Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Funerais em tempos de coronavírus https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/03/20/funerais-em-tempos-de-coronavirus/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/03/20/funerais-em-tempos-de-coronavirus/#respond Fri, 20 Mar 2020 12:19:55 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/cópia-de-_DSC1512-1.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1869 Com a rápida contaminação do novo coronavirus, não são mais aconselháveis aglomerações de pessoas, incluindo encontros para rituais fúnebres. Não se sabe se o corpo contaminado ainda transmite a doença, mas as pessoas em volta correm alto risco de contaminação entre si. O Ministério da Saúde ainda não se pronunciou sobre orientações nesse sentido. Estamos aguardando.

A  Acembra (Associação dos Cemitérios e Crematórios do Brasil) e o Sincep (Sindicato dos Cemitérios e Crematórios do Brasil) produziram uma cartilha com recomendações, enquanto uma oficial do governo não chega.

“Sim, os velórios são autorizados, mas recomendamos orientarem para que durem o menor tempo possível e sejam frequentados apenas pelos familiares mais próximos. Embora alguns municípios já estejam se pronunciando no sentido de proibir as aglomerações e, em alguns casos ainda raros, limitar a frequência nos velórios, ainda não há regras específicas do governo brasileiro em relação a isso. De toda forma, os exemplos mundiais nos guiam no sentido de evitar a concentração de pessoas. Nos Estados Unidos, por exemplo, estão proibidas as reuniões de mais de 10 pessoas nos próximos 15 dias ou de mais de 50 pessoas nas próximas oito semanas. Na França, na Espanha e em um número crescente de países, as pessoas estão proibidas de sair de casa, inclusive para fazer reuniões familiares. Outro ponto de atenção diz respeito ao chamado “grupo de risco”. Idosos e portadores de diabetes, doenças do coração, do pulmão, câncer e pressão alta devem ser desencorajados de comparecer. É também fundamental garantir um reforço nas normas de higiene e prevenção da contaminação nas instalações designadas para o velório. Para isso, recomendamos manter um controle rigoroso de limpeza e desinfecção do ambiente, de maneira frequente, disponibilizar álcool gel no máximo de cômodos possíveis e sabonete líquido em todos os banheiros”.

Com o crescente isolamento das pessoas em suas casas, há uma tendência de proibir funerais em casa.  Qual será a repercussão disso para um processo emocional que já é por si só complexo e dolorido? O processo do luto.

A psicóloga Gabriela Casellato, do 4 Estações Instituto de Psicologia, especializado em luto, diz que o velório e o enterro/cremação são rituais fundamentais para o processo de enlutamento.

“É importante do ponto de vista religioso para quem tem crenças e também cumpre a função do compartilhamento social, do reconhecimento pela comunidade como alguém que está enlutado. No ritual, concretizamos a morte diante de um corpo concreto. Expressamos emoções e somos acolhidos”.

Gabriela menciona a importância da validação das emoções. O ritual fúnebre oferece um lugar social para essas emoções que normalmente não têm espaço. “Existe o dividir a dor, rir, compartilhar memórias, histórias, resgatar vínculos com pessoas queridas que no dia a dia que não conseguimos ver”.

Ela vê com preocupação a privação de momentos como esses. “A imposição dessa privação, e não sua escolha como opção, pode gerar muitas reações no enlutado, como a inibição do pesar, ou adiamento do pesar, dificuldade em conseguir concretizar e compartilhar a dor”.

O luto de quem perdeu um ente querido para o vírus é ainda mais difícil. Gabriela teme o estigma da morte pelo vírus. “A pessoa que está em luto por alguém que morreu em decorrência da contaminação, representa algo que a gente não quer para nós. É alguém que ta vivendo algo que eu não quero viver. A minha tendência instintiva é me defender dessa dor, porque eu não quero me ver na posição dessa pessoa. E tem o risco do contágio real, não quero conviver com essa pessoa porque ela conviveu com alguém que se contaminou”.

Essas reações contribuem para o isolamento social do enlutado. O sentimento de luto acaba sendo abafado e não compartilhado. Podendo ser um fator de risco para o luto complicado.

Soluções

É importante pensar em soluções criativas.

Gabriela tem levantando essas questões junto ao setor funerário. “É possível realizar ritual ao ar livre? É possível fazer velório online?  Estamos pensando em uma flexibilidade para não tirar o ritual totalmente das pessoas. Pensar em quais recursos são possíveis, usando a internet, para vivenciar essa experiência de alguma forma”.

A psicóloga Maria Helena Franco, coordenadora do LELU, Laboratório de estudos e intervenções sobre o luto, da PUC-SP diz que ter o ritual e unir as pessoas numa cerimônia fúnebre é fundamental para o luto. “O ritual organiza uma situação desorganizadora que é a morte de alguém. A previsibilidade das etapas desses rituais ajuda a organizar o sentimento”.

