Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O Direito do Corpo Morto https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/06/19/o-direito-do-corpo-morto/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/06/19/o-direito-do-corpo-morto/#respond Mon, 19 Jun 2017 16:18:25 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1324 Hoje, partimos do pressuposto de que o corpo morto não tem direitos. Ele pertence à família, que pode fazer o que bem entender com o corpo. Ou ao Estado, no caso de não haver uma família requisitando aquele corpo. A família pode, por exemplo, decidir não doar órgãos, independente de ser uma vontade explícita do morto. Pode, também, enterrar a moça como moço, já que foi assim que ela nasceu, ou chamar um padre ao invés de um pai de santo.

O advogado e professor Fábio Mariano da Silva, Secretário Geral da Reitoria da PUC-SP, dedica sua tese de doutorado em Ciências Sociais a esse tema. Uma das frases mais marcantes que trago de nossa conversa é: “a forma como nos tratam na morte é um reflexo de como somos tratados em vida. As pessoas não percebem essa sutileza”.

A falta de direito do corpo morto, ou mesmo a falta de dignidade no seu tratamento, seria uma consequência da indignidade com que essa pessoa foi tratada em vida.

Fabio foi despertado para o tema quando teve que lidar com a morte da sua mãe. Ela morreu logo após o irmão, que vivia em uma região menos favorecida de São Paulo. O tratamento que Fabio e seu primo tiveram foi completamente diferente. A burocracia e os preços, que deveriam ser tabelados, variavam. Fabio não se conformou, ao contrário do que a maioria de nós faz, sugados pelo luto arrebatador. E hoje, o incômodo com essa discrepância se transformou em pesquisa.

A primeira ação de Fabio foi buscar no Código Civil normas a esse respeito, descobrindo que, de fato, o corpo morto não tem direitos. A lei se refere apenas ao direito a ser sepultado e a permanecer sepultado.

Fabio defende que deveríamos levar em consideração direitos constitucionais, como a identidade de gênero, a manutenção do nome e o direito a livre manifestação religiosa, independente da crença familiar.

Enquanto dava aulas no programa “Transcidadania”, da Prefeitura, Fabio escutou relatos sobre transgêneros enterrados como homens, porque a identidade de gênero não era respeitada pela família e nem precisaria ser, por direito. Ele conta já ter sido foi chamado, por um grupo do Candomblé, para defender o caso de um praticante que iria ter um ritual cristão em seu funeral por imposição da família.

Em sua tese, Fabio critica e discorre sobre como a lei construiu o conceito de “pessoa” e, consequentemente, “sujeito de direito”. E como esse conceito foi deixando certos grupos, não considerados pessoas, fora da lei. Basta observar que, por muito tempo, se considerou escravos como mercadorias e não pessoas. “Algumas doutrinas dizem que o corpo morto não é uma pessoa, mas para mim é”, diz o pesquisador.

A segunda frase que mais me marcou nessa conversa foi um ditado da avó de Fabio: “a morte suspende todos os atos”. Ela parece cada vez menos verdadeira. Chegamos a estranhar, hoje, quando alguém suspende seu cotidiano para ir a um ritual fúnebre. É quase visto como uma desculpa para tirar um dia de folga. Antigamente, era um dever, uma demonstração de respeito, uma oportunidade para compartilhar histórias, refletir sobre a finitude e oferecer apoio aos familiares.

Nesse aspecto, Fabio afirma: “As pessoas estão se tornando cada vez mais práticas em relação à morte. Temos a urgência de sermos felizes nessa sociedade do consumo. Não há tempo para viver o luto”.

Ele indica um curta metragem muito premiado, “Os Sapatos de Aristeu”, sobre o corpo de uma travesti que é preparado por outras travestis como mulher. Mas quando chega na casa da família, sua mãe corta seu cabelo, retira a maquiagem, os cílios postiços, veste-a com roupas masculinas, e a vela como homem. Uma das travestis consegue, no final, colocar sapatos de salto alto em Aristeu. Uma única peça de roupa lembrando quem realmente foi aquela pessoa e com quais passos ela decidiu caminhar pela vida.

 

Um artigo da revista eletrônica AEON, escrito por um professor de filosofia de Nova Iorque, afirma haver uma indústria gigantesca dedicada a executar os desejos dos seres humanos após sua morte e que respeitar esses desejos poderia levar a “sérias injustiças econômicas intergeracionais”. O professor diz que honrar os desejos dos mortos é um senso de dever moral equivocado. É um outro ponto de vista e menciona direitos que nem raspam na nossa realidade, mas também vale a pena conferir. 

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Um hotel para os mortos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/06/um-hotel-para-os-mortos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/10/06/um-hotel-para-os-mortos/#respond Thu, 06 Oct 2016 19:14:35 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/10/lastel-corpse-hotel-32-180x117.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1122 Aparentemente, não há razão de existir para um hotel onde os hóspedes são defuntos e não casais em lua de mel. Mas no Japão há sim e o motivo é simples: a fila de espera do crematório chega a quatro dias, levando famílias em busca de alternativas a deixar o corpo em casa, aguardando.

O hotel Lastel, na província de Yokohama, sul de Tóquio, tem 18 quartos com caixão refrigerado e espaço para os familiares mais próximos velarem pessoas queridas enquanto o dia da cremação não chega.

A indústria da morte no Japão tem mostrado crescimento. A população de 127 milhões de habitantes já atingiu seu auge e deve cair para 100 milhões em 2050. É o que a revista “The Economist” chamou de “Peak Death” (auge da morte). A taxa de mortalidade é de 0,94% enquanto a global é de 0, 84%.

Japoneses tendem a gastar bastante com rituais funerários – o dobro do que a população americana gasta anualmente. A indústria chega a mobilizar US$20 bilhões de dólares por ano.

Nesse contexto, empresas começaram a ver oportunidades e lançaram ideias como: papelarias que vendem “ending notes” – cadernos específicos para providências a serem tomadas após a morte – e um barco que oferece levar familiares até a baía de Tóquio para jogar cinzas.

Duas empresas americanas que vendem serviços de lançar cinzas no espaço, a Celestial e a Elysium, abriram franquias no Japão. Também há o serviço de colocar cinzas em balões gigantes que serão soltos no céu (nessa área nós também empreendemos, com o Crematório Vaticano, por exemplo, misturando cinzas a fogos de artifícios).

Há conferências destinadas àqueles que desejam preparar seu próprio funeral. São três dias de imersão para os participantes escolherem seus caixões, urnas de cremação, fazerem lista de convidados, escutarem exemplos de música e aprenderem a estimar os custos de seus funerais. Também podem praticar a escrita do texto de anúncio de suas mortes e pensar no legado deixado.

Empresas de tecnologia andam se envolvendo. Há dois anos, a Yahoo Japão lançou o “Yahoo Ending”, um serviço que cobra uma taxa mensal até a sua morte e avisa seus amigos que você morreu, fecha suas contas na internet e abre uma página memorial on-line. O serviço também oferece a organização do velório. A Amazon Japão disponibiliza um serviço on-line de contratação de monges, que ainda não pegou muito bem.

Há uma migração de profissionais da indústria de casamento para a de morte, estimulados pela fácil inserção no mercado, por não ser necessário qualificações ou licenças obrigatórias.

Segundo Hiraku Suzuki, no livro “The Price of Death – The funeral Industry in Contemporary Japan” (o preço da morte – a indústria funerária no Japão contemporâneo), há um movimento progressivo de comercializar aquilo que antes era parte de um ritual religioso no Japão. As empresas funerárias teriam um papel importante em definir novas práticas culturais e, assim, transformar a sociedade. O autor analisa como a mudança de rituais comunitários tradicionais para os serviços funerários comerciais impacta a sociedade japonesa e seus valores.

