Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A morte de Lou Reed https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/10/a-morte-de-lou-reed/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/10/a-morte-de-lou-reed/#respond Wed, 10 Aug 2016 20:47:27 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/Unknown-180x180.jpeg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1040 “Hey baby, take a walk on the wild side” é o refrão da clássica música de Lou Reed, morto há quase 3 anos. Sua esposa, Laurie Anderson, contou em uma entrevista à revista Rolling Stones americana, como foi acompanhar os últimos momentos do homem que mudou a história do rock e foi seu companheiro por 21 anos. David Bowie chegou a reconhecê-lo como a pessoa mais importante do rock’n roll.

Lou morreu de câncer no fígado, aos 71, agravado por outras complicações, como uma diabetes avançada. Praticantes de Tai Chi, Laurie menciona um ensinamento que foi importante para o casal nesses últimos anos da doença: “você precisa dominar a habilidade de se sentir triste, sem ficar realmente triste”. Laurie não desenvolveu o assunto, mas eu posso interpretar isso como a postura de sentir tristeza sem ser dominado por ela. Deixar o sentimento ir e vir, ser passageiro como a chuva. A água molha e seca, ela corre, não estagna.

Lou teve um transplante de fígado que funcionou por um breve momento mas não o suficiente. Quando o médico disse que ele estava sem “opções”, não se resignou e, segundo sua esposa, só aceitou a morte na última meia hora de vida. E se entregou completamente. Eles estavam em casa, juntos.

Em sua última entrevista, um mês antes de morrer, Lou conta que dorme com a guitarra no quadril e oferece respostas poéticas, como “eu toco com o coração”. Ele chama atenção para um fato bonito da natureza humana: “O primeiro som que qualquer pessoa se lembra é o batimento do coração da mãe. Você vai se desenvolvendo, desde um amendoim (o primeiro formato do feto se assemelha a um amendoim), escutando um ritmo”.

Laurie testemunhou a morte de Lou, e sobre essa experiência diz:

“Como praticantes de meditação, tínhamos nos preparado para isso – como mover a energia do umbigo para dentro do coração e sair pela cabeça. Eu nunca tinha visto uma expressão tão cheia de encantamento como a de Lou quando morreu. Suas mãos estavam fazendo a forma fluxo-de-água 21 do Tai Chi. Seus olhos estavam bem abertos. Eu segurava em meus braços a pessoa que eu mais amava no mundo e conversava com ele enquanto ele morria. Seu coração parou. Ele não estava com medo. Eu pude andar com ele até o fim do mundo. Vida – tão linda, dolorida e fascinante – não tem como ser melhor do que isso. E a morte? Eu acho que o propósito da morte é a libertação do amor”.

Outra companheira que acompanhou a morte do marido foi Laura, esposa de Aldous Huxley. Ela relata, em uma carta, a experiência de ter injetado LSD em Aldous em seus momentos finais e oferecer ao amado uma “última viagem”.

Leia mais no post: Morte psicodélica – drogas alucinógenas para pacientes terminais e a morte de Aldous Huxley.

Outro artigo recomendado: EQM: experiências de quase morte

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A um querido moribundo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/07/28/a-um-querido-moribundo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/07/28/a-um-querido-moribundo/#respond Thu, 28 Jul 2016 11:38:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1030 Imagino que haja pouco movimento no seu quarto da UTI. Além de um bipe em ritmo, bipe, bipe, bipe, marcando um compasso melancólico. O som das máquinas pode lembrar a introdução de um tango sofrido.  Todo tango é uma despedida. Como esse bipe do quarto que pode ser sua morada final. Tenho a impressão de que você vê música em tudo, não por já ter te ouvido cantar (na verdade, nunca ouvi), mas pelo seu talento com a estética das flores e onde consolidou uma profissão. Conhecido por todos como o jardineiro seu Bruno.

Seu corpo alto e magro de 80 anos está estendido numa cama robótica, vestido com um avental verde. Você detestaria essa roupa se pudesse ver. Mas não pode porque teve um AVC hemorrágico e ainda não acordou. É provável que não acorde mais. Os médicos falaram para sua família ter pouca esperança, o estado que era crítico agora foi piorado por outros problemas e você foi de grave para gravíssimo.

Quem passa despercebido pelo seu quarto não imagina quem está ali na inércia de um fim. Suponho um residente, um jovem médico atualizando prontuários, esperando a hora de anotar um atestado de óbito. Eu chegaria ao lado dele e falaria: não se engane menino, este aí é o seu Bruno, um touro-homem de se admirar. Quase um minotauro numa versão fofa. Ontem mesmo estava em cima de casa, trocando telhas. Antes de ontem estava no Ceagesp comprando flores. Suas melhores amigas são as flores. Ele chega no serviço às 6 da manhã para acariciar as plantas junto ao primeiro toque do sol. Ele fala engraçado, todo mundo sabia. Porque ele é polonês. Com 1.80m, seu Bruno se enfia na terra de calça social, cinto, camisa e chapéu na cabeça. Minha mãe o chama de Gepeto. Mãos e pés engrossados pelo tempo de um jardineiro por escolha.

E eu alertaria o residente: não se apresse em descartá-lo para rodar o leito, porque seu Bruno é agarrado à vida. Nascido como Bronislau e apelidado de Bruno, ele é daquela geração que veio parar no Brasil fugindo de uma guerra. É um sobrevivente. Cicatrizes não faltam, nem por dentro nem por fora. Já enterrou um filho, morto por dengue. E dá uma em quem o desafie. Foi jurado de morte no seu bairro por ter reagido a um assalto. Um moleque pediu para o velho passar a carteira e ganhou uma porrada. O corpo duro e forte, de passos pesados e palavras dóceis – não perde a oportunidade de um elogio à mulherada. Fala o que pensa. Se pudesse falar agora, menino, te diria para deixá-lo sair porque tem que trabalhar.

Pessoas como seu Bruno são cada vez mais raras, eu diria ao residente. São pessoas que amam o que fazem. Não esperam para viver enquanto não estão trabalhando. Fazem do hobbie, seu ofício. Ao invés de se dedicar ao que amam somente nas horas vagas, se ocupam daquilo que amam. São adultos-crianças, brincam consigo mesmas, se permitem o prazer da vida. Fazem todo um universo surgir de dentro de um grão de terra. Porque o universo todo está nelas. Não é egocentrismo, é só a consciência de que somos natureza.

E eu diria para o residente, não se iluda, pois esse velhinho tem uma história de vida incrível. Como todos os velhinhos pacientes desse hospital, eles enganam a todos que passam. Vemos trapos de gente se desmilinguindo, enquanto são, na verdade, majestades. Grandes ondas de um oceano agitado, cansadas da viagem até a praia, prestes a passar do estado carne e osso para o estado imagem e lembrança. Como a imagem que tenho de você, ajoelhado aos pés da árvore, na alvorada. Fazendo carinho para ela “crescer melhor”. Viramos contos, eternizados nas lendas de família, uma fotografia fincada no coração, na memória de quem fica.

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Pagos para morrer https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/26/pagos-para-morrer/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/26/pagos-para-morrer/#respond Fri, 26 Feb 2016 11:17:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=851  

“Está na hora de você pensar num pôr do sol magnífico? Inscreva-se já!”

Um podcast do Freakonomics, sugerido pelo leitor Fabio Storino, reflete sobre um comercial de TV imaginário: um doente em seu leito de morte, ao lado dos familiares, debate sobre os altos custos de estender um tratamento médico que lhe proporcione uma sobrevida de uns três meses. O paciente tem a opção de não fazer o tratamento e ganhar um bônus de seu seguro saúde, num plano chamado de “o pôr do sol magnífico”. Aí, o comercial passa imagens atraentes desse dinheiro sendo gasto com uma última viagem inesquecível, um último desejo ou um investimento financeiro deixado aos netos.

A ideia partiu de um ouvinte do podcast questionando por que as empresas de seguro saúde não oferecem bônus aos pacientes que estão dispostos a dispensar cuidados médicos no final da vida. Ele diz: “quando um paciente recebe um diagnóstico terminal, as empresas de saúde terão informações suficientes que ofereçam uma estimativa dos custos que ele teria com tratamentos médicos pelos próximos 6 a 24 meses. Para os pacientes dispostos a dispensar esse tipo de cuidado, o bônus seguiria de acordo com a seguinte fórmula: um bônus imediato de 50% da diferença entre o custo atual do cuidado médico padrão e os cuidado paliativos. O paciente manterá o controle da opção, mas esse benefício se abrirá imediatamente a ele. A empresa de seguro saúde teria um ganho real e ajudaria a desincentivar o excesso de consumo de cuidados médicos nos últimos meses de vida”.