Exemplos dessas etapas são os sentimentos de condolescências seguindo uma hierarquia das pessoas mais próximas ao morto, a despedida, a hora de fechar o caixão, o sepultamento ou a cremação.

Maria Helena sugere que as famílias façam encontros online, para não perderem a oportunidade desse ritual. “Ali, você pode ritualizar usando o recurso a distância. Os brasileiros são muito de contato físico, gostamos de abraçar, beijar, queremos ficar perto, mas a alternativa que temos é essa….”, lamenta.

Profissionais de saúde

Gabriela alerta para o sofrimento dos profissionais que atuam com saúde mental. “Eles estão com medo de contágio, sofrendo o estigma do isolamento – porque são vistos como vetores do vírus – e estão lidando direto com as pessoas que estão em pânico. Isso gera uma sobrecarga emocional muito grande. E sem perspectiva de quando isso vai passar”.

Os profissionais liberais, como psicólogos e psiquiatras, estão sofrendo com a suspensão dos atendimentos e começam a ter também ameaça da própria sobrevivência. Um grau de stress e ansiedade que podem colaborar com um burn-out. Pensando nisso, Gabriela criou fóruns gratuitos, online, de apoio aos profissionais de saúde. Veja informações atualizadas no Facebook do blog.

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“Judith Butler: um pensamento diferente”, por Eduardo Rozenthal https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/11/06/judith-butler-um-pensamento-diferente-por-eduardo-rozenthal/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/11/06/judith-butler-um-pensamento-diferente-por-eduardo-rozenthal/#respond Mon, 06 Nov 2017 09:57:13 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1436 O blog “Morte sem Tabu” publica hoje um texto inédito enviado pelo psicanalista Eduardo Rozenthal, sobre a presença da filósofa Judith Butler no Brasil.

Judith Butler, um pensamento diferente

Por Eduardo Rozenthal

 

Conheci Judith Butler em 1994, quando participava do programa de professores visitantes a convite da Universidade da Califórnia em Berkeley. Inscrevi-me em seus seminários daquele segundo período do ano, interessado, principalmente, na leitura que a jovem filósofa fazia dos textos de Foucault e Derrida, bem como de Freud e de Lacan, utilizando-se de fortes entonações linguísticas. Da notória influência de Austin, sua interpretação daqueles autores acumulava os ecos, naquele momento bem audíveis, do debate entre Searle e Derrida, que tinha como base exatamente os “atos de fala” de John Austin. Butler havia recém-lançado o seu “Corpos que importam” (“Bodies that Matter”, 1993) livro que causara um certo rebuliço nos meios acadêmicos, cujos habitantes não puderam aquilatar a extensão do que lá estava, em embrião e, portanto, do que viria a ser germinado.

Desde os primeiros momentos, quando a vi no centro de uma sala abarrotada de alunos e outros pesquisadores como eu, ao redor de uma grande mesa de tampo verde, sua presença me causou forte impressão. De pequena estatura, cabelos curtos e engomados, vestindo um terninho negro, bem talhado e possuída por um ar de ausência, Judith parecia incomodada. Percebi que não era a constante demanda dos que a ouviam que a aborrecia. Era o texto que ela esmiuçava, diante da atenta audiência, que a deixava atônita, a ponto de extrair-lhe reiteradas interjeições, pequenos gritos e sussurros que diziam muito mais de sua relação afetiva com suas próprias questões do que com o que se passava naquele ambiente acadêmico. Tal impressão se manteve ao longo de todo aquele semestre, tornando-se mais evidente nas entrevistas particulares que tive com ela com o intuito de discutir um trabalho que eu escrevia a respeito de Michel Foucault. Os trejeitos, acompanhados de sons guturais, emolduravam os argumentos que se sucediam elencados com brilhante lógica e traduziam um pensamento de quem pensa diferente de si mesma – para não perder o aforismo foucaultiano.

Ao longo destes quase 25 anos, as ideias de Butler transitaram pelos mais diversos temas. Não lhe escaparam questões ligadas à linguagem, à política, ao poder, à guerra, ao judaísmo e ao tópico central que, é bem verdade, ela persegue desde o início, e que a tornou uma espécie de ícone teórico do empoderamento feminino. Refiro-me à “teoria queer” e à chamada de “terceira onda” do feminismo, para as quais a filósofa apresenta uma interpretação bastante peculiar.

O primeiro feminismo ficara para trás, quando as mulheres reivindicavam a sua legítima inserção na vida institucional, dado o fato de que os contratos, considerados na sua amplitude, só tinham validade se celebrados entre homens. A “segunda onda” também já se achava longe, quando a demanda das mulheres recaía sobre a liberdade de uso dos próprios corpos, tributários até então da dominação patriarcal e ultrajes machistas. Para a pensadora americana da terceira onda, as feministas não mais devem reivindicar, nem demandar o reconhecimento dos direitos sociais das mulheres. Tampouco a identidade de “mulher” lhes diz respeito. Ao contrário, todas e quaisquer identidades traem o feminismo ao enaltecer, implicitamente, os ideais patriarcais, cujo protótipo é a competição, hipervalorizada no mundo das acirradas disputas capitalistas.