No Brasil, uma mentalidade mais comercial me parece existir, mas sem o outro lado da moeda, que seria esse olhar empreendedor pensando nas famílias enlutadas como clientes, com direito a informação, transparência, escolha entre alternativas, serviços personalizados, confiança e qualidade. Por isso, temos poucos serviços disponíveis, um monopólio público na maior cidade do país e baixo acesso à informação. Só usufruímos dos malefícios da morte ser vista como uma commodity. Tá faltando o outro lado da equação.

O filme “When I die, Inside Japan’s Death Industry”, mostra imagens interessantes sobre a indústria da morte japonesa:

 

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Columbário no Japão: gavetas que guardam cinzas são representadas por Budd has de cristais iluminados por LED colorido. Foto de Chris MacGrath. http://www.ibtimes.co.uk/japans-ruriden-columbarium-crystal-buddhas-led-lights-spectacular-afterlife-photos-1495182
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Columbário no Japão: gavetas que guardam cinzas são representadas por Budd has de cristais iluminados por LED colorido. Foto de Chris MacGrath. http://www.ibtimes.co.uk/japans-ruriden-columbarium-crystal-buddhas-led-lights-spectacular-afterlife-photos-1495182
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Columbário no Japão: gavetas que guardam cinzas são representadas por Budd has de cristais iluminados por LED colorido. Foto de Chris MacGrath. http://www.ibtimes.co.uk/japans-ruriden-columbarium-crystal-buddhas-led-lights-spectacular-afterlife-photos-149518
Fachada do Lastel Hotel (para cadáveres), no Japão. REUTERS/Yuriko Nakao
Quarto do Lastel Hotel para cadáveres, no Japão. REUTERS/Yuriko Nakao

Leia mais no blog: Duas empreendedoras da morte no Brasil:  A preparadora de corpos Nina Maluf e a Mylena Cooper – do Crematório Vaticano.

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Confissões do crematório https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/21/confissoes-do-crematorio/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/21/confissoes-do-crematorio/#respond Sun, 21 Aug 2016 12:58:24 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/Crematório-Caitlin01-2-180x99.png http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1075 A norte-americana Caitlin Doughty abraçou uma missão: desmitificar o tabu da morte. Com seu canal no YouTube, o “Ask a Mortician”, ela apresenta vídeos curiosos sobre a indústria da morte usando humor afiado e sagacidade. E usa a escrita para apresentar o leitor a um setor pouco conhecido do público em geral – os bastidores da morte.

Seu livro, “Confissões do Crematório” (ed. Darkside, 2016), lançado recentemente no Brasil, é uma compilação de casos reais vividos durante seus primeiros seis anos trabalhando em um crematório nos Estados Unidos.

Doughty não pisa em ovos. Ela destrincha os tópicos mais mórbidos de forma bem direta. Conta sobre um bebê que precisou raspar a cabeça (pois a família queria guardar o cabelo de lembrança), e atividades como lubrificar uma mão para tirar a aliança, remover marca-passos para não explodirem no forno crematório, moer ossos em um liquidificador de metal, inserir tampas espinhosas embaixo das pálpebras para os olhos ficarem fechados e barbear mortos. São ações que incitam um dilema comum aos trabalhadores desse ramo: “Eu não tinha certeza se Byron era um ‛ser’ ou uma ‛coisa’ (um corpo), mas parecia que eu devia ao menos saber o nome dele para executar um procedimento tão íntimo”, escreve.

A autora oferece uma revisão histórica da morte, como o surgimento do embalsamamento, da cremação, dos cemitérios modernos, a higienização do processo do morrer com a transferência dos moribundos de casas para hospitais, os ritos fúnebres nas diversas culturas – a tribo brasileira Wari que comia seus mortos, os budistas tibetanos que deixam os corpos ao ar livre para serem devorados por entidades celestiais (os urubus) e o costume fúnebre da ilha de Java, na Indonésia, de abraçar e lavar cadáveres.

Ela relaciona o tabu da morte com o do sexo: “Enquanto o sexo e a sexualidade eram o tabu central do período vitoriano, a morte e o morrer são o tabu do mundo moderno”. E cita o antropólogo britânico Geoffrey Gorer, “nossos bisavós ouviram que os bebês eram encontrados embaixo de arbustos de groelha ou de repolhos; nossos filhos provavelmente vão ouvir que os que faleceram (…) viram flores ou descansam em lindos jardins”.

O envolvimento profissional de Doughty com a morte surgiu da tentativa de superação de um trauma de infância. Aos oito anos, ela presenciou uma garotinha cair para fora da escada rolante de um shopping center. Doughty diz ter se traumatizado por nunca ter tido contato com a morte antes desse evento. Após o trabalho no crematório, ela cursou uma faculdade funerária em São Francisco e chegou à conclusão de que “quanto mais eu aprendia sobre a morte e a indústria da morte, mais a ideia de outra pessoa cuidando dos cadáveres da minha família me apavorava”. Essa consciência a estimulou a fundar sua própria casa funerária, a “Undertaking LA”.

Consciência funerária

Em entrevista à Folha, Doughty conta que a “Undertaking LA” é a única casa funerária sem fins lucrativos de Los Angeles, e afirma se preocupar em envolver as famílias nos cuidados com seus mortos. Ela organiza, por exemplo, workshops para os clientes saberem o que exatamente é feito com os cadáveres.

“Eu não concordo com os funcionários do ramo (tanatopraxistas, patologistas, funcionários do crematório) somente lidarem com os corpos mas nunca com suas famílias. Se você ignorar os vivos, a família enlutada, você pode perder de vista o fato de que cada corpo representa um ser humano com uma história”, conta.

Doughty relaciona os problemas da sociedade moderna com uma cultura que ela considera negar a morte: “Se não podemos aceitar que vamos morrer, não vamos aceitar que estamos matando o planeta. Não iremos aceitar que estamos destruindo espécies. E acabamos aceitando certos atos de guerra, terror e violência. Se a morte não é real para nós, vamos permitir que essas coisas continuem acontecendo”.

Agora, Doughty trabalha em seu próximo livro: sobre como revolucionar o setor funerário e define uma epígrafe para si: “Ela morreu fazendo o que amava: a morte”.

OBS: Esse texto foi publicado na “Ilustrada” em 20.08

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Depoimento de Nina Maluf – tanatopraxista e professora do setor funerário https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/12/21/depoimento-de-nina-maluf-tanatopraxista-e-professora-do-setor-funerario/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/12/21/depoimento-de-nina-maluf-tanatopraxista-e-professora-do-setor-funerario/#respond Mon, 21 Dec 2015 11:46:32 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=793 Nina Maluf atua nos bastidores da morte. Oferece cursos na sua área de atuação, tanatologia, necromaquiagem e reconstrução facial – seu predileto. Mãe de quatro filhos, trabalha em casa e acha natural ver as crianças brincando de “enterrar”.  Diz que  o assunto deve ser tratado com naturalidade e a cultura do preconceito com a morte, no Brasil, gera uma carência de bons profissionais. “O que é a morte para mim? Ah, a morte é minha amiga”, diz.

Depoimento de Nina Maluf  publicada hoje na Folha.

