Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A vontade do paciente deve prevalecer sobre a do médico e a da família? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/12/a-vontade-do-paciente-deve-prevalecer-sobre-a-do-medico-e-a-da-familia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/12/a-vontade-do-paciente-deve-prevalecer-sobre-a-do-medico-e-a-da-familia/#respond Wed, 13 Dec 2017 00:09:02 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1454 A Federação dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (FEHOESP) divulgou nesta terça-feira (12) os resultados de uma pesquisa inédita. A Federação queria saber a opinião da sociedade sobre o testamento vital e descobriu algo que pode parecer óbvio, mas é bem complexo.

Para 96,4% dos 716 participantes, a vontade do paciente deve prevalecer sobre a do médico e a da família. Ou seja, as vontades expressas em um documento como o testamento vital devem prevalecer sobre os desejos de todos e entendidas como válidas. Hoje, ele é aceito informalmente, mas não tem proteção legal.

Um testamento vital tem o objetivo de registrar vontades relativas a tratamentos médicos em caso de doenças fora de perspectivas de cura.Ele não é apenas destinado a garantir a suspensão de procedimentos, como a não reanimação ou não ser submetido a certas cirurgias. Também pode ser usado justamente para garantir essas intervenções, contanto que seja a vontade expressa do paciente. A nomenclatura é emprestada do “living will” da língua inglesa, que se refere mais a um “desejo em vida” do que a um testamento em si. O “will” foi traduzido como testamento gerando uma leve confusão.

Ele faz parte das Diretivas Antecipadas de Vontade, assim como o mandato duradouro – a nomeação pelo paciente de um procurador para tomar decisões em seu nome, e pode ser feito por qualquer pessoa acima de 18 anos que não tenha sido interditada, apesar de só ter efeitos na eventualidade de uma doença terminal.

Amparada pela pesquisa, a FEHOESP irá propor um anteprojeto de lei ao Congresso Nacional que garanta segurança jurídica a documentos como o testamento vital.

O presidente da FEHOESP, o médico Yussif Ali Mere Jr, diz que falta respaldo legal para os médicos cumprirem os desejos do paciente sem que corram riscos de processos judiciais. Isso tornaria a fase final da vida ainda mais complicada, com conflitos que podem ser “minimizados” com documentos como esse.

À primeira vista, pode parecer óbvio que a vontade do paciente deva ser a mais importante de todas. Mas os exemplos demonstram a complexidade do tema, como o caso do José Humberto. O menino de 23 anos não quer mais fazer hemodiálise, o tratamento indicado para a doença renal crônica que tem desde 2015. Ele alega sofrer muito durante o procedimento e busca uma morte que ele chama de “digna”, sem sofrimento.

Sua mãe, inconformada, apelou à Justiça para obrigar o filho a manter o tratamento. Ela ganhou a causa, mas não pode usar força ou sedativos, o que, na prática, significa que ele provavelmente não o fará. A Folha organizou uma enquete, perguntando aos leitores se José Humberto tinha direito a essa recusa. Dos 3905 votos, 86% foram favoráveis a ele.

O Conselho Federal de Medicina prevê essa autonomia e diz que nenhum paciente pode ser obrigado a se tratar. Eu também sou mãe e não consigo imaginar a dor de ver um filho definhar. Mas preciso admitir que eu já enfiei remédio goela abaixo do meu filho de 3 anos, totalmente contra a vontade dele. Mesmo se ele tivesse 18 anos, seria muito difícil eu aceitar o seu “não”, ainda que em algum momento eu imagino que entenderia que aceitar é, acima de tudo, respeitar. (me desculpem a dramatização pela rima, não resisti).

Mas esse caso específico parece remeter a um outro ponto, o da judicialização das relações. Quem comentou essa questão foi a advogada Luciana Dadalto, especializada em testamento vital, que participou comigo de um evento na penúltima quinta-feira, no Sesc Ipiranga, parte do ciclo “Finitudes” e apresentou os resultados da pesquisa da FEHOESP na coletiva de imprensa desta terça-feira (12).

A mãe de José Humberto buscou o apoio do Justiça porque não conseguiu se comunicar com o filho. O exercício da escuta e da empatia falhou.

Isso se reflete em diversas esferas. Segue também uma judicialização do amor. Duas pessoas que se amam ou que já se amaram buscam um árbitro para chegar a um lugar comum. Ninguém quer ceder e nos sentimos impotentes para levarmos adiante negociações.