Judith Butler – e ela não está só ao defender tais posições – aposta no primado da diferença e na deflação da identidade. De fato, Freud nos ensinou que a identidade é a propriedade capital do ego, que se estabelece por comparação entre este e os ideais da sociedade, os quais, “introjetados”, compõem uma segunda instância psíquica, denominada de “ideal do ego”. Se, por exemplo, a posse (desmedida) de bens é um valor central da atualidade, o ego se ampliará ao cumprir os desígnios impostos por este ideal. Contudo, implicitamente, ao fortalecer o ego, o que se mantém e solidifica, ainda mais, é o mandamento social que visa a posse e o consumo de bens que, em última análise, é a condição do radical desnível socioeconômico em que vivemos e de seus violentos desdobramentos. No jargão psicanalítico, dizemos que estamos diante do narcisismo exacerbado dos dias de hoje, condição do doloroso isolamento de que padecemos.

De forma idêntica, ao defender o respeito aos direitos sociais da mulher, o que acaba por se valorizar é o ideal de “Homem”, com o qual a mulher disputa e do qual, com o reconhecimento obtido, ela se diferencia. Contudo, os direitos eventualmente acolhidos relacionam-se à lei, cuja necessidade é exigida pelo dinamismo patriarcal. As diferenças ocasionalmente admitidas são parciais, onde a lei é, desde sempre, forjada pela semântica masculina que, antes de tudo, estabelece a própria comparação como operador de identidade. Neste território configurado a priori, não há possibilidade de mudança estrutural para a mulher. Por mais que ganhe, ela é diferente, só na parcialidade. Isto quer dizer que, fundamentalmente a mulher pertence ao universo masculino, do qual constitui um caso particular. O que se estabiliza, portanto, é o universo do Homem ou da humanidade que engloba a mulher como exceção.

Eis algumas das ideias centrais exibidas por esta filósofa que hoje, aos sessenta e um anos, em vias de retornar ao Brasil para uma palestra no SESC Pompéia, se choca com um abaixo-assinado com mais de 150.000 signatários que se manifestam contra a sua participação. Mas, afinal, qual o perigo que atravessa o pensamento de Judith Butler? O que, na sua participação, ameaça a ponto de precisar ser radicalmente suprimido, sem direito de colocar-se na mesa para o diálogo, devendo ser extinto antes mesmo de dizer ao que veio?

É que Judith Butler pensa com o corpo. A diferença a qual nos faz sentir não é parcial, senão total. Esta diferença não fala. A diferença total silenciosa é que nos faz falar, enquanto que ela própria se apresenta sempre em ato, fato, prática de si ou acontecimento – que acontece ao corpo. Para esta diferença, reserva-se o termo “singularidade”. A singularidade não é, portanto, identidade, senão diferença. Diferença total incomparável que designa o estilo de cada um, a maneira única como praticamos os atos de nossas vidas. Com a participação da singularidade, qualquer ato adere ao ego, tornando-se autoral. Esta é a via da criação estética ou artística que contesta o narcisismo, no qual o ego se compara e fortalece ao cumprir o mandamento do ideal. No âmbito da estética ou da arte, ao contrário, o ego se cria na medida da singularidade, sendo esta capaz de conviver com todas as outras, posto que não disputa a posse de nenhum ideal social comum. Ao contrapelo do isolamento narcísico, a criação nos aproxima ao propulsionar os encontros afetivos, sendo que, por este motivo, a arte é o instrumento da verdadeira revolução dos costumes.

No espaço da sexualidade, as linhas de força possuem a mesma estrutura. Os gêneros, no seu binarismo, instituem o masculino como identidade primordial, reservando ao feminino o lugar de particular que, como toda a exceção, confirma a regra. O mundo é masculino e o feminino busca, à força de reação, fixar a sua identidade. Ao fazê-lo, no entanto, dilata a identidade masculina, da qual tenta se discriminar, recrudescendo-se o confronto. A alternativa é a da singularidade. Nela, teremos de conviver com a ausência de gêneros pré-estabelecidos, sem identidades pret a porter nas quais tentamos, ainda que com altos custos, nos reconhecer. A sexualidade será singular ou não será. Eis a máxima da teoria queer. Não há qualquer origem biológica da sexualidade ou objeto preferido do desejo sexual que determine o gênero, senão as imperativas estratégias do comando dos poderes vigentes. Sem subterfúgios, nem estratagemas, será preciso criar-se enquanto sexualidade.

