentou que ele adorava comer bolo de fubá. É muita dor, ele era um menino alegre, sorridente, brincalhão, gostava de fazer a gente rir”.

João Pedro era um adolescente, no início da vida. Ao ouvir a mensagem carinhosa da sua tia, lamentei não ter como conhecê-lo. Falhamos com o João e tantas outras pessoas. Falhamos com seus sonhos, suas potências. Suas vidas valiam muito, valiam tudo. E nós tiramos deles o mundo que lhes era devido.

Agradeço a todas as pessoas que gentilmente aceitaram conversar comigo e me cederam o que temos de mais importante: o tempo. Contribuíram para esta matéria: IG @brunojeronimo @ciica.pereira @denizeroza_ @negrobelchior @thaiisbernardess e @williamreis85. Agradeço, ainda, a @conceicaoevaristooficial @eudesjunior27 @finitudepodcast @hosanaelliot @thiago_augustto e @wesleyteixeiras e todos os portais de jornalismo antirracistas, em especial o @noticiapreta. E, hoje, e sempre, pela troca e confiança, à querida Camila Appel @mortesemtabu (fb).

 

Não sou negro, como ajudo na luta contra o racismo?”. 

Texto de Ciça Pereira. Gestora de políticas públicas. Pesquisadora e gestora cultural. Idealizadora da iniciativa Afrotrampo.

  1. Doe para campanhas em combate ao racismo.
  2. É bem relacionadx, conhece pessoas bem sucedidas, fale sobre projetos pretxs e sobre profissionais pretxs.
  3. Compre produtos de empresas pretas.
  4. Fale sobre racismo para pessoas brancas.
  5. Fique em silêncio quando uma pessoa negra falar algo relacionado ao racismo.
  6. Encontre terapeutas pretos e pague sessões e diga a ele para distribui-las para pessoas negras. (anonimamente, por favor. Não faça a Rafa Kaliman)
  7. Grite com policiais quando forem racistas.
  8. Se você tem acesso a veículos de imprensa ou tem visibilidade, apoie campanhas e denúncias, apoie conteúdos urgentes de mídias independentes. Conheça: @almapretajornalismo @vozdascomunidades @portalgeledes @desabafo_social @xepafestival @ebonyenglishschool @afrotrampos
  9. Seu pai é dono de empresa? Doe dinheiro para projetos pretos.
  10. Seu pai/você é dono de empresa? ‘Contrate, promova e pague um bom salário a pessoas negras, porque somos sempre os que ganham abaixo do piso das faixas salariais – experiência própria. Detalhe: entregando mais e melhor do que muitos’ (@MartaCelestino)”.

(1) Qual a importância dos portais de jornalismo antirracista?

Por Thais Bernardes (Notícia Preta)

Primeiro é importante ressaltar o que é fazer um jornalismo antirracista. Um jornalismo antirracista não é somente sobre pautas ligadas diretamente ao corpo negro, como acontece nos casos de genocídio, assassinato e violência policial. Ser um jornalista antirracista é entender a informação através de uma perspectiva racial e social da notícia e isso pode passar por pautas sobre política, economia. Por exemplo, se a gente fala sobre o aumento do dólar, a gente pode fazer uma pauta antirracista, dizendo como isso vai impactar as classes C e D, que são majoritariamente negras. A gente também pode falar sobre como uma determinada política atinge o corpo negro.

Portanto, o jornalismo antirracista pode ser praticado por todo jornalista, em qualquer mídia, não apenas pelo que chamamos de portais ou jornais negros, que estão tendo ascensão graças à Internet. É importante dizer que o jornalismo negro em si apareceu no início do século XX, mas foi desaparecendo em razão da falta de financiamento.

A importância desse jornalismo é trazer a informação levando em consideração a população negra, que corresponde a 54% da população brasileira, segundo dados do IBGE. Então, por exemplo, no início da pandemia aqui no Rio de Janeiro, a gente fez várias pautas sobre transporte público. Nós mostramos que a mídia tradicional falava “fique em casa”, mas o BRT continuava lotado. Ali tem uma questão racial, porque o BRT estava lotado majoritariamente de uma população de trabalhadores negros que compreende empregadas domésticas, porteiros, as classes C, D e E, que precisa trabalhar para sobreviver e não tem como ficar em casa, por motivos principalmente econômicos. Então, tratar essa pauta de uma forma racializada é dizer que essas pessoas são negras, porque estão na base da pirâmide social, especialmente a mulher negra.

Na ausência desse jornalismo antirracista na chamada mídia tradicional, que frequentemente desconsidera a racialização, são os portais de jornalismo negro que fazem a leitura da informação para os nossos.