O testamento vital aponta para um caminho diferente porque ele não existe para intermediar relações, mas para que o paciente possa deixar explícito os tratamentos que ele quer, e os que ele não quer, no final da vida, caso não esteja consciente para tomar decisões.

Eu defendo que cada um possa definir sobre sua morte nessa etapa final e também sou a favor da ortotanásia, o chamado processo da morte natural, sem interferências da tecnologia. A morte com entubação, na UTI, com respiração e alimentação artificial é uma morte com o amparo da tecnologia. Da mesma forma que podemos nascer de parto natural ou cesariana, podemos morrer naturalmente ou com acesso a todos esses apetrechos. O lado negativo dessa realidade é que a UTI é um ambiente solitário, desconfortável e frio. A própria necessidade de esterilização não permite visitas prolongadas. É, também, uma morte inconsciente, em sua grande maioria. Os pacientes morrem sedados, sem poder fazer escolhas em seus últimos dias de vida.

Aqui, lembro de uma frase da geriatra Ana Claudia Arantes, que virou título de seu livro: a morte é um dia que vale a pena viver. Lembro, também, da paliativista Maria Goretti, indicando que no hospital, somos pacientes, enquanto que, fora dele, permanecemos como pessoas. Essa é a luta dos cuidados paliativos, olhar cada um como um ser inserido em uma realidade psicossocial. Por isso é tão importante o debate sobre políticas públicas voltadas para cuidados paliativos e o acesso a opiódies (remédios para a dor) mais modernos, inexistentes no Brasil.

Mesmo ressaltando essa tendência da judicialização das relações, acredito que uma lei que proteja o testamento vital é necessária, por intermediar um conflito muitas vezes impossível, que nasce da relação médico-paciente-família. Se não, vamos acabar como o homem dessa reportagem aqui, desesperados, com uma tatuagem enorme no peito: “Do Not Resuscitate”.

Entenda o que é o testamento vital na seção “testamento vital” do blog.

Recomendo: É melhor morrer em casa ou no hospital?

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Visita à Dignitas https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/visita-a-dignitas/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/visita-a-dignitas/#respond Tue, 12 Dec 2017 01:33:50 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1452 A Suíça permite, por lei, o suicídio assistido. Algumas instituições se especializaram no procedimento, como a “Dignitas” e a “Exit” , o que trouxe a má fama de “turismo da morte” ao país, por atrair pessoas do mundo todo em busca de uma morte assistida. Alguns países autorizam o suicídio assistido, mas não a eutanásia. Na eutanásia, um profissional de saúde ministra a substância letal no paciente, enquanto o suicídio assistido prevê que a pessoa tome a substância de forma independente. Em estágios avançados de algumas doenças, essa autonomia não é possível, o que inspira discussões comuns ao tema.

Esse debate não chegou ao Brasil e arrisco dizer que ainda não temos condições de fazê-lo sem discutir, antes, uma política nacional de cuidados paliativos. Talvez, um levante o outro e isso pode ser positivo. Mas em outros países ele caminha rápido, como nos Estados Unidos, que já contempla cinco estados com leis nesse sentido, a França e o Canadá. Holanda e Bélgica foram os pioneiros e são ainda mais polêmicos por permitirem suicídio assistido em função de distúrbios mentais, como depressão. É importante ressaltar que essa opção é defendida como uma ferramenta de prevenção e combate ao suicídio, já que muitos desistem de morrer depois de passarem pelo longo processo exigido por lei (leia mais aqui).

A revista “The Economist” já se posicionou a favor do suicídio assistido e considera sua legislação uma questão de tempo. Os documentários a respeito são desconcertantes como o “Choosing to Die”, que é filmado, em parte, na “Dignitas”.

A advogada Luciana Dadalto, fundadora do portal “Testamento Vital”, visitou à Dignitas e escreveu sobre sua experiência. Segue seu relato, abaixo:

Leia mais sobre esse tema na seção: Eutanásia e Suicídio Assistido.

Recomendo: Conheça a filosofia Hospice e os Cuidados Paliativos clicando aqui.

Minha visita à Dignitas

Por Luciana Dadalto

Em 14 de setembro de 2017, vivi uma das maiores experiências acadêmicas da minha vida. Fui a “DIGNITAS – Viver com dignidade – Morrer com dignidade” (ao longo do texto vou chamá-la apenas de Dignitas), a organização mais conhecida no mundo em prol do direito à escolha acerca dos desejos no fim de vida.