É assim que pensa Judith. E sua proposta é, de fato, perigosa para aqueles que desejam a manutenção do status quo, para os conservadores que reagem, isto é, repetem o mesmo, ao invés de resistir, sendo resistência, como quer Foucault, equivalente à criação do inédito. Estes reacionários não leram o que a filósofa escreveu. Se leram, nada entenderam. Mas, não se iludam, eles sabem o que fazem. O perigo do pensamento de Butler está na presença de seu corpo. Judith é perigosa por que seu pensamento corporal é feito de gritos e sussurros, apelos sedutores que convidam para o encontro. Pensamento de quem pensa diferente de si mesma, sendo esta a diferença total que convoca ao exibir, sem pudor, os confins de si onde está sendo gestado.

Eduardo Rozenthal: Psicanalista. Membro Titular da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica. Doutor em Saúde Coletiva pela UERJ. Professor do Curso de Especialização em Psicanálise da USU. Professor Visitante na Universidade da Califórnia em Berkeley. Co-organizador do livro Psicanálise: uma prática teorizada, 2007. Autor do livro O ser no gerúndio: corpo e sensibilidade na psicanálise, 2014, ambos pela Companhia de Freud.

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Matar ou morrer, a cultura da polícia militar no Brasil https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/25/matar-ou-morrer-a-cultura-da-policia-militar-no-brasil/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/05/25/matar-ou-morrer-a-cultura-da-policia-militar-no-brasil/#respond Thu, 25 May 2017 15:26:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1319 O protestos realizados na tarde desta quinta-feira (24), contra o presidente Michel Temer, voltaram a desencadear uma imagem recorrente no noticiário brasileiro: a de uma polícia fria e violenta. Há poucas semanas, eram as fotos da agressão ao estudante Mateus Ferreira, em Goiânia. Na manhã de ontem, ações na cracolândia e, hoje, temos o emblema de um policial atirando diretamente contra manifestantes no Palácio do Planalto.

Em meio a esse noticiário, Rafael Alcadipani, pesquisador da EAESP-FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e um dos maiores especialistas na questão atualmente, abriu ao blog “Morte Sem Tabu” os bastidores de como esses homens são estimulados à violência.

Alcadipani descreve uma rotina massacrante, em que policiais vivem sob péssimas condições de trabalho e constantes ameaças de morte, já que muitos são mortos apenas por carregarem a farda. O policial também luta contra um estigma ruim da sua profissão. “O polícial não é bem visto no Brasil. A presença constante com criminosos, estupradores e homicidas gera um estigma que afeta estes profissionais”, diz.

Um apontamento importante é que, entre os policiais, há muita ansiedade e depressão. Como ganham pouco, a grande maioria faz bicos em segurança privada, shoppings, casas, escoltas, etc. E acabam exaustos e impacientes.“A maior parte está endividada. Eles têm psicólogos, mas ir na psiquiatria é suicídio moral”, comenta o pesquisador. O que os levaria a um sentimento maior de isolamento, reforçando suas atitudes violentas.

Alcadipani afirma que a polícia militar brasileira está entre as que mais mata no mundo. É uma atitude justificada como “resistência seguida de morte”. A impunidade acaba influenciando, “se o caso chegar ao júri, é comum serem absolvidos diante da ficha criminal daquele que foi morto”. Ele diz que “a sociedade incentiva que ele mate, mas no final das contas ela abandona o policial que tem que tirar comida da sua família para pagar os altos custos dos advogados”.

Além disso, o policial militar que mata é bem visto dentro das sub-culturas da corporação. Ele é chamado de “Billy”. Dentro dessas sub-culturas das PMs, os colegas reforçam informalmente que ele tem que matar, que ele tem que bater para ser respeitado ali dentro. “Para ser visto como macho, o policial  militar precisa humilhar”, aponta Alcadipani.

O especialista também diz já ter escutado falarem que “matar é como trair, quando você começa, você não para mais”. A atitude envolveria um sentimento de onipotência, “eles sentem pouca culpa, mas se sentem deuses, porque na nossa civilização ocidental, quem tira a vida é Deus”. Outra frase marcante é: “não fui eu quem matou, eu só apertei o gatilho, quem tira a vida é Deus”. Muitos PMs se sentem como os “vingadores da sociedade”, os que irão livrar “a sociedade de todo o mal”.

Um possível mecanismo para melhorar essa situação, segundo Alcadipani, seria a mudança das culturas das PMs. A polícia civil, por exemplo, não teria esse comportamento, ao passo que a militar sim, como uma herança da ditadura que é reforçada internamente.