Veja algumas ponderações apontadas durante o bate papo do podcast, entre economistas e médicos:

  • Esse tipo de proposta seria um pesadelo de relações públicas para as empresas de seguro saúde, porque iria parecer que elas desejam manter o paciente fora do hospital, impedindo que eles tenham acesso à quimioterapia e a outros tratamentos somente para poupar dinheiro;
  • A ideia seria de difícil aceitação porque tratamento médico não é apenas uma questão econômica, é uma questão ética, quase religiosa;
  • É uma ideia fria, calculista, utilitária e pouco “americana”;
  • A ideia deveria ser discutida sim porque, dependendo do estudo, 40%, 60% ou até 80% de todo gasto médico de uma pessoa ocorre nos últimos 12 meses de sua vida;
  • É uma forma interessante de analisarmos: estamos priorizando qualidade de vida ou quantidade de vida? Se for para priorizar qualidade de vida, a ideia pode ser boa;
  • Esse tipo de proposta gera uma reação negativa imediata por tocar em vários tabus: morte, dinheiro e planos de saúde;
  • É uma forma de transferir a responsabilidade para o paciente em definir quando a vida dele terminará (e tirar das mãos dos médicos e do governo) – oferecendo a opção de ele abrir mão de um cuidado médico caro e transferir esse dinheiro para seus netos ou uma instituição de caridade, por exemplo;
  • A ideia não teria aceitação porque a maioria dos Estados dos Estados Unidos não aprova o suicídio assistido, o que indicaria uma dificuldade dos vivos em aceitar a opção de alguém pela morte;
  • Pode ser visto como uma forma de colocar um preço na vida humana;
  • Como seria a viabilização do pagamento ao paciente? Quais impostos o governo deveria cobrar, seria diferente em cada Estado ou igual no país inteiro?
  • Não existe um mercado funcionando em empresas de saúde. Você não sabe quanto custa um serviço médico. Nem a enfermeira sabe quanto custa um serviço, como o eletrocardiograma, por exemplo. É como perguntar para uma vendedora de camisetas quanto custa a camiseta e ela não saber responder. É assim que compramos serviços de saúde. As pessoas não consomem o serviço diretamente porque uma empresa paga pelo serviço por elas. Essa dificuldade em precificar atrapalharia a proposta;
  • O foco deveria ser em oferecer o maior conforto possível aos pacientes e seus familiares e não pensar em dinheiro e centavos (como a ideia sugeriria);
  • Há um paradoxo interessante porque os próprios médicos, em geral, não optam por intervenções em seu leito de morte. Não se vê um médico morrendo numa UTI. Quando é a vez deles, querem ser deixados em paz (um médico que fala no podcast diz que não gostaria de ser reanimado, não quer passar por tratamentos para câncer, etc);
  • Não é só porque a vida possa ser estendida por meio de cuidados médicos que ela deva ser estendida a qualquer custo (em detrimento de qualidade). E se você já pagou por esse cuidado médico, porque não receber algum bônus caso não utilize esse tratamento?
  • Há uma mudança em andamento, sutil mas há, de como o sistema de saúde americano olha para a morte.
  • O que fazer em caso do paciente mudar de ideia no meio do caminho? E se ele for internado em um hospital quando tiver inconsciente, por exemplo.
  • Muitos pacientes sentiriam-se obrigados a pegar o bônus por causa da situação financeira de sua família;
  • Um dos médicos do podcast coloca a questão de que os médicos deveriam ser pagos para falar sobre a morte iminente com seus pacientes. Pois essa conversa exige habilidades especificas e tempo, além de ser desgastante emocionalmente para o médico. Hoje, os médicos recebem mais por prescrever quimioterapia a seus pacientes do que por conversar com eles sobre seus desejos.
  • Essa conversa incentivaria pacientes a falarem sobre seus desejos no final da vida. Se querem ser ressuscitados ou não etc.
  • É muito difícil dizer quando alguém vai morrer (acertar prognósticos), o que inviabiliza a ideia;
  • É difícil para os pacientes saberem qual é a melhor opção e tratamento para eles. Qual é a minha real chance de cura ou de sobrevivência com qualidade? Quantos meses ou anos a mais eu viveria?
  • Em primeiro lugar, deveria haver uma conversa médico-paciente, honesta, sobre o que é realmente importante para ele. A primeira pergunta seria: como você gostaria de receber suas informações médicas. A segunda: qual é sua compreensão sobre sua situação. A terceira: o que é importante para você. A quarta seria: o que você espera do futuro, e a quinta: você já pensou em algum momento em que poderia estar muito doente, já pensou em testamento vital? Essa conversa mudaria completamente como as pessoas buscariam tratamento médico no final da vida. E faz com que se comportem como médicos, por pensarem no benefício que algo trará e o quanto esse benefício vale a pena ou não;
  • A dificuldade do médico falar sobre morte com seu paciente seria um grande problema.
  • Ao invés de uma proposta como essa, deveríamos iniciar o uso de cuidados paliativos com antecedência – no diagnóstico de uma doença e não apenas em sua fase terminal. Isso mudaria todo o cenário – para melhor. As pessoas teriam um melhor gerenciamento de sintomas e de dor e as famílias estariam menos estressadas. No final das contas, acabariam vivendo por mais tempo e não menos. E um bom efeito colateral é o de que a maioria das hospitalizações seriam evitadas.

A discussão não é simples e me parece ser um jogo de ideias válido de ser imaginado, por compreender um aspecto fundamental no que se refere a cuidados médicos no final da vida: direto à autonomia. Termos autonomia para tomar decisões, para nutrir uma conversa franca com médicos e familiares sobre um possível fim e como desejamos viver esse momento. Se a autonomia estiver comprometida (por questões físicas como um estado inconsciente), há formas de garantir que desejos sejam executados, com documentos como o testamento vital. Como a médica paliativista Ana Claudia Arantes diz: a morte é um dia que vale a pena ser vivido.

Escute o podcast nesse link

Transcrição do podcast (em inglês)

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Vladimir Kush “Sunrise by the ocean”

 

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É melhor morrer em casa ou no hospital? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/10/08/e-melhor-morrer-em-casa-ou-no-hospital/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/10/08/e-melhor-morrer-em-casa-ou-no-hospital/#respond Thu, 08 Oct 2015 18:51:16 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=685 Morrer em casa é mais pacífico e gera menos sofrimento tanto para o paciente quanto para os que o amam, mas demanda um suporte mais amplo. A conclusão é de um estudo divulgado nesta quinta-feira (8) pelo jornal médico da BioMed Central (BMC).

Há fatores determinantes para esse cenário: ter suporte familiar, acesso a cuidados paliativos domiciliar e à enfermagem comunitária. O estudo indica que devem ser criadas políticas públicas que garantam essas condições e assim, melhorar a qualidade de morte das pessoas.

Outros elementos aumentariam a chance de uma morte em casa, como a consciência familiar de uma doença sem cura, a discussão das preferências do paciente e a quantidade de dias de licença do trabalho que os parentes tiveram nos últimos três meses de vida do familiar.

Um exemplo é a situação existente em países como Canadá, Holanda, Noruega e Suécia, que desenvolveram programas sociais semelhantes à licença-maternidade para oferecer suporte às famílias que querem cuidar de seus parentes no final da vida.

O estudo, realizado em Londres, indica cuidado ao ser reproduzido para outras regiões com menos acesso às condições mencionadas acima, como é o nosso caso.

Mas é interessante observar que seu resultado trouxe uma preferência da população pela morte domiciliar, tendência já verificada em países como Estados Unidos e Canadá. Ao passo que no Japão, na Alemanha, em Portugal e na Grécia, a “morte institucionalizada” (como se refere o estudo, e quer dizer morte no hospital) é mais escolhida.

A autora principal do estudo, Barbara Gomes, diz que muitos pacientes temem morrer em casa para não serem um fardo para sua família, mas seu estudo encontrou evidências de que o sofrimento de morrer em casa é menor para a família também.

E no Brasil?

Reportagem desse ano da Folha indica o aumento de atendimento domiciliar na área da saúde (de uma forma geral), tanto na rede privada quanto na pública. Em relação à pública, o artigo constata: “Em 2012, o país tinha 184 equipes cadastradas para atender pacientes por meio do programa Melhor em Casa. Hoje, são 794. Apesar do aumento, a iniciativa não atingiu a meta, que era chegar a mil equipes até 2014. O Ministério da Saúde diz que habilitou outras 761 equipes, que dependem da iniciativa das prefeituras e Estados”.