Minha História

Quem sou eu? Eu sou uma mãe de quatro filhos que trabalha em casa. Só saio para os atendimentos em laboratórios e em velórios e para dar os cursos da minha escola, a Tanathology. São cursos para o Brasil inteiro sobre o primeiro contato com a família do morto, o preparo do corpo, necromaquiagem, reconstrução facial e tanatopraxia – que é o processo de conservação do corpo para velórios e translados. Os cursos são feitos por pessoas leigas que querem entrar no setor funerário e por profissionais que já atuam na área. Não há pré-requisitos, mas quem quiser trabalhar em uma agência funerária precisa ter o ensino médio completo.

O que eu mais gosto de fazer é reconstrução facial. Pegar um cara bem destruidão e deixar ele igual ao que era. Como em casos de acidentes de carro e de moto. Eu gosto do desafio de pegar uma pessoa que, teoricamente, não teria mais condições de ter um caixão aberto e poder oferecer isso para a família.

O assunto em casa é morte de manhã, à tarde e à noite. Até porque meu marido trabalha comigo. Às vezes eu chego e minha pequena de seis anos pergunta: ‘mãe, quantos corpos você fez hoje?’. A primeira vez que ela perguntou eu assustei, mas agora acostumei.

Eu faço uma terapia de choque com o meu mais velho (de 13 anos), mostrando casos de overdose ou de alcoolismo. Meu caçula de três anos brinca de enterrar. Ele coloca os irmãos no chão e enterra com travesseiros. Já peguei minha filha mexendo no computador, com o telefone na orelha brincando de atender cliente, perguntando: ‘que horas vai ser o velório?’. Na cabeça deles é tudo muito normal e eu quero que continue assim.

Leia entrevista com Fininho – um coveiro formado em filosofia

Minha paixão em lecionar é formar profissionais que sejam humanos. Eu busco qualidade, e qualidade é a humanização. É você ter paciência com seu cliente, saber explicar o procedimento para ele, saber vender um serviço sem ser agressivo. Tem muita gente que destrata as famílias e os corpos.

No primeiro dia de aula eu falo para quem quiser ouvir: ‘se você está aqui por dinheiro, a porta da rua é a serventia da casa’. Tem que estar lá por amor à profissão, querendo e gostando desse serviço. Quem chega por grana não vai aguentar a barra. Vai entrar para o álcool, que é muito comum, ou não vai aguentar a carga horária e partir para outras drogas, como a cocaína. Só o amor pelo trabalho é o que vai manter as pessoas minimamente sãs. Pegar o corpo de uma criança, por exemplo, é devastador. Criança saudável só morre por irresponsabilidade de adulto. Eu não estou aqui para julgar, mas não tem como não ligar.

Nosso setor foi um dos poucos que não foi atingido pela crise. As pessoas continuam morrendo, elas não têm escolha. É um mercado que tem crescido porque os empresários estão começando a sentir a necessidade de mostrar que nosso setor é necessário. Na Europa, somos muito valorizados. As crianças são criadas para entender que as pessoas nascem, vivem e morrem. No Brasil, existe a cultura do preconceito com a morte. Isso gera uma carência de bons profissionais.

Desde pequeninha, eu era meio Wandinha, aquela personagem da Família Addams. Quando morria algum bicho no bairro, de peixe a cachorro, me chamavam no portão para eu organizar o enterro. Eu fazia velório, cortejo e enterro. Hoje, meus vizinhos, uma boa parte deles, têm medo de mim. Uns me acham louca, outros falam que eu tenho o cão no corpo. Eles têm medo de morrer, medo da morte, acham tudo isso muito esquisito.

Eu não tenho medo da morte em si, mas sim de deixar meus filhos sozinhos nesse mundo cada vez mais louco. Vejo as pessoas morrendo das formas mais estúpidas e gente fazendo maldade de forma gratuita. Hoje em dia se fala em crime passional como se fosse algo normal. É uma justificativa jurídica que dão para uma atrocidade que não tem justificativa. Muita mulher, no desespero de ter um parceiro, coloca qualquer um em casa, que machuca ela e as crianças. O número de casos com esse tipo de descrição é assustador e eu vejo no trabalho que eles têm crescido.

O que é a morte para mim? Ah, a morte é minha amiga.

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Nina Maluf. Moacyr Lopes Junior/Folhapress
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Para que serve um cadáver https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/07/04/para-que-serve-um-cadaver/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/07/04/para-que-serve-um-cadaver/#respond Sat, 04 Jul 2015 12:45:20 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=573  

A morte é universal demais para ser tratada com tanto recalque. A jornalista norte-americana Mary Roach não tem papas na língua ao mergulhar no universo dos cadáveres e suas contribuições para o progresso da humanidade. É o tema de seu primeiro livro “Curiosidade Mórbida: a Ciência e a Vida Secreta dos Cadáveres” (ed. Paralela, 2015), escrito em 2003 mas editado pela primeira vez no Brasil apenas neste ano.

Escritora de livros de não-ficção, Roach é reconhecida por best-sellers que exploram o curioso e o inóspito sobre o corpo humano. Suas marcas são o humor e a audácia em se colocar nos ambientes mais bizarros para sua pesquisa e até mesmo se oferecer como cobaia, como fez para o livro “Bonk – The Curious Coupling of Science and Sex” (“O Curioso Acasalamento da Ciência com o Sexo”, em tradução livre), em que fez sexo com seu marido dentro de uma máquina de ressonância magnética.

“Posso me considerar uma jornalista que age em nome da ciência”, diz Roach numa entrevista à Folha. Ela afirma não ter esperado a popularidade de um livro sobre cadáveres, que acabou tornando-se um New York Times best-seller e traduzido para mais de 17 línguas.

Roach conta ter estranhado a demora da publicação no Brasil (12 anos), o que considera sinalizar uma possível resistência da nossa sociedade. “Cada cultura tem uma linha do tempo diferente para quebrar tabus, seja relacionado ao sexo, à morte ou à raça, e poder olhá-los por uma perspectiva científica ao invés de religiosa ou emocional”, diz.

Em um ano de pesquisa, ela acompanhou, por exemplo, cadáveres serem cobaias em simuladores de acidentes de carro, experimentos que contribuíram para a indústria automobilística analisar quanta força um corpo humano real pode suportar e fazer carros mais seguros. O para-brisa, o airbag e o cinto de segurança de três pontos são frutos de pesquisas como essas. Também viu cadáveres serem cobaias de testes balísticos, usados para o desenvolvimento de armas e coletes à prova de balas mais resistentes. Os corpos eram de pessoas que o doaram para a ciência e a família normalmente não recebe um retorno sobre o uso específico que ele terá.

É comum serem apresentados em pedaços, o que ajudava Roach no que chamou de “coisificação” dos mortos para poder conviver com eles. “Os pesquisadores britânicos sabem o que os açougueiros já sabiam de longa data: se você quer que as pessoas fiquem a vontade diante de corpos, divida-os em pedaços”, escreve.

Ela conta na entrevista não ter encontrado um uso de cadáver que parecesse imoral. “Nada me chocou, foi o contrário. Eu esperava ter estranhado o treinamento de cirurgiões plásticos nas cabeças humanas, por exemplo. Cheguei a questionar se era possível justificar o uso delas para esse propósito. Mas chegando lá no seminário (onde o treinamento ocorreu), percebi que há uma importância por trás disso. As cirurgias plásticas e a reconstrução facial são uma realidade, precisam ser bem feitas, sem danos aos vivos”.

No entanto, afirma discordar da venda de restos mortais por crematórios no mercado negro. Mas essa questão não foi incluída no livro. Ela optou por focar na dificuldade de obtenção de corpos para dissecação em estudos da anatomia humana, o que levava a roubos de cadáveres e a assassinatos. “Nesse caso, havia uma necessidade, porque era preciso estudar o corpo humano para a evolução da medicina. Não era motivado por ganância, mas sim pelo desejo do aprendizado”, diz.