Você deve estar pensando “como você teve a coragem de seguir Dignitas”? “Que coisa mórbida”. Além de ser tentado a fazer piadas como “você se atreveu a beber água lá?” Sim! Eu tive a coragem de ir para Dignitas e eu voltaria lá mil vezes se me acolherem e eu vou te dizer por que:

Em 15 de setembro de 2017, lancei o livro “Tratado Brasileiro sobre o Direito Fundamental à Morte Digna” na Universidade de Lisboa, em Portugal. Sabendo de minha viagem à Europa, decidi visitar Dignitas, mas fiz uma resolução unilateral e não contei a eles.

Sim, foi uma loucura. Eu tive a ideia, contei para minha sócia (e grande amiga) e ela me presenteou com as passagens aéreas de Lisboa a Zurique, pensando que eu já tinha contatado Dignitas, acontece que eu, ingenuamente, pensei que seria possível entrar em contato poucos dias antes… As passagens foram compradas em 29 de agosto e em 30 de agosto enviei meu primeiro e-mail para a Dignitas. Mas, recebi uma resposta dizendo que a visita não era possível. E eu comecei minha saga. Eu insisti, enviei vários e-mails, enviei meu currículo em inglês, liguei para lá mais de 7 vezes em um único dia, e no dia 07 de setembro recebi sua aceitação.

Antes de tudo, tenho que lhes dizer que tive muita sorte. A Dignitas não é um lugar aberto aos visitantes e ao contrário do que eu imaginei (e ao contrário do que a mídia nos diz), não é uma clínica. A Dignitas é uma sociedade sem fins lucrativos que defende, educa e apoia a melhoria dos cuidados e as tomadas de decisões autônomas no fim da vida, uma organização cujo principal objetivo é implementar a liberdade de escolha e autodeterminação em questões de vida digna e morte em todo o mundo. Não é um hospital, um hospice, uma clínica, um consultório médico ou algo assim. Não há médicos empregados na Dignitas.

A configuração que eu encontrei foi: mesas, cadeiras, telefones, arquivos e pessoas trabalhando – assim como qualquer escritório em qualquer lugar do mundo. Não havia nada mórbido, nem mau tempo …

Passei cerca de duas horas conversando com um dos membros do conselho, um advogado, responsável pela Dignitas hoje e, embora muitas das minhas duvidas tenham sido respondidas em seu site (www.dignitas.ch), na verdade, teve uma emoção extra.

Eu podia ver como a informação recebida está mal representada. O suicídio assistido é apenas uma das obras da Dignitas. Mas a maior – e o mais importante deles – é a informação e a educação sobre a qualidade de vida, a escolha e a morte digna, incluindo a importância das pessoas que ganhavam a vida (sim, meus pequenos olhos brilhavam). Eu ouvi algumas vezes que eles acham que a discussão sobre liberdade de escolha e autodeterminação em questões de vida e morte digna socialmente mais relevante do que a discussão sobre suicídio assistido.

Percebi o valor da autonomia do paciente. E vi, na prática, quão burocrático é para um estrangeiro ter acesso ao suicídio assistido na Dignitas. O chamado “turismo da morte” está longe de ser um oásis. Dignitas tem um rigor imenso que precede a realização do suicídio assistido e, para ter uma ideia, o período mínimo entre a candidatura, a adesão a Dignitas e a realização do suicídio assistido é é de no mínimo, três a quatro meses. Então, não apenas diga “Eu quero morrer em Dignitas”, eles têm um lema: pensar, ler e depois agir. Ou seja, se você se interessar pela matéria, leia a grande quantidade de material no site da Dignitas. Somente após a pessoa ter certeza de que compartilha os mesmos valores da Dignitas, ela pode se tornar um membro e, eventualmente, realizar suicídio assistido se cumprir os critérios legais.

Em outras palavras, é necessário passar por um longo processo de envio e análise de documentos (todos oficialmente traduzidos para inglês, alemão, francês ou italiano) e, em uma etapa posterior ao procedimento de avaliação, duas consultas com um médico suíço ( que não tem ligação com Dignitas), que deve certificar a gravidade da doença, bem como o discernimento do paciente.

Ao contrário do que ouvi falar de muitas pessoas, Dignitas não é uma “máquina da morte”, mas uma instituição que defende o direito à autodeterminação e escolha na vida e uma morte digna, dentro da lei do país em que se baseia (Suíça) e todo o procedimento é feito de acordo com critérios legais.