Vou retomar algumas das entrevistas feitas no blog, pincelando comentários sobre a questão específica desse post.

A médica especializada em cuidados paliativos Milena Reis considera que morrer em casa, ao lado de quem se ama, seria o ideal. Mas ela destaca que isso pode ser complicado, porque algumas famílias não têm estrutura emocional para cuidar de um doente terminal, ou mesmo física. Ela dá o exemplo de um caso em que a cadeira de rodas do paciente não passava pela porta de entrada do apartamento. O alto custo de um “home care” também seria um fator limitante. Milena faz um paralelo entre parto humanizado e a morte em casa. Na medida em que começamos a discutir um, poderíamos passar a discutir o outro. Por que não colocar em pauta as condições necessárias para uma morte domiciliar? Quais políticas públicas precisariam ser desenvolvidas?

O geriatra Paulo Camiz considera que o maior medo dos mais velhos é sentir dor e solidão. Ele comenta que alguns usam frases como “ter medo de ser abandonado” e de “dar trabalho”. Paulo diz: “Quando uma pessoa está morrendo, tudo o que ela não quer é ficar sozinha e tudo o que os familiares mais fazem é deixá-las sozinhas. Vejo muito isso. Nos principais hospitais, boa parte dos pacientes que estão na UTI não precisariam estar lá. Mas é mais cômodo para o médico, porque tem um plantonista 24h a disposição para cuidar daquele paciente. A UTI facilita essa solidão, ela é muito desconfortável para visitas”.

Maria Goretti Salles Maciel, médica presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), diz que “não dá para ser muito romântico. A morte em casa pode ser uma morte boa, desde que você tenha acesso a uma assistência domiciliar, o que nem sempre é verdadeiro. Essa assistência seria um bom apoio da família e de bons profissionais. Meu pai morreu em casa. Mas eu estava lá e assumi os cuidados dele. Eu não sei se eu gostaria de morrer em casa não… Talvez para meus filhos seria mais prático eu morrer num hospital”.

Para a jornalista Eliane Brum, o importante é não se trocar um tabu pelo outro, um imperativo pelo outro – e defender que morrer em casa é melhor do que no hospital, por exemplo. “Passamos boa parte do século 20 silenciando sobre a morte, e agora, quando ela começa a ser falada, seria muito triste que se criassem outros dogmas para isso. Eu não acho que tem um jeito certo ou errado de morrer. Tem o jeito de cada um. Algumas pessoas acham melhor morrer em casa, cercadas pelas pessoas que amam, pelos objetos que fazem parte do seu mundo, contando histórias e ouvindo histórias. Outros vão achar melhor morrer no hospital. Tem quem vai tentar tratamentos invasivos, mesmo sabendo que há pouca ou nenhuma chance de ter resultado, outros vão preferir não. O importante é que os desejos sejam respeitados, que esse último ato da vida de alguém seja vivido nos termos dessa pessoa. Que a pessoa possa escolher e não que escolham por ela”.

O artigo será disponibilizado nesse link com acesso gratuito:

http://www.biomedcentral.com/1741-7015/13/235

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Um dia numa hospedaria de cuidados paliativos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/08/13/um-dia-numa-hospedaria-de-cuidados-paliativos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/08/13/um-dia-numa-hospedaria-de-cuidados-paliativos/#respond Thu, 13 Aug 2015 13:16:22 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=617 IMG_6184

Em uma casa de 1954 alugada pela prefeitura, ergue-se uma escadaria cinematográfica de um film Noir, introduzindo um vitral poético. Até os vidros das janelas menores são esculpidos, um deles mostra veados saltitando na floresta, e no outro, panteras. Há uma escada lateral estreita, destinada ao uso de funcionários na concepção inicial. Hoje não há tal distinção. Essa casa que um dia abrigou famílias de alta renda no bairro da Aclimação de São Paulo, desde 2004 recebe pacientes de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Municipal.

É para essa hospedaria – como são chamadas as casas com esse conceito, baseado no termo inglês Hospice, que são direcionados pacientes portadores de doenças ameaçadoras da vida (saiba mais no post “Cuidados Paliativos” e “Um dia na enfermaria…”).

Chegam em etapas muito distintas de seu diagnóstico. Alguns vivem dias, outros, anos. Como é o caso de Gilberta Fátima dos Santos, 56 anos, moradora da casa há um ano e oito meses. Acamada devido a um tumor na coluna, Gilberta não tem mais os movimentos da cintura para baixo. Sente falta de morar com a família, mas entende não haver infraestrutura na casa dos filhos para abrigá-la.

“Você sabe como é apartamento, lá é tudo menor. O banheiro é pequeno, impossível de entrar uma cadeira de rodas. Nem tem condições para instalar uma cama dessas (hospitalar). Só se for uma apartamento enorme, com um andar grandão que seja só seu. Então não tem condições. Aí eles (filhos e netas) vêm até aqui. Fui ao teatro com eles, fui para a igreja, fui ver minha netinha no hospital quando ela nasceu…”

Dos quatro filhos, uma menina morreu aos 14 anos, vítima de leucemia. A tragédia veio em dupla, pois na semana seguinte o marido de Gilberta foi assassinado ao reagir a um assalto.

Hoje ela tem cinco netas para alegrá-la em visitas constantes. Na parede ao seu lado, desenhos de Melissa, que adora reproduzir rostos de Mangá. Outra neta trouxe um travesseiro com o cheiro de casa para Gilberta se aconchegar.

Ali na hospedaria, permite-se visitas das 9h às 21h e os animais de estimação são bem-vindos.

De unhas sempre feitas, dentre outras marcas de uma vaidade viva, ela gosta dos cuidados recebidos e admira o trabalho dos profissionais.

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O conceito de cuidados paliativos envolve uma equipe multidisciplinar. Nessa casa percorrem enfermeiros, assistentes sociais, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, orientadores espirituais, fisioterapeutas, dentistas e nutricionistas. Alguns fazem parte da equipe fixa que se reúne semanalmente para discutir caso a caso. Ainda há voluntários, como uma enfermeira especializada em medicina chinesa, músicos e contadores de histórias.

A frente dessa galera bem intencionada está a médica oncologista Dalva Matsumoto, coordenadora da hospedaria e cofundadora do Instituto Paliar – voltado para educação em cuidados paliativos.

Dalva comenta a dificuldade em se quebrar paradigmas nessa área. “Cuidados paliativos não é abreviar a vida, não é tirar tratamentos e possibilidades. Trata-se de oferecer um tratamento que seja proporcional ao paciente. Adequado ao seu momento de vida e à sua doença. É difícil, porque a sociedade acabou sendo levada a acreditar que mais é melhor. Mas às vezes, menos é mais. Tem que ter delicadeza na hora de oferecer instrumentos. Senão, pode-se levar à distanasia, que é o prolongamento da vida a qualquer custo, o sofrimento por excesso de tratamentos”.

Dalva também considera importante tirar o foco de que ali só se hospedam pacientes que estão morrendo. “Apesar de recebermos pacientes com diagnóstico de dias ou de semanas de vida, acabamos oferecendo uma sobrevida muito maior, de anos. Os cuidados paliativos podem ser iniciados no diagnóstico da doença e não na sua terminalidade. Oferecemos a possibilidade de reinserção da pessoa na vida social e familiar. Existe uma morte social que a doença traz que pode ser pior do que a morte física, e a gente recupera isso”.

Fala-se muito em “dor não física” – seria a dor psicológica. Nos corredores ouvi falar em dor existencial, sobre uma paciente que não aceitava a morte, por ser muito jovem. “No hospital só tratam doenças, aqui tratamos pessoas”, é um lema comum da área de cuidados paliativos.

Discute-se a situação da família na reunião de equipe. Como é a relação entre cada um e como estão reagindo. Há recomendações como conversar com uma ex-mulher que está em conflito, por exemplo. Considera-se que na doença, os conflitos familiares que eram jogados para debaixo do tapete vem à tona. Os médicos se envolvem com essas situações. E até casamentos já fizeram dentro da casa. Foram três até hoje.

É uma casa com horários, mas sem uma rotina rígida. Há um intervalo de horário para banho (pela manhã), outro para almoço, lanche e jantar. No meio tempo, é comum ver um paciente lendo, tomando sol, assistindo TV ou recebendo visitas.

O horário de dormir é às 22h. Mas nem sempre é seguido. Alguns pacientes trocam a noite pelo dia, pelo receio de fechar os olhos no escuro e nunca mais abri-los.