A dissecação para estudos da anatomia humana começou em Alexandria, por volta de 300 a.C, com um decreto real de Ptolomeu I estimulando médicos a dissecar corpos de criminosos executados. Havia uma familiaridade com o processo devido à tradição das mumificações no Egito. Com a chegada do Cristianismo, ela passou a ser vista como uma penalidade pior do que a morte. A escassez de corpos levava certas escolas de medicina na Escócia do século 18, por exemplo, a aceitar o pagamento do curso com corpos ao invés de dinheiro – informação oferecida numa nota de rodapé, uma marca da autora em todos os seus cinco livros. Essa área da medicina acabou evoluindo na clandestinidade e só passou a ser aceita e legalizada no século passado.

A fazenda de corpos, expressão usada por Roach para se referir a um laboratório a céu aberto no Tennessee para o estudo da decomposição humana (e único no mundo) – é um exemplo de sua preocupação com a forma de apresentar uma situação. “Procurei não ser tão cruel na descrição, e mais cuidadosa na forma como apresentar a cena”, conta.

Os estudos sobre a decomposição humana oferecem resultados úteis para a compreensão de como definir com maior precisão a hora da morte de alguém, vantajoso em investigações de assassinatos, por exemplo.

A pedido da sua editora, manteve o capítulo sobre a análise de ferimentos de vítimas de acidentes aéreos para a compreensão de como e por que ocorreram. “Eu temia que que as famílias das vítimas dos acidentes mencionados se ofendessem. Todos os outros corpos são anônimos, mas esses não. São passageiros do voo 800 da TWA”, explica.

Ela afirma ter visto pouca mudança sobre o tema do livro desde que o escreveu. “As pessoas não mudam rápido no que se refere à morte”, diz oferecendo como exemplo a demora da aceitação da cremação como uma alternativa ao enterro. E esperava que a pesquisa sobre compostagem humana que acompanhou na Suécia, e detalhou num dos capítulos, tivesse conquistado mais espaço nesses doze anos. “Porque os leitores gostaram muito da ideia de sermos reduzidos a moléculas e devolvidos à natureza. Hoje em dia se pode fazer um enterro verde (sem caixão), mas não a compostagem”.

Devido ao sucesso do livro, Roach conta ter achado que ele estimularia um aumento de doações de corpos e órgãos. “Tive a fantasia de pensar que o livro poderia influenciar mudanças políticas, como usar condutas existentes na Europa, onde a doação do corpo para a ciência é um pressuposto e não ocorrerá se você especificar que não a deseja”. Nos Estados Unidos (e no Brasil) o caminho é inverso – a doação deve ser autorizada, o que diminui sua incidência, segundo Roach.

No livro, presenciar uma cirurgia de doação de órgãos leva Roach a refletir sobre a definição de morte já que o coração é retirado pulsando do doador. “Quando você põe a mão sobre o coração, sente uma pulsação leve mas basicamente estática, como os dedos de uma mão tamborilando o código Morse no tampo da mesa”, escreve. E aproveita o embalo para fazer uma humorística revisão histórica sobre os métodos de se constatar a morte, como o jogo de pinças de mamilos para reanimação e os necrotérios de espera, muito comuns na Alemanha do século 19 – aonde os mortos eram levados antes do enterro, para evitar o sepultamento de vivos.

Roach também discorre sobre o uso de restos humanos para fins farmacêuticos, passando por Egito, Roma, Arábia do século 12, França e Alemanha do século 18. Do coliseu que vendia sangue dos gladiadores para curar epilepsia, aos dias atuais com chineses consumindo pílulas para tratamentos de pele que contem traços de fetos humanos abortados – recolhidos por uma empresa controlada pelo Ministério da Saúde chinês. Ela conclui que a medicina cadavérica – da mesma forma que a diversidade culinária entre as culturas – é antes de tudo uma questão de hábito.

Ela diz que gostaria de doar seu corpo para dissecação ou para pesquisa, mas ainda não formalizou o desejo. “O que pode refletir meu próprio desconforto com a morte”, conclui na entrevista.

OBS: artigo publicado no caderno Saúde +Ciência da Folha, em 4 de julho de 2015.

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A autópsia é obrigatória? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/05/20/a-autopsia-e-obrigatoria/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/05/20/a-autopsia-e-obrigatoria/#respond Wed, 20 May 2015 11:10:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=518 É incômodo pensar no corpo de alguém que amamos todo recortado por uma autópsia. Não queremos que nos esfaqueiem nem em vida nem na morte, não importa se digam que o cérebro está desligado depois que morremos e não existe sistema nervoso central sem ele, ou seja, não existe dor. Mas a primeira indagação científica sobre haver consciência após a morte ou não já estremece as bases e aquele bisturi indagador pode ficar quietinho lá na caixinha dele.

Em algumas situações não haverá escolha, porque a autópsia pode ser obrigatória.

Há duas maneiras de morrer. Ou você morre do que é chamado de causa natural, que são doenças como câncer, infarto, derrames, doenças infecciosas como Aids e dengue, enfim, todas essas palavras arrepiantes. Ou você morre de causa externa, que são acidentes e violência, como acidentes de carro, homicídios com arma de fogo, acidentes de trabalho e até quedas acidentais, como o vovô tropeçando na calçada. Ou seja, esse lado também não é nada atrativo e como as opções terminaram, não existe mesmo maneira fácil de morrer. Bom, também não tem jeito fácil de nascer, então a trajetória da raça humana está super coerente consigo mesma.

Nas causas naturais, o corpo é considerado da família, então ela pode escolher sobre a autópsia ou não. Mas há a necessidade de uma declaração de óbito preenchida por um médico que estivesse acompanhando o paciente, ou que seja um médico conhecido da família. Essa declaração é necessária tanto para mortes ocorridas no hospital quanto em casa. Se o diagnóstico estiver esclarecido, não precisa fazer autópsia. Se a causa não estiver esclarecida, o médico provavelmente não assinará a declaração de óbito e pedirá uma autópsia. Ele pode assinar como causa indeterminada e assim não haver a autópsia, mas isso só ocorre em cidades onde não existe o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), como ocorre na maior parte das cidades do Brasil. Há o IML (Instituto Médico Legal – para causas externas) mas não o SVO, que faz autópsia nas causas naturais.

Nas causas externas, há a necessidade de uma apuração jurídica, com a abertura de um inquérito. Obrigatoriamente, em todo óbito de causa externa, a autópsia é obrigatória, então a família não decide sobre ela. O corpo é considerado do Estado e será encaminhado ao IML. A autópsia é feita pelo legista, que é um perito oficial, concursado e funcionário do Estado.

No SVO, a autópsia é feita pelos médicos contratados do SVO, não há a necessidade de peritos, como no IML. A maioria dos SVOs são uma autarquia, pertencem metade à prefeitura e metade ao setor privado, por isso ele acaba só existindo em cidades grandes que têm mais recursos para mobilizar a estrutura de um SVO, como São Paulo e Campinas.

O preenchimento da declaração de óbito é tema de discussão nos Conselhos de Medicina para evitar erros que possam prejudicar as famílias e as estatísticas baseadas neles. Desde 1976, ele é padronizado em todo território nacional. Na publicação do Ministério da Saúde: “A Declaração de Óbito: documento necessário e importante”, afirma-se na apresentação: “Nós médicos somos educados para valorizar e defender a vida. Sempre nos ensinaram que a morte é a nossa principal inimiga, contra a qual devemos envidar todos os nossos esforços. Esse raciocínio reducionista, porém real; equivocado, porém difundido, é fonte de incontáveis prejuízos para as pessoas. A morte não é a falência da medicina ou dos médicos. Ela é apenas uma parte do ciclo da vida”.