Um outro aspecto importante do jornalismo antirracista é a leitura dos corpos negros, tal qual são apresentados, como nos casos de violência policial, já que a maior parte das pessoas assassinadas são pessoas negras. Quando houve o caso do João Pedro, muitos títulos da imprensa tradicional diziam: “jovem de quatorze anos morre em operação policial”. Para a mídia antirracista, as palavras “morre” ou “é morto” apagam o que de fato aconteceu, um assassinato, porque o laudo comprovou que o João Pedro foi assassinado com um tiro de fuzil nas costas. E isso é ser executado em operação policial. A utilização correta dos verbos dá um sentido amplo e real do fato. Quando a mídia antirracista enfatiza “jovem é executado”, “jovem é assassinado”, aí você entende a crueldade do foi feito pela polícia. Outra questão importante se refere à identificação do negro, a partir de suas profissões. Eu sempre dou o exemplo de “traficante é preso com cinquenta quilos de cocaína no aeroporto” e “estudante é preso com cinquenta quilos de cocaína no aeroporto”. Quando você adjetiva, você sabe a cor que ele tem. Geralmente, o traficante é o negro, o estudante é o branco.

Esse é o trabalho linguístico e educacional da mídia antirracista. É a gente entender que a utilização dos verbos e dos adjetivos leva a entendimentos diferentes.

E eu sempre falo que o trabalho do jornalismo negro é um trabalho educacional. Por vivermos em uma sociedade de racismo estrutural e estruturante, é nossa função quebrar conceitos, clichês e paradigmas. E a gente só consegue isso através de uma educação. E como é educar no jornalismo? É você educar a leitura, a forma como você lê e a forma como você interpreta. Eu acredito que, mudando essa linguagem jornalística aos poucos, a gente vai conseguir – não sei em quanto tempo –  chegar a uma linha de escrita e comunicação antirracista, em que palavras como “denegrir não serão mais utilizadas; em que uma jornalista não vai falar, sobre um negro preso, que ela não sabe o motivo da prisão, mas “ele poderia estar roubando”, porque para ela é natural essa situação. A partir do momento em que a linguagem é trabalhada, a gente desnaturaliza conceitos que foram historicamente criados.

[2] Nas palavras do próprio William, o AfroReggae é uma ONG que existe há 27 anos nas favelas do Rio, trabalhando com Populações marginalizadas e com foco central em afastar jovens da influência do tráfico. A ONG hoje tem projetos na área de games, uma agência para egressos do sistema prisional que se chama Segunda Chance, um centro cultural em Vigário Geral que oferece oficinas culturais, uma orquestra de música clássica. Nosso dever é com o fim das desigualdades, do preconceito e do racismo.

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A difícil habilidade de dar um telefonema com a pior notícia https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/05/16/a-dificil-habilidade-de-dar-um-telefonema-com-a-pior-noticia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/05/16/a-dificil-habilidade-de-dar-um-telefonema-com-a-pior-noticia/#respond Sun, 17 May 2020 00:49:50 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/national-cancer-institute-cQ8FfVNvbew-unsplash.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1965 Nos últimos dois meses, mais de 15 mil famílias receberam um telefonema com a pior das notícias: seu parente morreu de COVID-19.

Durante a internação hospitalar, cabe ao profissional de saúde passar um boletim médico diário sobre o estado do paciente, atualizar sua piora, ou melhora, tentar responder perguntas que muitas vezes não tem respostas, e oferecer o máximo de acolhimento e empatia possível. Isso tudo à distância. Não é fácil.

No contexto pré-pandemia, grande parte das UTIs já estava humanizada, liberando visitas aos pacientes durante 24 horas. Na rede privada é comum permitir um acompanhante durante o dia todo. Na pública, há horários específicos, com entradas diárias. A política de visitação varia entre os hospitais, mas garante um momento de proximidade com o paciente e de conversa íntima entre a família e o médico.

Normalmente, é um momento importante para decidir tratamentos, medicações, procedimentos invasivos, discutir seus riscos e possíveis prognósticos. Enfim, tirar dúvidas. Esses momentos ajudam a processar a evolução da doença.

Se evoluir para a morte, há chances dessa notícia ser recebida com maior compreensão após esse acompanhamento e espaços para discussão. Conseguimos traçar uma narrativa do que ocorreu, porque e como progrediu de certa forma. Como a pessoa passou seus últimos minutos, o que ela disse, sentiu e como foi acolhida.

Com a pandemia do novo coronavírus, a comunicação com a família se tornou um momento mais estressante e dolorido. Não é permitido visitas. O profissional de saúde tem ainda menos respostas. Ele está inseguro com as informações disponíveis. A narrativa que formamos sobre o estado da pessoa fica truncada e confusa. A notícia da morte chega como um choque repentino. Seguido de outros choques: a impossibilidade de reconhecimento do corpo, do velório e enterro com amigos e familiares reunidos.

Conversei com a médica especializada em medicina intensiva Mariana Monteiro. Atualmente, ela coordena uma UTI-adulto de 20 leitos em um hospital público em Barueri e trabalha como plantonista em uma UTI de um hospital privado em São Paulo. Ela é mãe de dois bebês, um de 2 anos e 10 meses e uma menina de 1 ano e 2 meses.

Sua rotina durante a pandemia se assemelha aos intensos relatos que temos escutado. A carga horária dobrou, mal tem tempo para os filhos, convive com medo de ser contaminada e de contaminar sua família.