Gilberta não. Dorme bem à noite e sonha, sempre com o corpo andando. “O nosso cérebro trabalha o desejo, a vontade que temos de andar, entendeu?”. Se as pernas voltassem a perambular, iria trabalhar como voluntária, contando histórias para pacientes, além de brincar muito com as netas. Quando tem insônia, liga a televisão baixinho, mas é raro.

Numa pausa na conversa, observamos passarinhos comendo amoras na árvore que ocupa a vista da janela. Gilberta suspira e diz sem eu precisar perguntar: “O tratamento aqui tem uma coisa de bom que eu analisei e observei: as pessoas aqui quando morrem vão bem. Não precisa entubar, ninguém vai gritando, passando mal. Eles cuidam de você com todo carinho do mundo. É tanto carinho que as pessoas vão bem. Eles viram o rostinho assim e vão com Deus. Eu rezo um Pai Nosso, uma Ave Maria e peço para que estejam com muita luz. A única certeza que a gente tem é da morte. O dia e a hora só Deus que sabe. Mas é um mistério né, a morte. Todo mundo fica preocupado sobre como é o lado de lá. Acho que as pessoas têm medo”.

Sentada em sua cama hospitalar, de batom na boca e penteado no rosto, Gilberta tem o melhor lugar do amplo quarto com capacidade para abrigar mais quatro pacientes. De frente para a TV e para a o vitral, com vista para as amoras e os pássaros. Lembranças das netas ao redor. Quem passa pega na sua mão e pergunta com carinho como a dona Gilberta está, e se precisa de alguma coisa. Ela pede água e um remédio para dor de estômago, confirmando a impressão de que muito além de paciente, Gilberta é uma hóspede. De passagem, como todos nós.

“Porque viver para além das conquistas da ciência, é mais do que respirar” – Eliane Brum

OBS: A hospedagem nessa casa é gratuita mas só disponível aos conveniados (e seus familiares) do Hospital do Servidor Público Municipal – funcionários públicos do município de São Paulo. Cabe ao paciente apenas garantir um acompanhante 24h, seja ele pago (nesse caso, pelo próprio paciente) ou não.

Falta de regulamentação

O Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira reconhecem a medicina paliativa como área de atuação. Mas ela não é uma especialização e por isso deve ser ligada a uma das oito especialidades permitidas: clínica médica, pediatria, geriatria, cancerologia, anestesiologia, medicina de família, medicina intensiva e cirurgia de cabeça e pescoço.

Há avanços para os atuantes nessa área. O Código de Ética Médica de 2010 menciona que o médico tem a obrigação de oferecer cuidados paliativos ao paciente, sendo um direito do mesmo recebê-los. E a resolução 1.805 do Conselho Federal de Medicina fala sobre o direito do paciente portador de uma doença avançada em decidir se deseja ou não a aplicação de medidas invasivas desnecessárias, tratando dos critérios para a ortotanasia (permitir que a morte ocorra de forma natural, suspendendo tratamentos e tecnologias que prolonguem a vida).

Para Dalva Matsumoto, ainda há muito a ser feito. Como uma indicação formal de critérios para os locais de atendimentos e tipos de profissionais, além da especificação de políticas de remuneração no SUS e nos planos de saúde. “Não há tabelas de remuneração dos profissionais de cuidados paliativos, nem tempo de duração da consulta. Por exemplo, uma consulta oncológica do SUS é de meia hora. A gente precisa batalhar para que uma consulta de cuidados paliativos seja de pelo menos uma hora”, diz Dalva.

A falta de regulamentação também facilitaria a abertura de clínicas particulares que agem sob o título de cuidados paliativos mas não oferecem a infraestrutura e o amparo adequados.

A médica considera fundamental a oferta de mão de obra especializada no setor. “É preciso formar as pessoas. Isso é uma coisa que temos lutado bastante”.

O Instituto Paliar, fundado por ela junto com a médica de família Maria Goretti Salles Maciel e Dr. Ricardo Tavares de Carvalho, está na terceira turma de um curso de especialização aprovado pelo MEC (por ser ligado a uma universidade – São Camilo). E o de pós-graduação está na sétima. Dalva comenta que a procura aumenta a cada ano. “E não apenas por médicos, mas também psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, dentistas, nutricionistas, todos os profissionais ligados à assistência que estão interessados em cuidados paliativos”.

 

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Vista da frente da casa – foto: Camila Appel
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Sala de televisão. Foto: Camila Appel
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Vidro de uma das janelas da sala de televisão. Foto: Camila Appel
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Um dia numa enfermaria de cuidados paliativos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/08/06/um-dia-numa-enfermaria-de-cuidados-paliativos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/08/06/um-dia-numa-enfermaria-de-cuidados-paliativos/#respond Thu, 06 Aug 2015 12:52:13 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=604 O dia começa com uma reunião na sala dos médicos, que antecede a visita aos pacientes. O sol entra pela janela da sala e às vezes eu me perco olhando um avião que cruza o céu na trajetória de Congonhas. É a vista dos pacientes da enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual.

É a vista dos que estão lidando com a morte iminente, cada um a seu modo. Mas nem todos pacientes de cuidados paliativos lidam com essa realidade de imediato, porque o conceito atual abrange uma doença ameaçadora da vida e não necessariamente terminal.

Após uma longa discussão sobre cada caso, o grupo de médicas percorre o corredor da enfermaria. Um paciente prefere não entender o que significa seu diagnóstico, não olhar para o fim (esse sim sem possibilidades de cura). Outro, até em melhores condições físicas do que esse primeiro, escolheu ejetar-se do mundo antes que seu corpo falhasse por completo. Em depressão, ele se recusa a sair da cama, mesmo tendo músculos para isso. Seu sentido na vida é o trabalho, e a partir do momento que perdeu a possibilidade de realizá-lo, morreu para si mesmo. Não quer saber de aprender a conviver com a doença e permanece lá, esperando a morte chegar. “Dor, depressão e desamor mata mais do que qualquer tumor” me confidenciou uma das médicas.

Uma senhora está de olhos fechados, a mente em algum outro universo com a filha a velá-la de lágrimas nos olhos e desespero no coração. Ela nos vê entrando no quarto, ela chora, mas sabe que a mãe está “indo embora”. Essa mãe apresenta uma respiração chamada sororoca. Em inglês, o termo é “death rattle” – a respiração da morte. Tido como um sinal de que a pessoa está bem perto do seu último suspiro, ela soa como um ronco da alma. Faz um certo eco cavernoso, talvez por encontrar menos vida para absorver o som lá dentro. É fruto da perda do reflexo de deglutição – perde-se a capacidade de engolir saliva, que se acumula nas vias aéreas.

Uma outra senhora está também em algum outro lugar. Ela dorme. É acordada para a visita das médicas. Ela vai aos poucos tomando consciência do que está acontecendo e levanta o dedo que cambaleia no ar. É a sua tentativa de dar algum sentido àquela cena e segue a contar mulher por mulher, um a um dos casacos brancos. A Dra. Maria Goretti Salles Maciel (fundadora da enfermaria, em 2002, e presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos) sempre apresenta o grupo nas visitas. Quando o paciente crava os olhos em mim (sem jaleco e com um olhar infelizmente de desconforto porque não consegui me arrancar nenhum outro), ela comentava que eu era “a jornalista escondidinha ali”.

Me senti envergonhada por invadir um espaço tão privado sem ter algo a oferecer de útil. Não sou  a psicóloga (Paula Coube) que todos olharam atentos enquanto um paciente conta seu sonho – ele via seu próprio corpo e mais três pessoas iguais a ele, todos de terno. Colocavam a mão no seu estômago (fonte da doença) e dizia que logo logo ele teria uma libertação.

O sonho foi visto como um triunfo pela equipe médica, uma “carta do subconsciente” por poder significar um início de elaboração da morte. Esse paciente não fala sobre o assunto diretamente. Ele é jovem, 64 anos, e esportista, com uma obstrução do intestino. Sua esposa está ao lado e rejeita qualquer possibilidade de não-cura. Sua condição o leva a muitas náuseas e vômitos. Um jargão interno que me encantou é “náusea do poeta” – expressão usada por Goretti sobre náuseas relacionadas a aspectos emocionais. É inspirada num poema de Drummond, sobre tédio, no qual diz “vomitar o tédio da vida”. Goretti escutou esse poema e o apelido “náusea do poeta” pegou, simbolizando o medo de morrer.