Fonte: entrevista com Dr. Paulo Newton Danzi Salvia, médico legista do IML de Campinas e professor da Unicamp.

Atualização em 20/05, 14h : Dr. Paulo informou que o termo autópsia também pode ser usado como necrópsia. Eles são sinônimos.

Atualização em 21/05: Recebi um email do médico geriatra Dr. André Filipi Junqueira dos Santos com considerações importantes sobre esse post. Achei interessante compartilha-lo. Segue, abaixo.

   ” Olá Camila, Tudo bem? Gostaria de acrescentar algumas considerações ao post “A autópsia é obrigatória?”. Uma curiosidade semântica: alguns autores consideram usar a palavra autópsia quando a pessoa fala sobre o procedimento em si mesmo (fizeram um autópsia em meu fígado, por exemplo. Nesse caso,  a palavra autópsia é usada no sentido de biópsia).  Necrópsia seria utilizada quando o procedimento é feito por uma pessoa em outra pessoa (fizeram uma necrópsia no fígado dele, por exemplo). Mas na prática pode-se usar os dois termos. Outro ponto que gostaria de acrescentar é que a Declaração de Óbito deve ser preenchida por um médico assistente, ou seja, alguém que estava dando assistência à pessoa que faleceu e conhece seu caso. Porém, esta figura médica tem desaparecido com o crescimento de serviços de saúde, tanto no âmbito público quanto no particular. Hoje, muitas pessoas não falam que são acompanhadas por um médico específico, mas sim por uma área de um hospital, como o Serviço de Oncologia do Hospital Sírio Libanês, por exemplo. Geralmente, estas pessoas são atendidas por médicos residentes ou médico contratados, em um sistema de rotação. E pode acontecer da pessoa falecer em casa ou em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), sem estar no serviço de referência. É aí que a complicação começa para o preenchimento da declaração do óbito, pois muitas vezes os familiares não tem contato com o médico do serviço de referência (especialmente se for durante a semana a noite ou no final de semana) e os médicos que constatam o óbito (seja do SAMU ou da UPA) se recusam a preencher o documento alegando que não estavam acompanhando o caso daquela pessoa. Então, surge o pior desfecho possível: o corpo da pessoa é encaminhado ao SVO para uma necrópsia e confirmar o fato óbvio (por exemplo: morte por câncer em fase avançada). Já vi estas situações muitas vezes – de famílias angustiadas pelo fato do ente querido estar morto e passarem pela angústia de um procedimento inútil (uma necrópsia para identificar uma causa já documentada), pois nenhum médico quis assinar o documento. Atualmente, aqui no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, estamos discutindo uma maneira de preencher a declaração de óbito de pacientes que são acompanhados pelo Hospital, mas morrem fora do mesmo, numa situação relacionada à doença, porém sem acompanhamento da equipe. É uma particularidade do sistema, mas muito perversa.
Abraços, André”.

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Quer saber como é feita uma autópsia? Veja no post “Visita ao Necrotério”.

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Quadro “Raízes” (1943) de Frida Kahlo
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Por uma autópsia menos invasiva – aprendendo com os mortos https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/03/12/por-uma-autopsia-menos-invasiva-aprendendo-com-os-mortos/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/03/12/por-uma-autopsia-menos-invasiva-aprendendo-com-os-mortos/#respond Thu, 12 Mar 2015 18:30:08 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=418 No post “Visita ao Necrotério”, descrevo um dia inusitado. É a visita ao Instituto Médico Legal (IML) de Campinas e o acompanhamento de três autópsias. Minhas percepções vão além de uma descrição técnica e até hoje me pego refletindo sobre aquele momento. Mas uma constatação inegável é a de que a autópsia é um procedimento altamente invasivo. Há cortes, sangue e, claro, órgãos, muitos deles. Posando como fruta passada na feira, aguardando a inspeção do médico legista que fará suas investigações para encontrar o que levou aquele corpo a parar de funcionar (veja o post “Oração ao Cadáver Desconhecido” sobre esse tema).

Nessa sexta feira, 13 de março, será inaugurado um novo laboratório (research facility) na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), batizado de PISA (Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia). Seus 500 metros quadrados subterrâneos contam com a presença de uma máquina chamada “Magnetom 7T MRI”. É um aparelho de ressonância magnética, inédito na América Latina segundo a instituição, que será usado para estudar cadáveres. A pesquisa tem o objetivo de desenvolver técnicas alternativas para a identificação da causa da morte e assim, proporcionar uma autópsia menos invasiva.

Outro objetivo é o de ajudar os vivos, na medida em que se propõe a contribuir no entendimento e progresso  no tratamento de doenças. Por isso a matéria que serviu de fonte para esse post foi intitulada de “A morte explica a vida”, da agência FATESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Ela cita uma entrevista com o Dr. Paulo Hilário Saldiva, professor titular de Patologia da FM-USP. Ele diz que o estudo é muito importante no entendimento de doenças porque algumas patologias são mais difíceis de estudar enquanto o paciente estiver vivo, já que a retirada de tecidos pode trazer riscos. O professor cita a necessidade de trabalhar com a família a “doação de conhecimento” para aprovação dos exames.

Saldiva está à frente de um projeto chamado “Brazilian Imaging and Autopsy Study (Bias)”, criado para investigar métodos alternativos às autópsias atuais, com base em diagnósticos por imagem.

A matéria cita uma pesquisa que indicou que a taxa de erro na definição da causa da morte nos atestados de óbitos  chega a 20%. O uso desses equipamentos, voltados ao estudo em cadáveres, pode ajudar a diminuir essa margem de erro, com o que é chamado de “estudos comparativos” para aprendizado. Pode-se comparar os resultados da autópsia feita por exames de imagens com uma invasiva tradicional, por exemplo.

As novas técnicas para autópsia também podem tornar essa área do conhecimento mais atraente aos médicos, contribuindo para o aumento do número de salas de autópsias em hospitais e de patologistas. E assim, desenvolver melhor esse campo pouco explorado pela ciência e usarmos nossa inteligência para buscar aprender com os mortos, ao invés de simplesmente descartá-los. Me parece digno.

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3d render of CT Scanner on digital background. Foto: bluebay2014 – Fotolia
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Técnicas de conservação do corpo https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/02/13/tecnicas-de-conservacao-do-corpo/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/02/13/tecnicas-de-conservacao-do-corpo/#respond Fri, 13 Feb 2015 13:20:12 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=349 Quando morremos, o corpo humano inicia um processo natural de decomposição chamado autólise. Ele começa a nível celular, passando para as vísceras (órgãos), principalmente na região abdominal, e depois para os demais tecidos.

As técnicas de conservação do corpo existem para retardar esse processo. Em alguns casos, elas são obrigatórias, em outros, uma alternativa para fins estéticos. Cabe à família escolher se deseja fazer uso delas ou não e qual técnica usar. É interessante saber o que há por aí e como funciona, para poder ter um pouquinho mais de conhecimento na hora de tomar uma decisão tão estranha como essa, justo no momento em que estamos menos dispostos a isso.

Erivelto Luis Chacon, médico legista, diretor da SETEC (Serviços Técnicos Gerais da Prefeitura de Campinas) e professor de anatomia na Faculdade de Medicina de Jundiaí, me passou as informações abaixo.