Apesar do aumento da carga horária e do stress, sua maior dificuldade é ver o sofrimento dos familiares. “Em alguns casos, eles deixam o parente em uma UPA com falta de ar. Lá dentro ele é intubado, transferido para o hospital e muitas vezes os familiares nem sabem onde esse paciente está. Há casos em que o paciente morre sem se despedir do familiar pessoalmente. Isso é muito dolorido para eles e para a gente que acompanha esse processo. Foi um baque muito grande psicológico para mim e acredito que para todos meus colegas”.

Uma vez ao dia, ela liga para os familiares dos pacientes internados na sua UTI com a missão de transmitir um boletim médico. Tenta fazer ligações com vídeo para os que estão em conscientes. Mas em muitos casos isso não é possível, principalmente com quem está em ventilação mecânica. A impossibilidade de fazer isso pessoalmente, como está acostumada, é preocupante.

“Nos treinamentos que a gente faz, sempre tem um contato físico. A gente tenta ficar próximo, sentar, abraçar, acolher quando a pessoa dá abertura para isso. E obviamente, agora com coronavírus, não pode. É muito impessoal. Eu to de máscara, a pessoa não consegue ver me rosto. Eu vejo a pessoa chorando, se desesperando e eu não posso fazer nada, não posso abraçar, encostar. É difícil até para quem tem treinamento para dar má notícia”.

Mariana me contou uma vez em que ligou para passar o boletim de uma paciente e descobriu que o marido dela tinha morrido de Covid-19 e o filho estava internado em outro hospital, em estado grave. “Há famílias que estão sendo realmente destruídas por conta desse vírus”.

Seu treinamento para a comunicação de más notícias não sinaliza frases específicas a serem usadas, mas há uma indicação de estratégia que pode ser benéfica.

“A gente não tem uma fala pronta, mas tentamos fazer com que a pessoa coloque em palavras toda a trajetória do paciente até aquele momento. Usando perguntas como: ‘O que você sabe da condição dele até hoje?’. ‘Você tem acompanhado a evolução?’. Isso é importante para que na hora que você dê a notícia do falecimento, não seja uma surpresa tão grande”.

 

André Junqueira é presidente da ANCP, Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Essa área da medicina é reconhecida por sua capacitação em dar más notícias. André me disse ver um grande retrocesso nesse aspecto porque as UTIs mais modernas já estavam se humanizando e permitindo a visita praticamente por 24 horas. E agora vemos, novamente, uma distância entre o médico e o paciente. Mas por um motivo bem diferente.

“Eu trabalho com dois novos desafios, a insegurança e a imprevisibilidade. No cenário do COVID-19, a gente não sabe realmente o que vai acontecer. É diferente falar sobre um câncer em fase avançada. Não temos uma segurança das possibilidades. Há perguntas que não temos respostas, como: Onde será que ele se contaminou? E se tivesse feito exame mais cedo?”.

Como protocolo, ele indica tentar aproximar o paciente dos familiares virtualmente, com teleconferência, tablet, e filmar a pessoa. “Mas não podemos fazer isso com os pacientes sedados e intubados, por respeito.  Não sabemos se ele deixaria ser visto assim”.

Ele me encaminhou um guia de comunicação para profissionais de saúde na pandemia COVID-19, desenvolvido por uma instituição americana, VitalTalk, e adaptada pela ANCP.

O guia oferece orientações, em forma de perguntas e respostas, às diversas situações que necessitam de uma comunicação entre o profissional de saúde e seu paciente ou familiar. São momentos como a triagem, quando alguém está com medo de estar contaminado, a admissão do paciente no hospital ou UTI, nas conversas sobre tomadas de decisão (tratamentos, procedimentos), na informação de más notícias pelo telefone e como o profissional pode pedir ajuda para lidar com determinada situação.

Na comunicação de más notícias aos familiares, primeiro aconselha-se perguntar se a pessoa está em um local onde possa falar. Após essa introdução, passar a informação da morte do parente, dar espaço para momentos de silêncio e oferecer apoio: “Eu sinto muito”. “Estou aqui”. “Eu posso imaginar como tudo isso está sendo um choque para você. É uma situação muito triste e difícil”.

Há itens relacionados à possível antecipação dos profissionais sobre reações de pacientes e familiares. Por exemplo: “Eu não sei como dizer para esta adorável senhora que eu não posso colocá-la na UTI e que ela ta morrendo”. O guia orienta: “Lembre-se do que você pode fazer. Você pode ouvir sobre o que ela ta preocupada, pode explicar o que está acontecendo, pode ajudá-la a se preparar, pode estar junto. Essas atitudes são especiais”.

André já permitiu a visita de familiares para um último encontro. “Em casos muito difíceis, quando a família está em sofrimento muito grande, deixamos entrar para despedir à distância e toda paramentada. A nossa maior preocupação é promover essa despedida”.

Ele se emociona quando consegue ajudar uma família mesmo nessas condições.

“Apesar do cenário triste, quando a gente consegue reestabelecer a confiança, a gratidão da família é enorme. Eles agradecem muito o esforço da equipe e do hospital de promover a despedida, acolhimento e empatia. É algo que está se valorizando cada mais”.

 

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