E, não, não vi ninguém morrer. Mas eu vi pessoas que lutam dentro dos limites legais para garantir a autonomia de fim de vida dos pacientes até o último momento. E fiquei muito grata pela oportunidade. Então compartilho essas linhas com você com a permissão da Dignitas.
Abraço,
Luciana.

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É possível salvar Charlie Gard? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/07/04/e-possivel-salvar-charlie-gard/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/07/04/e-possivel-salvar-charlie-gard/#respond Tue, 04 Jul 2017 17:37:38 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1327 “Pode-se imaginar o enorme sofrimento dos pais de Charlie. Sofrimento que possivelmente tem bases em um dos assuntos mais complexos para todas as culturas do mundo: a morte e o morrer. O medo do desconhecido, a sensação de impotência e a esperança de um milagre sustentam a religiosidade e a ciência nesse assunto. A religiosidade, porque ela nutre a esperança de que há uma força maior que pode mudar o curso natural da doença. A ciência, porque os rápidos avanços tecnológicos em diversas áreas da medicina trazem a esperança de que surgirá o tratamento para a doença que acomete um ente querido. Quando falamos de morte, a ciência e a religião têm um mesmo objetivo: enfrentá-la”.

A médica pediatra Carolina Affonseca e a  advogada da área da saúde Luciana Dadalto,  escreveram um artigo para o blog “Morte sem Tabu” sobre o caso de Charlie Gard – um bebê britânico de 11 meses que apresenta uma doença incurável e sobrevive com aparelhos respiratórios. A Justiça Britânica emitiu uma autorização para que os aparelhos respiratórios do bebê fossem desligados, contra a vontade de seus pais.  Leia o artigo abaixo, na íntegra:

“E a morte bate às portas do judiciário….

O caso do bebê inglês Charlie Gard, de apenas 11 meses, tem suscitado debates acalorados nas últimas semanas, que se intensificaram no último dia 27, após a Corte Européia de Direitos Humanos determinar, contra a vontade dos pais, o desligamento dos aparelhos que o mantém vivo, com base no princípio jurídico do melhor interesse da criança.

Charlie é portador de uma doença mitocondrial, alteração adquirida geneticamente que determina disfunções expressivas do funcionamento de seus órgãos e tecidos e impacta de forma contundente na sua sobrevida.

As mitocondriopatias estão presentes em cerca de 1 a cada 5000 nascidos vivos. São um grupo heterogêneo de disfunções que ocorrem em múltiplos órgãos e que são causadas pelo mal funcionamento da mitocôndria. A mitocôndria é uma organela intracelular cuja principal função é a produção e fornecimento de energia para que a célula execute suas funções. Do ponto de vista molecular, o mal funcionamento da mitocôndria pode ser secundário a uma alteração no DNA da célula ou, ainda, a uma alteração de seu próprio DNA (mt-DNA). Clinicamente, pode afetar um órgão específico ou acometer vários órgãos de forma grave e progressiva. Os principais órgãos acometidos são o cérebro, fígado, músculo e rins.

Charlie Gard é acometido por um dos subtipos mais graves da doença relacionado à mutação do gene denominado RRM2B. Há, no mundo, cerca de 16 pessoas identificadas com essa mutação e, os indivíduos afetados desenvolvem, durante os primeiros 6 meses de vida, uma fraqueza muscular intensa associada com insuficiência respiratória, microcefalia, atraso no desenvolvimento neurológico, crises convulsivas de difícil controle, surdez e mal funcionamento renal. A doença progride rapidamente provocando a morte após poucos meses.

A grande diversidade de sintomas, o envolvimento de diferentes órgãos e os diversos modos de progressão da doença representam um desafio para o desenvolvimento de intervenções terapêuticas efetivas. Apesar de estudos apontarem a terapia de alteração genética e o tratamento com células tronco como opções promissoras para o tratamento das mitocondriopatias, até o momento, não existe qualquer intervenção que proporcione a cura da doença. A abordagem do paciente deve ser voltada para o cuidado paliativo com adequado controle dos sintomas e medidas de suporte fornecidos por uma equipe multiprofissional, uma vez que o paciente apresenta lesões cerebrais irreversíveis e grande probabilidade de estar sofrendo procedimentos que provoquem intensa dor e sofrimento.