“Embalsamamento” é um termo genérico para se referir a algum método de conservação de cadáver, já que hoje existem vários, como: Formolização, Embalsamamento Nacional, Embalsamamento Internacional e Tanatopraxia. São considerados tecnicamente como “serviço de somatoconservação de cadáveres”, previstos na Resolução SS – 28, de 25/02/2013 da Secretária de Estado da Saúde de São Paulo.

A técnica mais apropriada a ser empregada depende dos seguintes fatores:

1-) A causa da morte;

2-) O tempo que vai decorrer entre o falecimento e o sepultamento;

3-) No caso de transporte por via terrestre a outras cidades, a distância que será percorrida;

4-) No caso de transporte aéreo nacional em aeronave de passageiros ou comercial ou especialmente fretada. A legislação obriga que o cadáver seja embalsamado.

5-) No caso  de transporte aéreo internacional em aeronave de passageiros ou comercial ou especialmente fretada e/ou transporte marítimo. A legislação obriga que o cadáver seja embalsamado por uma técnica reconhecida pelas convenções internacionais (Processo Espanhol de Embalsamamento).

Algumas causas de morte têm recomendação específica por embalsamamento, como as por doenças que geram grande acúmulo de líquido no corpo, (insuficiência hepática, cirrose hepática, insuficiência renal aguda, entre outras), alguns tipos de câncer que causam a necrose dos tecidos e o diabetes em estágio avançado, quando se tem a necrose “gangrena” das extremidades.

Algumas mortes por causas externas, como acidentes, queimaduras e afogamentos também recebem a indicação de passar por um processo de embalsamamento, independente da técnica, caso contrário, o cadáver estará rapidamente exalando mau cheiro e/ou apresentando transformação cadavérica (inchaço, esverdeamento do tegumento, extravasamento de líquidos corpóreos, etc.).

A conservação do corpo também pode ser requerida pela família por uma questão estética, pois deixa o cadáver com uma aparência serena, como se estivesse dormindo, sem algumas das características de morte como a cianose (coloração azul-arroxeada da pele) em especial na face e nas pontas dos dedos. A tanatopraxia deixa a pele levemente rosada, hidratada, sem a rigidez cadavérica, permitindo moldar-se a face para que perca o aspecto de dor.

Segue uma breve descrição de cada técnica.

Formolização:

A “Formolização Simples” consiste em aplicação de múltiplas injeções de formol (formaldeído na concentração de 10%) nas grandes massas musculares. Isso resguarda o cadáver em velório ou transporte terrestre a curta distância por aproximadamente 24 horas após a morte.

Embalsamamento:

O “Embalsamamento Nacional” consiste na abertura das cavidades craniana e toracoabdominal com a remoção de todos os órgãos e vísceras. Preenche-se as cavidades com serragem embebida em  formol (formaldeído na concentração de 10%). Também se aplica múltiplas injeções de formol nas grandes massas musculares. Essa técnica resguarda o cadáver em velório ou para transporte terrestre acima de 500 km,  ou transporte aéreo por aproximadamente 36 horas após a morte.

O “Embalsamamento Internacional” consiste na infusão de formol no sistema arterial e drenagem do sangue pelo sistema venoso. Após esse procedimento, realiza-se a abertura das cavidades craniana e a toraco-abdominal com a remoção de todos os órgãos e vísceras e as preenche-se com serragem misturado a uma série de produtos químicos, denominada “Fórmula A”. Após a reconstituição do cadáver, ele é banhado com álcool canforado. Em seguida, prepara-se um acolchoado no fundo da urna mortuária com uma outra série de produtos químicos denominada “Fórmula B”.

Essas duas fórmulas, quando ativadas, exalam um gás conservante no interior da urna, não permitindo que o cadáver entre novamente no processo de decomposição. Para isso, a urna mortuária zincada é hermeticamente soldada. Esse procedimento resguarda o cadáver em velório ou para transporte terrestre a longas distâncias, ou principalmente para transporte aéreo internacional por mais de 15 dias após a morte.

Tanatopraxia

É uma técnica relativamente nova. Está no Brasil desde 1994 e é considerada uma arte conservativa e restaurativa de cadáver. Ela consiste na infusão, através de um equipamento próprio chamado “Bomba Injetora”, que injeta um líquido conservante no sistema arterial do cadáver e faz a drenagem do sangue pelo sistema venoso. Assim, não há necessidade de abertura das cavidades corpóreas para a remoção dos órgãos e vísceras.

Após o término da injeção, aplica-se com um trocater introduzido na cavidade abdominal, um outro produto conservante que vai atingir internamente a cavidade torácica, abdominal e pélvica. Associada a essa técnica, realiza-se, quando necessário, a reconstituição cadavérica utilizando-se massas, ceras, peles artificiais ou a colocação de próteses. Quando o cadáver está íntegro, pode-se apenas aplicar a necromaquiagem. Esse procedimento resguarda o cadáver para velório ou para transporte terrestre para pequenas e longas distâncias, ou para transporte aéreo nacional. O tempo de conservação do cadáver é determinado pela concentração dos líquidos conservantes. Quanto menos diluído, maior o tempo de conservação pós-morte.

Liguei numa empresa especializada em tanatopraxia que me informou o custo de R$ 1450,00 para um procedimento de duas a três horas que resgarda o corpo por 72h (impede sua decomposição até 72h após a morte). Eles não recomendam a formolização por ser irregular (realizada em espaços inadequados) e não oferecer garantia, apesar de ser mais barata. Outra empresa me informou o custo de R$ 1000,00 mais R$ 100 para a necromaquiagem. Eles também não recomendam a formolização, por já ser uma técnica ultrapassada e com restrições na Anvisa. Essa empresa disse que se o corpo estiver necropsiado, o procedimento sugerido é o embalsamamento. Se não, eles indicam a tanatopraxia, por deixar o rosto com uma aparência mais serena, e os dois procedimentos têm o mesmo custo. Uma terceira empresa me passou o valor de R$ 500,00, o que dá a atender estarmos lidando com um setor um tanto quanto instável.

Existem ainda técnicas de conservação de cadáveres utilizados para fins didáticos, como para uso em aulas práticas de anatomia humana. Pode-se usar o embalsamamento, a glicerinização e, atualmente, a técnica mais moderna é a plastinação – em que  as peças cadavéricas ficam parecendo plastificadas, pois se utiliza materiais plásticos como silicone, resina de epóxi e poliéster. A plastinação foi desenvolvida pelo anatomista Alemão Prof. Gunther von Hagens e usada para exposições como “Fantástico Corpo Humano” e “Human Bodies”. Veja um passo a passo dessa técnica aqui (em inglês).

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Leia mais sobre esse tema nos posts: “Enterrar ou cremar?” e “O que você quer ser quando morrer”.

Interessado em entender como funciona uma autópsia? Veja em “Visita ao necrotério”.

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Exposição Human Bodies, 2012. Foto: divulgação.
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Oração ao cadáver desconhecido https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/01/05/oracao-ao-cadaver-desconhecido/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/01/05/oracao-ao-cadaver-desconhecido/#respond Mon, 05 Jan 2015 15:14:35 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=243 A “Oração ao cadáver desconhecido” é normalmente exposta na entrada das salas de aula de anatomia. Estudantes de medicina são encorajados a lerem-na antes de uma autópsia. É o que me contou o doutor André Filipe Junqueira dos Santos, médico geriatra do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.

A partir do depoimento dele, achei interessante compartilhar o ponto de vista de dois médicos sobre a autópsia, complementando a minha visão exposta no post “Visita ao Necrotério”. Segue, abaixo, o depoimento do Dr. André e logo em seguida uma conversa com dr. Paulo Danzi Salvia, que me acompanhou na visita.