Esse sonho já tinha sido discutido na reunião prévia à visita, junto com uma orientação de se “trabalhar a esposa do paciente”, que está muito apreensiva com a situação e não aceita a possibilidade de uma doença irreversível. Comenta-se de tudo nessa reunião, casamentos atuais, ex casamentos, quantos filhos, como é a relação entre os filhos, qual é hobbie do paciente – como um fascinado por caiaque, o que levou Goretti a usar rios e pedras como metáfora para explicar carinhosamente a condição de seu corpo. Também se comenta inclinações espirituais e como cada um está lidando com o morrer (se for o caso). O foco da discussão não é só a doença do paciente. Na verdade, ela é a última coisa a ser comentada. Antes, faz-se essa análise do seu estado psicológico e o de seus familiares. Em primeiro lugar vem “quem é esse paciente, o que ele ama, quem ele ama”, para depois passarem para “o que ele tem” e daí, “o que podemos fazer por ele”.

Eu também não era a assistente social, Izabel Mendonça, que tudo anotava com um olhar meigo e silencioso. Quando visitamos a senhora do dedinho no ar, a assistente percebeu que não havia parentes ao redor e já se colocou ao telefone para descobrir o mal entendido. Os parentes acharam que havia horário de visitas para os internados na enfermaria de cuidados paliativos, como há nas outras. A desinformação foi esclarecida. Não há. Aqui pode vir a hora que quiser e ficar quando tempo quiser.

Tampouco tinha a oferecer o que uma das médicas (Maria Carolina Manfredini e Michele Dias Pinheiro) teria. E eu nada entendia de bem-estar e conforto, como a médica-acupunturista Paola Toth. Normalmente, também há a presença de uma fisioterapeuta e de uma assistente espiritual.

Eu não entendia dos casos e não podia dar qualquer informação útil aos parentes. Mas Goretti me incluiu como participante no “diário” da reunião dos médicos – que é o documento no qual anotam as informações de cada paciente. Nele há um índice usado para apurar-se prognósticos, chamado de PPS. Ele leva em consideração fatores como as capacidades do paciente (andar, se alimentar) e seu nível de consciência, formando um porcentual. Vai de zero a cem por cento. Por exemplo, 10% é um paciente nos últimos dias de vida. Um que apresente PPS de 50% é provável que tenha alta. Nesse caso, receberá atendimento domiciliar dessa equipe. Hoje, há 80 pacientes atendidos em domicílio. A taxa de morte na enfermaria segue mais ou menos um a cada dois dias.

A minha inclusão nesse documento me tocou, O gesto demonstra a preocupação com o outro, que faz parte do olhar que permeia os paliativistas. Foi uma forma de me colocar como uma participante menos intrusa nas visitas, e confortar meu sentimento de impotência. É difícil olhar a morte e não poder fazer nada contra ela. O que me coloca como referência-base para o case de como nossa visão da morte é deturpada. Deve-se lutar contra ela, ou pior, presume-se a arrogância de querer controlar tudo na vida, inclusive seu fim.

Essa visão prejudicial de precisarmos “lutar contra a morte” foi coloca pela jornalista Eliane Brum na reportagem “Vida até o Fim”, publicada no livro “O Olho da Rua” (ed. Globo, 2008) sobre essa mesma enfermaria. Ela coloca um pensamento que parece definir bem o clima de lá: “descubro então que a morte é um parto do lado avesso. E na enfermaria são todas parteiras que, em vez de esperar o tempo de nascer, respeitam o tempo de morrer”.

Uma enfermeira me contou que alguns pacientes chegam ali sem saber o porquê de serem removidos a um local chamado cuidados paliativos. Não foram avisados sobre seu diagnóstico, cabendo aos médicos que o acolhem contar as possíveis más notícias. Essa atitude é, em parte, baseada no fato de os paliativistas terem uma formação mais adequada para lidar com o tema da ameaça à vida.

Um problema visto pela equipe é só receberem pacientes em finalzinho de vida. Essa área da medicina teria melhores condições de atuar com a pessoa ainda bem, no diagnóstico da doença e não apenas nesses últimos momentos. Um dos motivos é por oferecer essa estrutura acolhedora que as outras áreas não têm, que é a estrutura multidisciplinar de atendimento. Um olhar personalizado e sem pressa, para ajudar o paciente a conviver com uma doença crônica.

No dia seguinte à minha visita, peguei um avião em Congonhas. Um bem simpático com cara de cachorro salsicha, como todos eles têm. No ar, zapeei os prédios lá embaixo pela janelinha de plástico. Em algum deles estaria um olhar acamado, uma sororoca, algum último suspiro. Enquanto eu mergulhava no céu ao lado de uma mulher que levava no ventre, o desenvolvimento de, em breve, mais um novo respiro no mundo. Simples assim.

OBS: o paciente sem vontade de viver melhorou seu estado psicológico e obteve alta. Foi para casa com a família e não precisou ser receitado com anti-depressivos. O esportista com naúseas passou a sentir-se melhor e sua esposa também, mas continua internado em estado crônico. E as duas senhoras faleceram no final de semana seguinte à minha visita. Em paz, como já aparentavam estar quando as vi.

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Os cinco maiores arrependimentos antes de morrer https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/05/25/os-cinco-maiores-arrependimentos-antes-de-morrer/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/05/25/os-cinco-maiores-arrependimentos-antes-de-morrer/#respond Mon, 25 May 2015 12:16:20 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=527 A médica geriatra Ana Claudia Arantes é muito séria na sua delicadeza ao falar sobre morte. Especialista em cuidados paliativos, para ela qualquer morte pode ser boa, se tiver em boas mãos.

É uma questão de usar a medicina a favor do paciente para deixá-lo o mais confortável possível enquanto espera pelo fim, e enxergar a saúde como um estado de bem-estar biopsicossocial. Arantes diz que a morte é um dia que vale a pena viver e pode ser vista como uma grande viagem para um local misterioso onde não sabemos qual será o clima, nem o terreno. Seria uma viagem planejada e não súbita, pois não se envelhece de repente. “Você tem que preparar seu corpo, sua família, se preparar financeiramente e espiritualmente”, afirma a médica.

Ela está ministrando os encontros “Conversas com a Morte” no espaço educativo O Lugar, com a sala lotada e fila de espera de mais de cem pessoas. Sobre o curso, Ana Claudia diz que “as pessoas não estão mudando sua concepção sobre a morte, elas estão mudando a forma de estar vivo”.

Uma de suas aulas é sobre os cinco maiores arrependimentos antes de morrer. Assunto já antigo na vida da médica, já que no final de 2011, seus vídeos sobre o tema foram popularizados, bem na véspera do temido fim do mundo de 2012, segundo interpretações do calendário Maia. A teoria dos cinco maiores arrependimentos tem inspiração no livro “Antes de Partir” (Geração Editorial, 2012), da enfermeira australiana, cuidadora de pacientes em final de vida Bronnie Ware.

Seguem os arrependimentos, segundo a Dra. Ana Claudia Arantes.

1)– Eu devia ter feito mais escolhas por mim do que pelos outros.

É comum fazermos escolhas pensando em outra pessoa e não em nós mesmos. Essa atitude parte do pressuposto de que é possível saber o que é melhor para o outro, mas quando essas suposições revelam-se irreais, causam uma frustração muito grande e a sensação de não ser valorizado por decisões que podem ser vistas como sacrifícios. Em geral, a maior parte das pessoas que se tenta privilegiar não pediram para que essas escolhas fossem feitas, e depois não adianta cobrar. Também podemos fazer escolhas para agradar o outro, como uma carência por ser amado e aceito. Elas tornam-se um arrependimento na medida em que não se vê retorno por essas atitudes no final da vida.

 

2) – Eu devia ter demonstrado mais afeto

Compreende-se afeto não necessariamente como amor, mas sim sentimentos em geral. Nesse caso, seria arrepender-se de não ter demonstrado o que se está realmente sentindo. Pode ser tanto uma emoção boa quanto ruim, como por exemplo deixar claro que não se está feliz. Mostrar afeto é difícil porque ele é necessariamente uma exposição, que vem acompanhada do risco de se machucar. Ao longo de nossa vida, a grande estrutura social, familiar e educacional que nos sustenta diz que devemos nos blindar e não deixar transparecer o que realmente pensamos e sentimos. É o movimento de ficar plastificado perante a vida. Como não aperfeiçoamos nosso modo de expressão dos sentimentos, acabamos sendo toscos e rudes, numa falta de recursos para se expressar.