E o desenvolvimento de uma política pública eficaz, que possibilitasse uma mudança de paradigma na nossa sociedade, que hoje vê a criminalidade como um problema individual. “Uma consequência disso é a ideia de que o criminoso é uma pessoa do mal que deve ser combatida individualmente, levando os policiais militares a entenderem seu papel como justiceiros da sociedade, aqueles que resolvem os problemas com as próprias mãos. A sociedade acredita no mito de que matar resolve. Não que o criminoso não precise ser punido, mas pela lei e não pela vingança”, comenta o pesquisador.

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Portugal debate eutanásia no início de 2017 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/12/13/portugal-debate-eutanasia-no-inicio-de-2017/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/12/13/portugal-debate-eutanasia-no-inicio-de-2017/#respond Tue, 13 Dec 2016 11:21:02 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1218 A discussão sobre eutanásia e suicídio assistido tem crescido no mundo, menos no Brasil. Os deputados portugueses, por exemplo, acabaram de aprovar, por unanimidade, uma petição para a despenalização da morte assistida, que segue para o plenário da Assembleia da República no início do ano.

A petição define morte assistida como: “o ato de, em resposta a um pedido do próprio – informado, consciente e reiterado – antecipar ou abreviar a morte de doentes em grande sofrimento e sem esperança de cura”. Se o paciente auto-administrar a substância letal (tomar o líquido sozinho), o ato é chamado de suicídio assistido. Se um profissional da saúde administrar o remédio no paciente (injetar, por exemplo), é denominado eutanásia.

A maioria dos médicos paliativistas  que conheci se colocam contra o levantamento desse assunto porque consideram que apenas alguém mal amparado optaria pela morte. Mal amparado seria, por exemplo, não ter o tipo de suporte ofertado por cuidados paliativos– já que esse tratamento foca na dor física, psicológica e existencial do paciente.

Eu sou fã dos cuidados paliativos e das iniciativas e profissionais que entrevistei aqui no blog, mas preciso discordar desse ponto, porque um dos papeis desse espaço é levantar assuntos que normalmente são evitados, como esse.

O país poderia estar mais maduro para essa discussão, com uma política nacional consistente de cuidados paliativos e formação de profissionais da área. Mas considero que o debate diz muito sobre nossa relação com o Estado.

Nosso Estado costuma agir de forma paternalista, partindo do pressuposto de que ele é dono do nosso corpo e não nós mesmos. Como um pai, entende que não somos capazes de tomar decisões sobre esse espaço que habitamos e se apodera dele.

Não podemos abortar, não podemos abreviar a vida com ajuda médica, não podemos mudar de sexo e até para transar já teve muita lei aí que não fazia sentido.

Já cheguei a desenhar alguns argumentos contra e a favor do suicídio assistido e questões na elaboração de leis. Gostaria de retomá-los aqui para tentar reaquecer a discussão e, quem sabe, estimular o leitor a dar sua opinião na seção de comentários do post. Para quem não vive uma situação de terminalidade no momento (seja pessoalmente ou via parentes e amigos), fica difícil criar alguma empatia, mas é importante buscar se inteirar do assunto. Não vai demorar muito para nos alcançar, acredito eu.

Argumentos contra o suicídio assistido e a eutanásia:

  • Terminar uma vida deliberadamente é errado. A vida é sagrada e o sofrimento ao final dela só confere sua dignidade (aqui entram argumentos religiosos de que a vida é Deus quem dá e só ele tira);
  • Essas leis abrem espaço para que a morte prematura se torne um caminho mais fácil e mais barato do que os cuidados paliativos. Além de indicar uma possível exploração dos mais vulneráveis por parentes e médicos mal intencionados, que desejem a morte prematura daquela pessoa, por exemplo;
  • Pode ser um passo para a aplicação indiscriminada da eutanásia;
  • Suicídio assistido pode prejudicar os cuidados paliativos (como menores investimentos na área);
  • Os pacientes podem se sentir pressionados para decidirem morrer e não serem um fardo a seus parentes;
  • Só desejará morrer quem está mal amparado, com dor física ou psíquica: Com um bom atendimento de cuidados paliativos (e multidisciplinar), 100% dos pacientes mudam de opinião em relação ao desejo de morrer;
  • A lei será usada pelos mais pobres, que não têm plano de saúde e sofrem com maus tratos do serviço público;
  • Desvaloriza aqueles que possuem uma doença terminal e decidem não morrer antecipadamente.