“Ao ler o seu post e seu primeiro contato com um cadáver, lembrei-me de minhas aulas de anatomia. Estas aulas acontecem nos primeiros anos do curso de medicina e de outras faculdades de saúde (enfermagem, odontologia). Para muitos alunos é a primeiro contato com uma pessoa morta, pois alguns nunca foram a um velório ou viram um morto em outra condição (reflexo atual de nossa sociedade em esconder a morte). Como a maioria dos alunos tem menos de 20 anos de idade neste momento, existem muitas fantasias e receios em participar desta aula. Na entrada do laboratório de anatomia de minha faculdade, existe uma oração ao cadáver desconhecido, a qual um professor de anatomia solicitava sempre que lêssemos antes de entrar nas aulas. Esta oração e outras atitudes que ele cobrava durante as aulas, foram as primeiras lições que tive para como auxiliar alguém em situação de vulnerabilidade, pois respeitar o cadáver é um passo fundamental para entender a vida e sua fragilidade e com isso respeitar o próximo, quanto ele se encontrar vivo e doente. Ainda hoje, apesar de todo recurso tecnológico existente, a causa da morte só é descoberta após uma necropsia. A anatomia e o estudo dos cadáveres é um tema de grande fascínio na medicina ao longo dos séculos. A história da anatomia conta com a contribuição de grandes artistas, como Leonardo da Vinci, Rembrandt e outros”.

Leonardo da Vinci (1452-1519) foi pioneiro do registro da anatomia do corpo humano. O livro “Os Cadernos Anatômicos de Leonardo da Vinci” (Ateliê editorial, 2012), reproduz 1200 desenhos anatômicos do artista. “No Renascimento, artistas como Leonardo aproximaram-se de médicos-anatomistas para retratar melhor a forma humana em pinturas e esculturas. Eles foram chamados de “artistas-anatomistas”, segundo Charles O’Malley (Universidade de Stanford)”, como diz o artigo “Leonardo da Vinci, o Desbravador do Corpo Humano”.

Para entender o impacto de uma autópsia, dr. André indica o livro “O Físico” de Noah Gordon, que se passa na Idade Média, quando a Igreja Católica proibia o procedimento. “Há uma cena em que o protagonista participa pela primeira vez, de forma secreta, de uma autópsia e fica maravilhado com ver o corpo humano por dentro, em uma época que o conhecimento médico era muito limitado”, ele diz.

“O Físico” teve uma adaptação recente para o cinema (estreou em outubro de 2014 no Brasil). Veja uma crítica da Folha aqui.

Segue, abaixo, a “Oração ao Cadáver Desconhecido”.

“Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que em seu seio o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a humanidade que por ele passou indiferente.” Karl Rokitansky (1876)

http://www.rembrandthuis.nl/en/rembrandt/belangrijkste-werken/de-anatomische-les-van-dr-nicolaes-tulp
“A Lição de Anatomia do Dr.Pulp”. Óleo sobre tela. Rembrandt, 1632.

Dr. Paulo Danzi Salvia, médico legista e professor de medicina legal na Unicamp, que me acompanhou na visita ao necrotério, diz ter um olhar técnico e o pensamento voltado para critérios científicos, ao acompanhar uma autópsia. Ele vê o corpo como uma máquina, comparação herdada de sua criação, pois seu pai consertava televisores e rádios e Dr. Paulo cresceu observando o pai “dissecando esses instrumentos”, como ele colocou.

Se tinha algum defeito na imagem da TV por exemplo, era necessário abri-la e investigar o problema, medindo as voltagens das resistências. Esse meio investigativo foi decisivo para a decisão de sua profissão. “O corpo, como a máquina, precisa de um equilíbrio, quando ocorre um desequilíbrio e uma peça não funciona direito, você busca consertá-la, quando esse desequilíbrio é muito grande, o organismo não dá conta e morre. Aí, inicia-se a busca de o motivo do corpo ter parado de funcionar.  Às vezes, a causa é evidente, mas há muitos casos em que ela não é”, ele diz.

Será evidente, por exemplo, quando é possível observar o defeito diretamente no órgão e ele ter sido responsável pela morte da pessoa, como acontece nos casos de cirrose, cardiomegalia por hipertensão que pode levar a um infarto, ou quando se observa um rompimento de uma artéria cerebral que levou ao acidente vascular cerebral. No caso do IML (Instituto Médico Legal), para onde vão os corpos mortos por causas externas, é comum ter-se causas evidentes, como ferimentos causados por acidentes com arma de fogo ou trauma craniano por queda de moto.

Quando a causa não é evidente, é necessário investigar. Envenenamentos ou intoxicação por excesso de remédios podem não deixar vestígios claros.

Dr. Paulo também gosta dos aspectos simbólicos da autópsia. A morte não existe, mas sim os medos relacionados a ela e a dor da perda, “são os símbolos da morte que mobilizam a humanidade”, ele diz. Ele é encantado pelo funcionamento das coisas, do corpo humano e da sociedade e vai fundo na sua investigação, fez dois anos de filosofia e acredita que ela seja a base de tudo, por estudar o mecanismo do raciocínio em si.

Depois de acompanhar três autópsias ao lado de dr. Paulo, admirei o entusiasmo com que ele investigava o corpo humano e imagino não ser possível fazer esse trabalho sem a companhia de um pensamento cartesiano e o olhar do cadáver como uma máquina. Claro que a máquina copia o corpo e não o contrário, mas o distanciamento que essa relação proporciona possibilita o trabalho dos médicos, ao mesmo tempo que os distancia. A ideia, lembrada pelo dr. André, dos professores estimularem respeito a um corpo, mesmo que sem vida, é bem vinda. Afinal, ele será sempre será considerado intocável e amado por alguém.

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Visita ao necrotério https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/12/10/visita-ao-necroterio/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/12/10/visita-ao-necroterio/#respond Wed, 10 Dec 2014 11:26:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=193 São 5h35 da manhã. Dr. Paulo Salvia me espera na porta da casa da minha prima, em Campinas. Ela me olhou com um misto de admiração e estranhamento quando falei do porquê do pedido repentino de pernoite na sua casa. “Vou visitar o necrotério de Campinas”, eu disse sorrindo, sem perceber o peso da palavra.

Cumprimento Dr. Paulo, recebo um livro de presente que se torna uma ótima distração para o caminho. Ele é médico legista e professor de medicina legal na Unicamp. Leitor do blog, me procurou para compartilhar seus pensamentos em relação à morte e desde então alimentamos uma conversa muito rica. Me convidou para visitar o necrotério da cidade, onde trabalhou por muito tempo. Aceitei a oferta como uma Alice deslumbrada, feliz por ter um desafio pela frente. Nem perguntei se assistiríamos a uma autópsia. O que para ele era óbvio e justamente o motivo da visita. Quando chegamos ao necrotério, ele me levou para vestir “trajes adequados”, como um avental branco, luvas e protetor para os cabelos. Percebi que não tinha mais volta e me convenci de que era aquilo mesmo o que eu esperava ver. O que ele definiu como “morte concreta” pareceu perfeito para a ocasião. O campo de estudo desse blog é tanto a morte concreta quanto a simbólica, por isso era totalmente justificável eu estar ali e agradeço ao Dr. Paulo pela oportunidade.