 

3 – Eu gostaria de ter trabalhado menos

Há maior arrependimento em relação ao trabalho se ele não trouxer nenhuma possibilidade de transformação da pessoa ou do outro. Se alguém está se condenando a esperar todo dia pelas seis da tarde, depois toda semana pelo happy hour de sexta feira, o ano todo só para ter as férias e a vida inteira para ter aposentadoria, tem alguma coisa muito errada com essa vida. As pessoas trabalham em regime de grande pressão, dificuldade e frustração, em busca de uma aposentadoria. E nem sempre é falta de opção, pode ser uma escolha sem pensar no que vai realmente trazer felicidade. Isso traz arrependimento porque no final da vida não conta quanto dinheiro se tem no banco ou se tem uma casa, uma herança para passar. Conta o que foi feito com o tempo disponível. Isso é o que vai fazer uma pessoa olhar para trás e falar: valeu a pena.

 

4 – Eu gostaria de ter ficado mais tempo com meus amigos

É comum se arrepender de não ter planejado mais encontros com os amigos. Isso ocorre porque se tem relações mais honestas, mais transparentes e entregues com os amigos do que com a família. Não necessariamente temos possibilidades reais de trocas com a família. Às vezes essa relação é de cobrança, de peso, de fardo, de transformação pelo conflito. Com os amigos podemos nos sentir mais acolhidos e pode não haver o medo de sentir-se frágil na frente deles, por isso há mais liberdade para a busca pelo prazer.

 

5 – Eu gostaria de ter me feito mais feliz

Esse arrependimento resume os anteriores e fala sobre se colocar em primeiro lugar, pensar em si mesmo e na própria felicidade como uma prioridade. Quando se coloca o trabalho ou a convenção social como prioridade, deixa-se de olhar para a própria vida. Mas é ela que termina. A convenção social não termina, as pessoas sim. E por isso, há o arrependimento de não ter buscado a felicidade. Não no sentido egoísta de ser, mas no sentido de se permitir estar no mundo de uma maneira plena.

 

Ana Claudia diz que todos os caminhos da vida chegam no mesmo lugar, que é o muro do final da vida. Quando se chega nesse muro, a primeira reação é olhar para trás e ver o caminho percorrido para chegar até ali.

“O final da vida é unanime. Todo mundo vai chegar na morte. Qual caminho você vai escolher é o que vai fazer você ver sentido, ou não, nessa trajetória”, afirma a médica.

Segundo a Geração Editorial, editora brasileira do livro de Bronnie Ware, a enfermeira “nos ensina, por exemplo, que ser quem somos exige muita coragem; que o valor verdadeiro não está no que possuímos; que o que importa é como vivemos as nossas vidas; que podemos fazer alguma diferença positiva; que a vida não nos deve nada, nós é que devemos a nós mesmos; que a gratidão por todos os dias ao longo do caminho é a chave para reconhecer e curtir a felicidade agora; que a culpa é tóxica; que a solidão não é a falta de pessoas, mas de compreensão e aceitação; que é possível inventar vidas e demolir prisões criadas por nós mesmos. Enfim, ao falar da morte, a escritora nos revela que a percepção do tempo limitado pode aumentar a nossa consciência pela vida e nos induzir a tratá-la como uma preciosidade, que, realmente, ela é”.

O site da editora traz uma entrevista com Bronnie Ware. Reproduzo aqui uma das perguntas:

Que lições de vida você ganhou ao trabalhar com os que estão à beira da morte?

“Que no final de sua vida o que as outras pessoas pensam de você é irrelevante. Por que se preocupar com isso antes, então? Viva uma     vida boa e amável, mas sempre sendo forte e permanecendo fiel ao seu próprio coração acima de tudo. Sua vida é sua própria escolha. Sua felicidade é sua própria escolha. E no final da sua vida, quando olhar para trás, isso se tornará ainda mais evidente”.

Alguém poderia ver esses cinco tópicos como autoajuda, mas não são uma receita. Fazem parte da tendência de mesclar conceitos de disciplinas diferentes e olhar a vida de forma multidisciplinar. Não há preconceitos. Se a física quântica pode permear um terreno antes da religião, sendo justificativa para muitos relacionarem átomos com fé, uma médica pode usar uma lista de possíveis arrependimentos para falar sobre aceitação de si mesmo e a busca da própria felicidade como parte do processo de envelhecer bem biologicamente. Quando falamos a respeito, parece óbvio, afinal quem não quer ser feliz? A resposta não é tão simples e pela experiência de Ware e de Arantes fica claro que muitas vezes fazemos questão de não ser, e não final da vida essa consciência custa caro.

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EQM – Passagem de ida e volta para a morte https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/05/14/eqm-passagem-de-ida-e-volta-para-a-morte/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/05/14/eqm-passagem-de-ida-e-volta-para-a-morte/#respond Thu, 14 May 2015 17:50:45 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=515 Um dos maiores mistérios da existência humana é a compreensão do que acontece com a nossa consciência após a morte. Continuamos como observadores de um outro mundo ou apagamos completamente? Uma forma de buscar respostas é pesquisar sobre as “experiências de quase-morte” (EQM), termo traduzido de “near-death experiences”, criado em 1975 pelo pioneiro nos estudos desses fenômenos, o médico americano Raymond Moody Jr. São experiências subjetivas que ocorrem em situações ameaçadoras de vida. Os elementos mais comuns são: sentir paz, total serenidade, ver um túnel ou uma luz forte, encontrar parentes falecidos, revisar a vida, sair do corpo e vê-lo de cima, e retornar de forma consciente ao corpo.

Não há consenso entre os pesquisadores sobre a melhor forma de definir esse tipo de experiência e nem como estudá-la. O desafio é conseguir separar reações fisiológicas ou delírios de uma real consciência. A forma que parece mais concreta para uma investigação, e a mais utilizada, é o uso de casos de parada cardíaca, quando a pessoa é considerada clinicamente morta e volta a viver, relatando ter estado consciente durante o período em que estava morta.

E por que interessa à ciência investigar esse tipo de experiência? Porque a implicação disso é enorme. Se a consciência funciona mesmo com o cérebro parado, implica que ela é uma entidade independente do cérebro, ou seja, não é apenas fruto de conexões elétricas e químicas dos neurônios. Isso contradiz a concepção de que a mente e a consciência são produtos de atividade neural, dando mais um nó na cabeça dos cientistas, que não sabem ao certo nem como os pensamentos são formados ou como a subjetividade e o “eu” consolidam-se em nosso ser. O vencedor do prêmio Nobel, Dr. John Eccles, defende que a consciência é uma entidade a parte, ou seja, não pode ser reduzida apenas a atividades cerebrais. As experiências com EQM poderiam contribuir nesse sentido.

Um médico destemido, Sam Parnia, consolidou-se como um especialista em ressuscitação. Ele diz que “ninguém que morra de algo reversível deve morrer mais disso”. Além de investigar formas mais eficazes de ressuscitar pacientes, Dr. Parnia dedicou-se a um estudo intitulado “Aware Study”. A sigla “Aware” refere-se a “awareness during resuscitation” e quer dizer “consciência durante o processo de ressuscitação”. Dr. Parnia pretendia demonstrar a existência de uma consciência após a morte, confirmando de forma objetiva as experiências de quase-morte, mas nesse sentido, não conseguiu. Após a divulgação dos resultados, passou a dizer que o importante era “abrir portas para novas descobertas”. Alguns veículos da mídia resolveram pular na onda do vendável e da informação rápida e sucinta e divulgar sumários pobres sobre os resultados da pesquisa, com títulos como: “First Hint of Life Afte Death in Biggest ever Scientific Study” (“Primeiro indício de vida após a morte no maior estudo científico de todos os tempos”), reproduzidos com rapidez no Brasil e compartilhado no Facebook.

O “Aware Study” define-se no seu site como “o maior estudo já realizado nesse campo” – das experiências de quase-morte. Foram estudados 2060 pacientes que sofreram uma parada respiratória, em quinze hospitais na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Áustria. A pesquisa durou quatro anos e usou um sistema de entrevistas qualitativo e quantitativo, formado em três etapas. Foi a primeira vez que se usou marcadores objetivos para tentar separar as experiências reais dos eventos alucinatórios, com testes que procuraram identificar a validade visual e sonora dos relatos. Utilizou-se placas com imagens específicas colocadas em locais escondidos da visão convencional, mas que poderiam ser vistas por alguém “flutuando acima de seu corpo”, na sala de ressuscitação, para verificar se algum paciente as mencionava, como prova de estarem conscientes durante o processo. Seria uma forma de diferenciar de forma objetiva alucinações ou efeitos fisiológicos de um real evento de “Experiência Fora do Corpo”.