Argumentos a favor do suicídio assistido e da eutanásia:

  • Liberdade e autonomia são fontes de dignidade humana;
  • Numa sociedade moderna e secular, é estranho falar em santidade da vida para aceitar-se o sofrimento, a dor insuportável e a miséria a que alguns pacientes são submetidos;
  • Evidências de países em que o suicídio assistido é legalizado, apontam não haver aumento de práticas de eutanásia. Em alguns países, como na Suíça, a eutanásia é ilegal apesar do suicídio assistido ser liberado.
  • As pessoas que optam pelo suicídio assistido normalmente não são motivadas pela dor,  mas sim pelo desejo de preservar sua própria dignidade, autonomia e prazer na vida;
  • Na Holanda, país que permite o suicídio assistido, considera-se haver um dos melhores cuidados paliativos da Europa.
  • A “The Economist” diz: “um estudo em 2008 concluiu que o movimento a favor da morte assistida na Bélgica trouxe melhorias nos cuidados de fim de vida de forma geral e que a presença de uma boa estrutura de cuidados paliativos tornou possível ética e politicamente para que tais práticas tornarem-se legais.”;
  • Algumas formas de suicídio assistido e eutanásia voluntária (ou mesmo involuntária) já ocorrem de forma ilegal;
  • Não há evidências de que o uso dessas práticas servirão os menos favorecidos financeiramente. Os números indicam que a camada da sociedade que opta pelo suicídio assistido é elitizada – tem acesso a plano de saúde, bons serviços de cuidados paliativos a disposição, assim como home-care, e alto nível de formação escolar.

Questões a ponderar na elaboração de uma lei nesse sentido:

  • Ela será permitida com base na dor do paciente (critério subjetivo) ou na fatalidade da doença? No Estado de Oregon (EUA), por exemplo, só são aceitos pacientes com um prognóstico de até seis meses de vida, atestado por dois médicos diferentes (nos EUA, cada estado regulamenta de forma independente a respeito);
  • Argumentos contra o suicídio assistido mencionam o problema do erro em diagnósticos médicos, tanto em afirmar que uma doença é terminal quando não o é, quanto em tempo de vida;
  • Na Suíça, a doença não precisa ser fatal. Nesse vídeo, uma mulher que sofre de uma doença óssea não letal opta pelo suicídio assistido. Ela segue bem humorada nos momentos finais de sua vida;
  • O paciente deve tomar o remédio letal de forma autônoma ou pode receber o medicamento caso esteja incapacitado? Em Oregon, por exemplo, ele deve tomá-lo sozinho, sem ajuda. O que traz manifestações nesse sentido, como um paciente com ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) que teme não poder se automedicar quando chegar a hora de querer morrer. Na Suíça, a lei exige que o paciente seja assistido no suicídio, ele precisa tomar o medicamento também, caso contrário, o caso será considerado eutanásia, que é ilegal no país;
  • A questão mais complicada refere-se a se essas práticas deveriam ser disponíveis para quem está sofrendo de angústias mentais ou não – como depressão crônica. Nesse vídeo produzido pela “The Economist Films” é levantada a possibilidade de a morte assistida servir como ferramenta de prevenção do suicídio. Ele usa como exemplo uma menina na Bélgica, país que permite o uso da lei para distúrbios mentais;
  • Se os menores de 18 anos poderiam usar a lei, mesmo com autorização dos pais, e como ela se aplicaria a crianças.
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Uma foto horrorosa https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/24/uma-foto-horrorosa/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/24/uma-foto-horrorosa/#respond Thu, 24 Nov 2016 16:14:10 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1204 Tem uma foto de roubar o ar na capa da Folha de hoje. Uma menina chamada Amira, de 15 meses, ensanguentada, morta. A legenda não deixa claro se o homem ao lado é seu pai, só comenta que ele “lamenta”.

Lamentamos todos. Acho importante jornais escancararem o horror diante do leitor. Há efeitos colaterais tolos. Um vai deixar o pãozinho de lado no café da manhã ao pegar o jornal, outro vai cuspir o suco e dizer que a Folha tem um tremendo “mau gosto” e há quem sussurre: desnecessário meus caros… desnecessário…

É uma pena que necessária seja justamente o que ela é. Por quê, pergunto eu para mim mesma. Porque é importante pararmos um minuto sequer nesse dia corrido e tentarmos visualizar a calamidade que vive a galera no Iraque (onde a foto foi tirada) e na Síria. Enquanto eu escrevo, enquanto você lê essas palavras, mais um bebê morre, perde os pais, ou brinca de esconde-esconde entre escombros de bombas.

Também não adianta a mídia nos chocar se nada podemos fazer a respeito, você poderia argumentar. Mas aí é que está. Há coisas a se fazer. Em primeiro lugar, é possível refletir. E isso não é tão inútil quanto parece.

Refletir sobre a que ponto o ser humano é capaz de chegar para conseguir o que quer. Eu nem tenho tão claro o que realmente o Estado Islâmico quer, mas vou colocar aqui, de forma simplista mesmo, que ele deseja a soberania. O que move as pessoas desse grupo, capaz de massacrar o outro de forma tão violenta e, ao mesmo tempo, alienada – porque só a alienação faz com que alguém consiga agir dessa forma – é um impulso também presente no Brasil.

Essa foto horrorosa foi tirada em um hospital improvisado no Iraque, mas poderia ter sido aqui. Nas favelas, nos assaltos, nos leitos de hospitais de São Paulo.