O tratamento experimental a que os pais de Charlie Gard tentaram submeter o filho trata-se da suplementação de desoxiribonucleosídeos, até o momento, realizado apenas em modelos animais (ratos) em que foi observada uma melhora bioquímica e/ou clínica no animal. Entretanto, a alteração genética apresentada pelo rato no estudo era diferente daquela apresentada por Charlie. O próprio chefe da pesquisa admitiu que nenhuma das pessoas que receberam o tratamento experimental apresentavam uma condição clínica tão grave quanto a de Charlie e, portanto, administrar o tratamento a ele “seria como entrar em um território completamente inexplorado”.

Pode-se imaginar o enorme sofrimento dos pais de Charlie. Sofrimento que possivelmente tem bases em um dos assuntos mais complexos para todas as culturas do mundo: a morte e o morrer. O medo do desconhecido, a sensação de impotência e a esperança de um milagre sustentam a religiosidade e a ciência nesse assunto. A religiosidade, porque ela nutre a esperança de que há uma força maior que pode mudar o curso natural da doença. A ciência, porque os rápidos avanços tecnológicos em diversas áreas da medicina trazem a esperança de que surgirá o tratamento para a doença que acomete um ente querido. Quando falamos de morte, a  ciência e a religião têm um mesmo objetivo: enfrentá-la.

A atitude desesperada dos pais em buscar uma autorização do Poder Judiciário para, com os próprios recursos financeiros, transferir o filho para os EUA e submetê-lo a um tratamento experimental nos aproxima de um fenômeno contemporâneo: a aparente supremacia do Poder Judiciário. Quando os cidadãos se sentem desamparados pelo sistema jurídico vigente, buscam no Poder Judiciário a solução para suas questões. Judicializam afeto, amor, raiva, desespero. Depositam no Poder Judiciário a esperança do milagre, esquecendo que um juiz nunca terá o poder de decidir o que é melhor para as partes porque apenas os atores do conflito entendem todos os sentimentos por detrás da questão jurídica.

Melhor seria que a equipe de saúde que cuida de Charlie tivesse utilizado, com êxito, técnicas de comunicação, de diálogo e, até mesmo, de mediação para explicar o caso aos pais e ajudar-los a passar pelo luto antecipatório diante do trágico diagnóstico.

Muito se argumenta acerca do absurdo da intervenção estatal nesse caso. Mas é preciso entender que quem procurou a proteção do Estado foram os pais, ao buscarem, no Poder Judiciário, chancela para a tentativa de submeter o filho a um tratamento experimental, sem qualquer evidência científica de cura.

Fala-se ainda em um desrespeito à autonomia privada, partindo da falácia de que cabe aos pais decidirem sobre os cuidados médicos a serem administrados aos filhos. A vida, a saúde e o corpo são direitos fundamentais e personalíssimos. Portanto, a decisão sobre eles não deve ser transferida a terceiros, nem mesmo aos pais. Cabe aos detentores do conhecimento técnico, no caso, a equipe de saúde, fazendo jus aos princípios bioéticos da beneficência e não maleficência, indicar os melhores cuidados para a criança, não abandonando-a, nem a seus pais. Amparando-os para que Charlie tenha um fim de vida digno, uma vez que, infelizmente, não há chances de cura. E, repita-se, o tratamento a que os pais queriam submeter Charlie nunca foi testado em pessoas com condição clínica semelhante. É justo com Charlie submetê-lo a esse tratamento? Será que os pais estão pensando no filho, ou estão tão desamparados e desesperados diante da impotência desse terrível diagnóstico que querem ter, ao menos, a sensação de que fizeram todo o possível?

Não concordamos com a posição da equipe médica em proibir que os pais levassem o filho para casa. A possibilidade de ser transferido para casa e ficar sob os cuidados dos pais provavelmente contribuiria para intensificar o vinculo afetivo entre os pais e a criança e a percepção real da intensidade do sofrimento associada a busca incessante pela sobrevivência que, nesse caso, distancia-se nitidamente do nosso conceito de vida. Poderia contribuir para o entendimento de todo o processo e com a decisão em busca do melhor interesse da criança. Por fim, a nosso ver, faltou alguém dizer a esses pais: vocês fizeram tudo o que estava ao alcance de vocês, mas, infelizmente, é impossível salvar Charlie”.

As autoras desse artigo são:

Carolina Affonseca

Mestre em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Médica pediatra responsável pelo programa Cuidar (cuidado paliativo e atenção domiciliar) do Hospital Infantil João Paulo II.