Os casos foram estudados em 2008, mas o resultados dos estudos só foram divulgados em outubro de 2014, na publicação Resuscitation. Do total dos pacientes estudados, 39% relataram a percepção de uma consciência enquanto estavam clinicamente mortos, mas não descreveram eventos específicos. Para Dr. Parnia isso sugere que muitos pacientes podem perder a memória desses eventos após a recuperação, devido a drogas sedativas ou danos cerebrais. Uma das conclusões do estudo é a de que “os temas relacionados à experiência da morte parecem muito mais amplos do que a compreensão que temos deles até agora”. Também se afirma haver “indícios de que algumas memórias de consciência visual são compatíveis com o chamado “experiência fora do corpo” e podem corresponder a eventos reais”. 46% relataram memórias relacionadas aos sete maiores temas cognitivos humanos: medo, animal ou plantas, luz clara, violência e perseguição e deja-vu. Apenas 2% dos pacientes relataram memórias visuais, como ver os médicos na sala.

Após uma parada cardíaca, a atividade elétrica do cérebro cessa em 20 a 30 segundos e só retoma quando o coração volta a bater. Cientificamente falando, não deveria haver nenhuma consciência durante esse período. Alguns cientistas afirmam que o relato de consciência é fruto da atividade cerebral ocorrida logo antes da parada cardíaca ou imediatamente após, nos primeiros segundos da ressuscitação. O indivíduo está inconsciente mas ainda tem ondas cerebrais presentes, dando a impressão de que ocorreram enquanto o corpo estava morto. Isso poderia explicar porque é comum os pacientes relatarem ver um túnel, já que a redução de fluxo sanguíneo para a retina e para o córtex visual, a zona do cérebro responsável pelo processamento da visão, provoca um estreitamento do campo visual.

Pesquisa da University of Michigan, anterior a do “Aware Study”, com ratos em laboratórios, indicou haver estímulos cerebrais isolados e esporádicos mesmo após a parada respiratória. Isso justificaria fisiologicamente as experiências de quase-morte, como sentir paz, pensar em memórias do passado ou mesmo encontrar parentes mortos, oferecendo uma explicação totalmente científica para esse tipo de fenômeno. Os pesquisadores também afirmaram terem encontrado uma prova de que a morte é um processo e não um evento, ou seja, ela ocorre aos poucos. Dr. Parnia critica esse estudo por ele ter sido feito em cérebros de ratos, e por isso pouco poder ser aplicado ao cérebro humano, “não há um modelo animal de experiências de quase-morte”, ele diz. O “Aware Study” foi realizado apenas com seres humanos.

As conclusões da tão esperada pesquisa do “Aware Study” desapontam. Primeiro porque divulga-se que foram estudados 2060 pacientes, mas 1920 deles não puderam ser ressuscitados (ou seja, morreram) ou não foram capazes de dar entrevista, caindo consideravelmente o número de pacientes realmente entrevistados.  Apenas 140 dos 2060 foram realmente estudados para se averiguar a possibilidade de terem tido uma experiência de quase-morte. Muito também se falou sobre a iniciativa do estudo em esconder na sala de ressuscitação placas com imagens específicas, de forma que apenas o paciente pudesse “vê-la” de cima, fora do corpo, para tentar comprovar a presença de uma consciência, de forma objetiva. Mas nenhum foi capaz de identificá-las. Nenhum.

Mas o fato de que 2% dos pacientes tiveram alguma forma de consciência visual verificada (terem identificado um médico que estava na sala, por exemplo) é excitante e indica que há muito ainda para se pesquisar sobre a relação cérebro-consciência, um campo obscuro já não mais privilégio das religiões.

O “Aware Study” pode não ter conseguido resultados convincentes, mas o doutor Parnia tem contribuições importantes no campo da ressuscitação e assim, no lidar com a morte. Ele explica alguns casos interessantes, como o de uma menina que foi ressuscitada após 16 horas morta, no livro “Erasing Death” (“Apagar a Morte”, disponível em português de Portugal, ed. Pergaminho, 2013).

Pelo ponto de vista científico, continuamos com as mesmas dúvidas: a consciência é apenas fruto da atividade cerebral? É o cérebro que ativa a consciência ou é a consciência que ativa o cérebro? E por último, que raios acontece depois que morremos? Continuamos a observar o mundo ou desaparecemos numa infinita gelatina sem cor e cheia de granulados, que me parece ser a galáxia em que vivemos.

Arrastada por 50 metros no asfalto – o depoimento de Vania Toledo

A forma mais popular de nos referirmos a uma experiência de quase-morte é nos casos em a pessoa sobrevive a um acidente grave e relata memórias sobre o período em que esteve desacordada, por exemplo. Escutamos depoimentos de amigos e nos assustamos com a vivacidade e profundidade da experiência. Não há dúvidas de que passar por uma situação de risco iminente de morte é transformador. Os relatos são vívidos e intrigam também por assemelharem-se muito uns aos outros. Os elementos presentes numa experiência de quase-morte já foram definidos por pesquisadores e confirmados com depoimentos. Apesar de não haver consenso e nem provas concretas quanto a uma explicação científica para sua ocorrência.

Conversei com a fotógrafa Vania Toledo sobre um acidente gravíssimo que ela teve em 1991. Num momento da sua recuperação, foi dada como morta por 11 médicos.

Numa tarde de domingo, Vania saía de um cinema na rua Augusta em São Paulo quando foi atropelada por um carro. Ela segurou no para-choque para levantar-se mas o motorista resolveu sair andando como se nada tivesse acontecido, arrastando Vania por 50 metros, grudada no para-choque. As pessoas na rua começaram a gritar e a polícia interveio, acionando a sirene. O motorista finalmente parou. Ele e seus três amigos estavam bêbados.

Vania desmaiou e conta ter se visto de cima, morta no asfalto. “Parecia que eu estava numa grua de cinema, bem alta, como se estivesse nas nuvens. Na minha frente, tinha um brilho muito forte, como uma luz diretamente nos meus olhos. Eu sentia paz misturada com medo. Acho que era o medo do desconhecido, porque eu senti que estava indo embora, mas eu adoro a vida e gostaria muito de viver”, diz Vania. Ela considera que o medo a trouxe de volta, junto com a força da vontade de criar seu filho e continuar seus projetos.

Após o acidente, ela leu outros relatos sobre esse tipo de experiência e, numa conversa com o dramaturgo Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), que era espírita, entendeu ter visto o túnel da morte, que liga a vida real com a vida após a morte.

“Quando eu vi os bombeiros chegando, eu voltei para o meu corpo”. Vania foi para o Hospital Santa Casa, onde passou por 22 cirurgias. De lá foi transferida para o Hospital Sírio Libanês, em que permaneceu por seis meses e meio na UTI. Seu ortopedista a chama de “milagre”. Ela foi dada como morta em consequência de uma septicemia (infecção generalizada grave). Sobreviveu.

“O que eu passei não foi uma fantasia, é algo profundamente íntimo e doloroso para mim, algo que eu nunca conto para ninguém”, afirma Vania. “É como se eu tivesse visto o portão que dá para o outro lado, mas eu decidi não abrir e não entrar. O fato de você sobreviver a isso e poder constatar a força da recuperação e de reverter todos os prognósticos médicos, é no fundo, a força da vida. É a possibilidade de decisão interna que temos de dirigir pelo menos um pouquinho o nosso destino, o mínimo poder de decisão que o ser humano tem de viver ou não”.

Vania comemora seu aniversário todo ano no dia 11 de novembro, dia do acidente. “É uma nova vida que me foi dada a viver”.

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Bioética da beira do leito https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/01/15/bioetica-da-beira-do-leito/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/01/15/bioetica-da-beira-do-leito/#respond Thu, 15 Jan 2015 15:32:06 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=270 Há muitas definições do que é Bioética, mas a forma mais comum de entendê-la é o estudo de questões éticas e morais que surgem dos avanços da medicina e da biologia. É uma cadeira interdisciplinar, por se relacionar com outras áreas do pensamento, como a filosofia e considerar a moral dos cientistas em suas pesquisas. Alguns dos temas levantados são eutanásia, aborto, transgênicos, clonagem, pesquisas com células tronco, entre outros. A Bioética também serve para assessorar médicos nos conflitos do dia-a-dia, que surgem durante o exercício de sua profissão.

Dr. Max Grinberg, cardiologista, é diretor de unidade clínica do Incor e membro do Centro de Bioética do CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo). Criou um conceito denominado por ele como “Bioética da beira do leito”. Tem diversos livros publicados, entre eles “Seis personagens a Procura de um Doutor” (Via Estudio, 2004) e alimenta diariamente o blog: Bioamigo. Na entrevista abaixo, ele define Biotética e a sua compreensão nessa especificação que ele propõe.