De forma mais prática, é possível doar dinheiro para entidades que buscam amenizar o caos, de ajuda humanitária. Também é possível parar de disseminar o ódio, a intolerância e o desrespeito. É possível dar a vez ao outro, entender que cada um tem um tempo diferente para pensar e agir, e perceber que esse outro tem direito a ter valores diferentes também.

É possível votar em pessoas que valorizam o poder de escolha e o acesso a oportunidades. É possível, inclusive, se candidatar para tentar fazer um país melhor. É possível pensar seriamente em ações que diminuam a desigualdade social e formas de diminuir a violência, como um estudo sobre os impactos da legalização da maconha.

É possível acreditar no ser humano. Confiar que ele saiba escolher os caminhos que melhor convém sem que isso signifique passar por cima de alguém. E que ele possa ter a responsabilidade adulta para decidir com quem gostaria de namorar, homem, mulher ou trans. Para decidir se gostaria de ter um filho ou não. Para decidir por uma morte assistida se assim desejar e confiar no Deus que ele bem entender. Talvez, mais empoderamento ao indivíduo faria com que ele acreditasse mais em si e no outro. E essa crença poderia evitar mais fotos horrorosas como essa.

É possível também apenas chorar com a imagem de Amira desfalecida nas mãos. Talvez essa seja a reação mais simples e a mais sincera de todas.

 

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Raiva e luto na direita americana https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/16/raiva-e-luto-na-direita-americana/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/16/raiva-e-luto-na-direita-americana/#respond Wed, 16 Nov 2016 11:44:58 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1191 A socióloga americana Arlie Russel Hochschild passou os últimos cinco anos entrevistando grandes apoiadores de Trump em uma região ultra conservadora dos Estados Unidos, a Luisiana, para tentar entender suas posições.

O livro “Strangers in Their Own Land” (estranhos em seu próprio país, em tradução livre) é o resultado desse estudo e foi considerado pelo “New York Times”, um dia após as eleições, um dos seis livros necessários para se compreender a vitória de Trump.

Ele chama atenção pelo subtítulo: “Anger and Mourning in The American Right” (raiva e luto na direita americana, em tradução livre). É comum vermos notícias sobre a raiva dos grupos de direita que crescem no mundo. Nos apressamos em tachá-los da mesma forma que não aceitamos sermos tachados. De uma forma generalista, eles são conservadores, racistas, misóginos, ufanistas e retrógrados. Não é de se admirar que tenham tanto recalque em assumir suas posições em público e nas pesquisas eleitorais.

O que Arlie notou em sua pesquisa foi um pouco diferente disso. Foram pessoas com raiva sim, mas também em processo de luto profundo. Elas perderam qualidade de vida, estilo de vida, acham que seus filhos terão uma vida pior do que a deles e perderam sua identidade como grupo.

Finalista do “2016 National Book Award”, o livro traz entrevistas com 60 “personagens”, suas histórias, desejos e receios. A maioria não se vê como racista e teme ser considerada assim. Há uma preocupação em serem apontados como retrógados porque são de direita. Trump não é venerado por esse grupo, mas é uma opção dentro de um contexto. E que contexto é esse?

Arlie disse ter visto um grupo de pessoas que se sente marginalizado pelo governo atual. Esse grupo não vê sua vida melhorar economicamente e observa “outsiders” furando fila na linha da prosperidade com a aprovação de Obama. Os outsiders seriam negros, imigrantes e mulheres. A questão levantada não é o fato dos (assim vistos) “outsiders” terem acesso a diretos e oportunidades, mas sim conquistá-los enquanto esse grupo se vê estagnado. “Furando a fila” é uma expressão que Arlie usa bastante.

Ela defende que esses eleitores acabam escolhendo líderes que não beneficiam seu grupo social. São prejudicados, por exemplo, por desastres naturais causados pela falta de regulamentação de empresas de petróleo – situação que ocorre com a conivência de políticos republicanos e acabam votando neles mesmo assim.

Para a autora, há lugares comuns entre a esquerda e a direita que deveriam ser trazidos à tona e usados como o início de uma conversa. Ela identificou questões semelhantes e necessárias para fazermos uma “ponte” entre esses dois pensamentos.

A empatia é fundamental. E certa autocrítica em analisarmos o discurso liberal de 2016 sem que ele seja a única forma possível de pensar. As eleições americanas mostraram que a arrogância da mídia em não dar voz aos descontentes, aos que discordam desse discurso e da globalização, por sentirem-se marginalizados a ela e aos princípios liberais, pode ser um tiro no pé.

É importante buscar compreender o que está por trás do pensamento daqueles que parecem votar sem ponderar o que seria melhor para si e para os outros, os que votam no impulso, motivados pela raiva e pelo luto. A raiva, inclusive, é tida como um dos estágios do luto.