Luciana Dadalto

Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUCMinas. Sócia da Dadalto & Carvalho Advocacia em Consultoria em Saúde.

Contato: luciana@dadaltoecarvalho.com.br

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Entre o ceticismo e a fé https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/06/03/entre-o-ceticismo-e-a-fe/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/06/03/entre-o-ceticismo-e-a-fe/#respond Fri, 03 Jun 2016 13:41:46 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=949 A jornalista e mestranda em Comunicação Social pela UFMG, Juliana Ferreira, enviou ao blog o arrepiante depoimento abaixo. Ela nos relata casos de mediunidade, em experiências que tem desde os dois anos, e confidencia um dilema comum: oscilar entre dois extremos – o ceticismo e a fé.  “Alguns filósofos contemporâneos defendem que a sociedade de hoje é sim compatível com uma crença, que não é ignorante quem crê. Enquanto tento criar essa ponte, fico no limbo, entre meu forte ceticismo e minha aceitação da mediunidade”.

ObservaçãoDurante minha licença-maternidade, abri o blog para depoimentos de leitores. Os interessados em ler os artigos já publicados, por favor pesquisem nas abas laterais. Há cem posts disponíveis, separados por temas. Ou entrem na página do Facebook do blog. Para enviar seu depoimento, escreva para mortesemtabu@gmail.com.  Um abraço, Camila

“Entre o ceticismo e a fé

Por Juliana Ferreira

Os fenômenos tiveram início cedo. Numa noite fria e chuvosa de 1992, quando eu tinha apenas dois anos, em Pirassununga, no interior de São Paulo. Minha mãe viu o que estaria por vir. Brincava em seu colo, quando exclamei de repente: “mãe, o lobo mau está do seu lado!”. Não havia mais ninguém em casa e o arrepio dominou seus braços, o que a fez ir para varanda comigo, naquela noite gélida, até que meu pai chegasse. Muitos podem dizer que se tratou apenas de imaginação infantil. Mas, ao longo dos anos, foram muitos os casos que me amedrontaram. Só consegui dormir de luz apagada aos 18 anos. Sem falar nas noites que tremia de medo e obrigava minha irmã a deitar bem abraçada a mim.

Quando comecei a perceber pensamentos que não eram meus, achei que estava louca. No entanto, tais vozes me ajudaram a sair viva de um assalto em que fui feita refém (anos mais tarde, minha amiga disse ter visto sua avó ao meu lado), previram a morte do meu avô e me contaram que meu cunhado seria roubado. Sem falar nas intuições bobas do dia a dia, como a queda de um copo ou um tropeço. Tudo isso reforçou o grande assombro que desde sempre nutri pela morte. Nunca me vi capaz de me relacionar com ela.

Nascida em berço espírita, doutrina que se pretende reveladora da vida após a morte e da reencarnação, nunca consegui de fato me apegar à crença. Sempre duvidei da existência de algo no lado de lá. E tal dúvida se intensificou quando entrei para o mundo acadêmico. Nietzsche, Durkheim e tantos outros não ajudaram. Cheguei a me declarar ateia. Até que a iminência da morte apareceu.

À meia-noite de um dia de abril de 2013, quando era trainee desta Folha, em São Paulo, minha respiração começou a falhar, meu coração foi na boca, que ficou seca; arrepios, tremor e uma sensação de esvaziamento na cabeça. Tinha certeza de que estava morrendo. Minha pressão foi a 21 por 17. No pronto-socorro, o eletro não acusou nada. O diagnóstico médico não demorou: transtorno de ansiedade. Mas o antidepressivo e o ansiolítico apenas amenizaram o problema. Logo, comecei a sentir presenças, a ouvir pensamentos, a ter medo.

Aderi à terapia, que me mostrou a possibilidade de me abrir para outros caminhos que não o do ceticismo. Aceitei e fiz um tratamento espiritual. O diagnóstico do espiritismo eu já suspeitava: mediunidade. Resolvi encarar. Entrei em transe, saí do corpo, incorporei espíritos, fui a outros planos. Senti alívio e aprendi a controlar minhas crises. Mas ainda há uma ponta de dúvida sobre a veracidade de tudo isso. O medo da morte ainda é latente e me assombra diariamente.