O que é a Bioética da beira do leito?

Ela é a Bioética na prática, a Bioética clínica. Lida com os conflitos que podem surgir das relações plurais entre medicina, médico, paciente e familiares, sistema de saúde e instituição de saúde. Dá destaque à interdisciplinaridade que fundamenta preceitos éticos, morais e legais e enfatiza que desconhecimentos e incertezas estão presentes em cada tomada de decisão, na assistência e na pesquisa. Bioética é a humanização da medicina. Deveria ser algo natural, mas não é.

Há várias definições de Bioética. A que eu gosto mais é a de um filósofo francês, Andre Comte-Sponville (conhecido pelo livro “Pequeno Tratado da Grandes Virtudes, Martins Fontes, 2009). Ele diz que Bioética é o dever de cada ser humano com outro ser humano e de todos com a comunidade. Também pode ser definida como ética da vida ou como a junção da ética médica, de como o médico deve se comportar profissionalmente, com a filosofia moral, como cada um deseja viver sua vida. Aí já pode se perceber uma dualidade, entre o que seria o que a medicina recomenda, com o que o paciente gostaria de fazer, que não necessariamente é o que a medicina tem para oferecer. Questões como eutanásia, ortotanásia, cuidados paliativos, são contemplados pela Bioética.

O médico trabalha num ambiente de muita vulnerabilidade. Todos nós somos vulneráveis. Só o fato de depender de outra pessoa, já nos coloca vulneráveis. E eu acredito que a Bioética é um ato de coragem. Gosto muito da abordagem de coragem do psicólogo americano Rollo May (1909 – 1994), no livro “A Coragem de Criar” (Nova Fronteira, 2000). Aqui, seria a coragem moral, coragem de se envolver, não só prescrever tratamentos. A coragem moral é você se preocupar realmente com o outro e não ficar apenas no tecnicismo. Não ficar indiferente, apático a situações de conflito, que ocorrem na medicina todos os dias.

Como o juramento de Hipócrates se relaciona com a Bioética?

O juramento de Hipócrates, usado na formatura, é importante por ser um símbolo que deve ser preservado. Não pode ser levado ao pé da letra. Hipócrates teve o grande mérito de separar a medicina da religião. A partir dele, a doença não foi mais vista como um ato divino. Há duas questões no juramento que ainda são atuais: o sigilo e não maleficência (se bem não podemos fazer, que não façamos mal). Isso é emblemático.

Como a eutanásia é abordada pela Bioética?

Em relação ao tratamento no final da vida, a permissão para não se prolongar a vida a qualquer custo foi um marco. Nesse sentido, a Ortotanásia* foi uma grande conquista da medicina nos últimos tempos. Em 2005, o Conselho Federal de Medicina lançou uma resolução dizendo que os médicos poderiam, na terminalidade da vida, não acrescentar tratamentos ou mesmo decidir por suspendê-los. O Ministério Público processou os signatários como incitação ao homicídio, que foi revogado após alguns anos. Mas conseguimos inserir essa possibilidade no Código Médico. Assim, quando chegamos numa situação de terminalidade, onde se está no limite da medicina, podemos fazer cuidados paliativos, não prolongando a vida e procurando oferecer o maior conforto possível. É um campo que tem se desenvolvendo muito e conta com critérios para uma morte digna.

*Ortotanásia é permitir a evolução da doença, deixando que o paciente morra naturalmente. Evita-se tratamentos que prolonguem a vida e aparelhos para mantê-la artificialmente.

Você acha que a eutanásia ou o suicídio assistido funcionariam no Brasil?

Não sei. Com certeza haveria muitos pontos de vistas contrários. Mas é algo que deveria ser discutido, porque algumas pessoas podem querer terminar a própria vida. É sempre o problema do abuso. Eu não gosto da não-opção. Mas com critérios, deve ser discutido. Tem-se o receio de que possa ser uma afronta religiosa ou que será usado de maneira indevida.

(para maiores informações sobre esse tema, sugiro os posts: Permissão para morrer e A discussão no Brasil )

Como a Bioética se relaciona com religião?

Há o ponto de vista de que a bioética possa ignorar a religião, porque nessa área de pensamento, não existe certo ou errado. Tudo depende da situação, e essa relativização não é permitida na religião.

Um exemplo clássico da Bioética é em relação a testemunhas de Jeová. Essa religião não permite a transfusão de sangue. Porque está escrito na Bíblia que “não comerás sangue” e foi feita uma analogia entre comer sangue e fazer uma transfusão, por isso a proibição. Quando se faz uma cirurgia, é necessário ter uma reserva de sangue para uma emergência, caso seja necessário uma transfusão e, em muitos casos, ela pode significar a vida ou a morte do paciente. Quando o paciente não a permite, como é o caso das testemunhas de jeová, o médico tem um conflito nas mãos. Segundo o Código de Ética Médica, quando existe risco iminente de morte, o paciente não tem autonomia de decisão. Mas alguns médicos preferem respeitar o paciente e não fazê-la. Em uma pesquisa recente, 22% dos médicos falaram que não fariam a transfusão, respeitando a decisão do paciente.

Existem três tipos de médicos: aquele que não quer se envolver, o que respeita o paciente até o final e não faz a transfusão e aquele que não permite a morte e faz a transfusão. Existem dois tipos de paciente, o dogmático, que não a permite em hipótese alguma e o que acaba permitindo pelo instinto de sobrevivência, aceitando a transfusão. A minha recomendação, pessoal, é a de fazer a transfusão em casos de risco iminente de morte, mesmo se o paciente for contra por questões religiosas.

Quais são os princípios da Bioética?

A Bioética tem quatro princípios básicos, ela é principialista. Não é a única forma de ver a Bioética mas é um bom olhar para a Bioética da beira de leito: a beneficência (que é o benefício gerado), a não maleficência (que eu chamo de segurança), a autonomia e equidade.

O beneficio é aquilo que é útil e eficaz. Por exemplo, você tem uma infecção, vamos dar um antibiótico bom para esse tipo de infecção. Cada dia, com o progresso da medicina, temos mais benefícios e fazemos remédios melhores. Mas cada benefício leva a um malefício em potencial. A Bioética é importante nesse aspecto porque precisa mapear os benefícios e quais são esses riscos potenciais. Por isso gosto de chamar o princípio da não maleficência de segurança.

O princípio da autonomia diz sobre o direito de participar ativamente da tomada de decisão. Todos os atores envolvidos – profissionais de saúde (médicos, enfermeiros), instituição (hospital), sistema de saúde (planos de saúde), o paciente e seus familiares – participam da tomada de decisão e desses diversos relacionamentos surgem conflitos e o médico pode solicitar a ajuda da Bioética, entrando com um requerimento para uma comissão de Bioética que emite pareceres.

Qual é o futuro da Bioética?

A nova geração de médicos tem se preocupado muito com essa parte humana da medicina. Mas se não houver uma atenção, a coisa pode se desviar um pouco. Por exemplo: o médico residente quer operar mais para aprender mais, então ele pode tender a rodar o leito mais rápido, antecipar altas para liberar o leito e poder receber mais pacientes e operar mais. Não é por maldade, mas por uma impressão equivocada. Por isso precisa de supervisão, para não ter esses abusos.

É muito importante manter a interdisciplinaridade na Bioética. Ter várias opiniões sobre outras áreas de pensamento, como a área de direito, psicologia, assistência social, etc. E hoje se fala muito também em transdisciplinaridade, que vai além das disciplinas, porque também aborda o metafísico, as diferentes religiões.

O problema de comunicação tende a ter cada vez mais a atenção da Bioética. Não existem doenças, existem doentes. É velho aforismo. A pessoa é fundamental. 80% das reclamações para o CRM são por problemas de comunicação, é sobre atitude e não em relação à parte técnica. Reclamam que o médico falou de uma forma grosseira, ou deu uma previsão errada, não indicou os riscos de um tratamento, etc. É fundamental que o médico esclareça os prós e contras de qualquer tratamento. A boa comunicação de más notícias também precisa ser aprendida.

Os médicos se sentem despreparados para dar más notícias?

Eles têm a solidão do poder. É uma pirâmide. Conforme subimos na pirâmide, vamos crescendo profissionalmente e ficando mais sozinhos. Se você é o último a decidir, não tem ninguém para compartilhar. Por isso a importância da Bioética. Ela está aqui para assessorar.

blogmorte635
Fotolia/Freshidea

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