Temos que ter cuidado para não cairmos nessa mesma onda e acabarmos empoderando líderes que não desejam o bem comum, que chegaram lá porque foram eleitos por um grupo que queria, antes de mais nada, se fazer presente. E vê no voto uma espécie de “declaração”, de negação a tudo ao invés de uma afirmação de desejo. Infelizmente, já estamos nesse caminho, mas ainda dá tempo de ouvir.

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Os seios de Maria Alice https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/03/os-seios-de-maria-alice/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/11/03/os-seios-de-maria-alice/#respond Thu, 03 Nov 2016 20:34:04 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/11/16307110-180x115.png http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1185 Pela primeira vez, o Instagram censurou uma foto publicada pela Folha. A foto também foi retirada da página do Facebook do jornal.

O Instagram indicou que a imagem não levaria o público a uma “experiência confortável”. A grande maioria dos internautas que comentaram a notícia apoiaram a decisão da censura, alegando ser uma imagem de “mau gosto”, “humilhante”, um “nojo”, e que o idoso deveria ter “noção de dignidade”, ser “discreto”. Alegaram que a retratada, Maria Alice Vergueiro, não deveria se expor dessa maneira.

Capa da última revista “Serafina” (da Folha), essa foto faz parte de um ensaio com a atriz de 82 anos, muito popularizada no vídeo “Tapa na Pantera” viralizado no YouTube. Ela sofre de mal de Parkinson e está em turnê com a peça “Why The Hourse”, na qual encena o próprio enterro, trata de temas como a velhice, a morte e a fragilidade humana, com cenas oníricas e metafóricas. Um espetáculo muito bonito, que dribla a razão e incita emoções inesperadas. Saí dele procurando não entender uma peça, mas sim senti-la. O que é um desafio para mim e talvez para grande parte da minha geração, que tende a racionalizar o mundo e não vê espaço na sociedade se não for através do uso incansável da razão.

Eis que essa foto traz à tona um pouco dessa reação. Ela fala diretamente com uma emoção, com o medo, com a surpresa diante do inesperado. Ela nos tira de uma zona de conforto, causa um aplauso enérgico ou uma torcida de nariz – de “nojo” de uma imagem que chegou a ser comparada a uma “intimidade de banheiro” por certa internauta, como se fosse escatológica.

No meu caso, trouxe um espanto positivo. Aplaudi, venerei. Maria Alice, sempre corajosa na sua maneira de se expressar, resolveu quebrar mais um tabu. O que ela mostra à câmera é algo absolutamente normal. São seios naturais, que sofreram o impacto da gravidade como todos os seios do universo. Salvo aqueles que se mantêm erguidos pelo bisturi. São bem-vindos esses também.

Os que repulsaram os seios de Maria Alice podem se lembrar de que o impulso para achar algo feio ou bonito é uma construção cultural. Nossa percepção estética é manipulada. No Renascimento, as mulheres mais gordinhas, com formas voluptuosas, eram consideradas bonitas, porque a gordura significava dinheiro extra para comer extra. Hoje, as magras são aceitas e as gordinhas são deslocadas.

Por isso, achar uma coisa bonita ou feia não depende totalmente de você. O gosto é fruto da interação social, dos dogmas do momento. Temos menos liberdade do que imaginamos na hora de um julgamento. Dois homens se beijando era considerado feio e nojento. O Instagram e Facebook (que controla o Instagram) deve ter censurado um monte de fotos dessas, mas duvido que continue fazendo atualmente. O beijo gay já é transmitido em rede nacional nas novelas. Digo o mesmo dessa foto. Quanto mais fotos expuserem a naturalidade do corpo, da velhice, menos reações horrorizadas teremos e menos censura.

Maria Alice não é uma minoria. O IBGE calcula que em 2030 já seremos um país de velhos. Em 2050, a população de velhos ultrapassará a de crianças e jovens de até 29 anos. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), nossa população acima dos 60 anos cresce acima da média mundial. Eu até acho que, quando chegarmos lá, a faixa para alguém ser considerado velho já terá subido consideravelmente.

Esses velhos, nós, devemos ter a liberdade para tirar a camiseta na frente do espelho sem nos sentirmos fracassados e nojentos. Envelhecer é um ato de coragem, de sabedoria. E cada ruga, cada marca ou cicatriz está aí para ser venerada, exposta com orgulho. O que não pode ser feito é o retrocesso: aceitar essa censura como legítima e inibir futuros ensaios como esse. Ao contrário, Maria Alice abre portas para uma nova liberdade. A liberdade para envelhecer, para se reinventar na velhice. Que seja considerado feio por um tempo, até a relatividade de nosso olhar dar as graças, derrubar esse tabu de vez, e finalmente passar a ser aceito. Como tudo na vida.

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