Assisti a três autopsias, disfarçando um sorriso no rosto, do tipo mulher-moderna-nada-me-afeta e dei graças a Deus que não abriram o bebê na minha frente. Só vi o mini-caixão branco e na saída, o pequeno deitado ainda com seu cordão umbilical. Permaneci com a imagem daquele mini corpinho intocável.

Mas não foi o que aconteceu com os outros três defuntos que estavam lá. Uma senhora, um senhor e uma mulher com as unhas pintadas de rosa, as pontas descascadas, e o pé todo em ferida. Ela era diabética. Quando Dr. Paulo tirou a lona azul que cobria o corpo do senhor, minha reação foi acariciar as sobrancelhas brancas e grossas dele… pensando agora, parece o que a pediatra do meu filho, e amiga, fez comigo na mesa de cirurgia (tive que fazer cesaria), quando ela alisou minhas sobrancelhas segundos antes do parto. Esse gesto foi fundamental para me ajudar a encarar o desconhecido naquela mesa fria. Talvez, inconscientemente, eu quisesse passar o mesmo àquele senhor.

Ele, claro, não reagiu. Poli, o técnico, chegou logo em seguida. É ele quem faz a autópsia, retira os órgãos e os deixa expostos numa tábua para o médico responsável fazer o relatório formal do motivo da morte, que Poli mesmo já sacou muito antes da entrada do médico. Poli tem movimentos rápidos e certeiros. Concentrado, passa de uma etapa à outra como alguém cumprindo tarefas automáticas de um trabalho massificado. O primeiro movimento é colocar a cabeça dos defuntos apoiada numa espécie de cavalete, chamado “apoiador de crânio” e cortar suas roupas.

O senhor vinha do hospital, ainda tinha um fraldão e marcas de agulha, algodão e esparadrapo. Na mesa ao lado, a senhora vestia pijamas. Pensei sobre as tantas vezes que ela usou esse traje, onde o comprou ou se ganhou em alguma data especial, como o Natal. Mas naquele momento, é apenas um obstáculo a mais para uma operação necessária e cotidiana, a autópsia.

Poli pega uma espécie de tábua de plástico branca e a apoia na mesa, sob as pernas deles. A tábua serve para colocar os órgãos extraídos. Com uma faca, em segundos rasga o couro cabeludo de orelha a orelha, para expor o que se chama tábua óssea. A pele que solta é virada e cobre os olhos do morto. Com uma serra elétrica, ele abre o crânio e retira o cérebro. Minha reação estúpida foi comparar a imagem da cavidade cerebral a um romã. Ninguém deu bola. Logo depois, sua faca faz um corte longitudinal, de cima do peito até embaixo do umbigo. Salta uma massa amarela, a gordura, e costelas, que é o tórax. De lá, ele retira o coração, rim, fígado, baço, e eu vejo um brilho no olhar de Poli ao constatar a causa mortis com rapidez. Um coração infartado que causou um tal de tamponamento do pericárdio, um fígado todo enrugado, áspero, sinais de pressão alta, de tabagismo, de alcoolismo, dos ismos mortais da nossa era. Tá tudo ai. A morte não mente.

Pensei em como o corpo humano, algo que considero sagrado, é frágil. Com apenas um movimento é inteiro dissecado, o que estremeceu de certa forma, o lugar intocável em que eu concebia a raça humana.

Dr. Paulo me convidou para sentir o ar dentro do pulmão, amassando o órgão, que no momento me parece melhor definido como uma massinha lisa, aerada, mistura de areia com papel-bolha. Toquei o último suspiro de alguém, e pensei no que Clarice Lispector acharia disso.

Admirei o entusiasmo do doutor, falando sobre como o SVO (Serviço de Verificação de Óbitos) é uma escola formidável, por apresentar tantas peculiaridades em um só corpo, como os rins da senhora, um deles atrofiado, o super-coração da outra mulher, os canais entupidos do outro coração que tinha marcas amarelas (desculpe Dr. Paulo, mas esqueci completamente o que elas significam). O doutor me convidava para tocar em tudo e eu meio que pedia uma espécie de permissão mental e estendia o dedinho cambaleante.

Não vi os corpos serem fechados. Quando fui embora, os três estavam lá, parecendo bonecos de plástico de efeitos especiais de cinema. Todos abertos, com os órgãos expostos ao lado, aguardando a chegada do médico. Não pareciam “reais” e a imagem certamente remeteu a um açougue. Talvez o símbolo mais humano era a etiqueta no tornozelo indicando o nome e sobrenome de cada um, e a lembrança de que pertencem a uma família.

Um quarto corpo era o de um homem jovem, muito machucado, que morreu de traumatismo craniano por cair de uma altura de quatro metros. Mas não vi a autópsia dele porque seria feita pelo IML (Instituto Médico Legal) e era necessário esperar o médico do IML para iniciar os procedimentos. Em Campinas, o SVO e o IML funcionam no mesmo espaço. Os corpos que vêm para o SVO são os de morte natural, como morrer em casa, enquanto que os que vêm para o IML são de causas externas, como traumas e acidentes de carro. Ali, também se recebe corpos de outras sete cidades como Valinhos, Paulínia e Indaiatuba.

Notei um balde de pó de serra na sala. Dr. Paulo me falou que ele é usado para preencher os espaços vazios após a autopsia e ainda disse que muitas vezes utilizam jornal para preencher a cavidade cerebral.

Depois de fechado, o corpo é levado para uma outra sala para ser preparado para o velório. Essa sala é pequena e comprida, com caixas de velas e flores empilhadas. Me refugiei nela em alguns momentos para me afastar do cheiro da autópsia. Para mim, a pior parte de todo processo. Esse cheiro ficou alguns dias impregnado e é indescritível. Dr. Paulo e Poli não o percebem mais, ou pelo menos não se incomodam com ele.

Saí dessa experiência com a sensação de que a morte concreta é menos assustadora do que a simbólica, e lembrei da minha mãe apontando uma passagem de um livro*: “o penoso na morte é o verbo ativo: morrer. Estar morto, tudo bem”.

Na saída, vi pessoas aguardando perto da entrada do Cemitério dos Amarais (onde fica o necrotério) e questionei se eram familiares daquelas que acabei de ver serem autopsiadas. Senti respeito e compaixão, como se eu compartilhasse uma intimidade com elas. E a singela sensação de que sim, o que sobra é somente um corpo, um recipiente para algo maior, talvez. O que estava na mesa era apenas uma representação simbólica do que foram em vida, a ser mantida viva na memória dos que ficam.

Quando fecho os olhos, às vezes vêm imagens de um órgão ou outro, ou um rasgo na pele com se fosse papel, ou o cheiro, mas prefiro me ater ao movimento do carinho na sobrancelha daquele senhor, e o pensamento de que vai ficar tudo bem.

Encontro motivação na ideia, talvez ingênua, de que posso de alguma forma, contribuir para a desmitificação do desconhecido, dessa realidade que nos amedronta e ao mesmo tempo empolga, como um encontro amoroso que uma hora ou outra, há de acontecer. Prefiro manter a poesia e arriscar sofrer mais com a morte simbólica do que me submeter apenas à praticidade de tudo que a cerca. E sigo no caminho desse blog, em ter a honra de fazer uma autópsia da morte em vida. Com a suave sensação de que o morrer é mesmo mais aterrorizante do que o estar morto.

 * “A força da palavra”, de Betty Milan”, ed. Record, 2012, página 195, entrevista com Jean D`Ormesson.

Gostaria de agradecer ao Dr.Paulo Newton Danzi Salvia, ao Erivelto Luís Chacon – Analista Técnico da Divisão Funerária da SETEC e ao Dr. Ivan de Mello Pompeu Piza.

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