O esforço de aliar meu conhecimento científico ao espírita tem ajudado. Alguns filósofos contemporâneos defendem que a sociedade de hoje é sim compatível com uma crença, que não é ignorante quem crê. Enquanto tento criar essa ponte, fico no limbo, entre meu forte ceticismo e minha aceitação da mediunidade. Não me canso de perguntar se não sou apenas mais uma paciente psiquiátrica. Nesse cenário, a morte continua uma ameaça, porém mais branda e indolor”.

Juliana é jornalista e mestranda em Comunicação Social pela UFMG. Foi trainee da Folha em 2013.

Contato: juckel@gmail.com

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Primeiro-ministro canadense busca legalizar o suicídio assistido https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/04/15/primeiro-ministro-canadense-busca-legalizar-o-suicidio-assistido/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/04/15/primeiro-ministro-canadense-busca-legalizar-o-suicidio-assistido/#respond Fri, 15 Apr 2016 14:21:19 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=900 O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, é a favor do suicídio assistido e se empenha para torná-lo uma realidade. Na última quinta-feira (14), introduziu uma lei para legalizar o procedimento a canadenses portadores de doenças crônicas.

A lei criminal é uma questão federal no Canadá, mas a permissão para o suicídio assistido já é aprovada por juízes em casos específicos ao redor do país.

A Suprema Corte declarou em decisão unânime, no ano passado, que é inconstitucional negar a opção de suicídio assistido a adultos portadores de uma condição médica grave e irremediável.

A posição do primeiro-ministro foi influenciada pela morte de seu pai, o ex-primeiro-ministro Pierre Elliott Trudeau, após rejeitar tratamentos agressivos para um câncer de próstata e doença de Parkinson.

É provável que a nova legislação seja aprovada, dada a maioria do Partido Liberal (do primeiro-ministro) na Câmara, apesar de alguns membros terem dito que a lei entra em conflito com suas crenças religiosas.

Essa notícia é uma repercurção do New York Times. Para ver o artigo original, em inglês, clique aqui. No vídeo divulgado na matéria, o primeiro-ministro diz que seu governo foca muito em respeitar os direitos dos canadenses, defender e permitir suas escolhas e, ao mesmo tempo, defender os mais vulneráveis da sociedade. Também afirma haver muito a se fazer para fortalecer a qualidade de cuidados no final da vida (e os cuidados paliativos) e não apenas as questões que relacionadas a esse momento.

Aprovação na Califórnia – EUA

Nos Estados Unidos, a legislação a respeito varia de estado para estado. Há quatro estados, atualmente, que permitem o suicídio assistido: Oregon, Washington, Montana e Vermont. A Califórnia será o quinto. O governador da Califórnia, Jerry Brown, assinou em outubro do ano passado, uma legislação permitindo o suicídio assistido. Ela deverá passar a ter efeito apenas em 9 de junho desse ano, devido a forma como foi aprovada – em uma seção extraordinária chamada pelo governador.

A lei exige a assinatura de dois médicos que atestem um prognóstico de seis meses de vida ou menos. O paciente precisa ser capaz de tomar a medicação sozinho e afirmar, por escrito, 48 horas antes, o desejo de fazê-lo. Leia mais sobre a lei na Califórnia nesse link (em inglês).

O que é o suicídio assistido?

É a permissão de prescrição de drogas letais para que o paciente se auto-medique. Difere da eutanásia por ser um procedimento que não permite a injeção da droga por terceiros. Na eutanásia, um profissional de saúde pode aplicar o remédio no paciente, caso ele não tenha capacidade física de se auto-medicar, por exemplo. A maioria das leis a respeito no mundo apenas permitem o suicídio assistido e a eutanásia para doenças físicas, incuráveis. No artigo “24 e pronta para morrer” – documentário sobre direito à morte assistida traz nova abordagem, exploro a visão da Bélgica e Holanda, que permitem o suicídio assistido por distúrbios mentais, como depressão crônica. Entenda mais sobre esse assunto em Sobre o direito de morrer.

Leia mais sobre suicídio assistido no blog:

Categoria – suicídio assistido e eutanásia

Artigo com uma entrevista com a editora da seção internacional da revista “The Economist”:

“24 e pronta para morrer” – documentário sobre direito à morte assistida traz nova abordagem

Sobre o direito de morrer

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Pagos para morrer https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/26/pagos-para-morrer/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/02/26/pagos-para-morrer/#respond Fri, 26 Feb 2016 11:17:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=851  

“Está na hora de você pensar num pôr do sol magnífico? Inscreva-se já!”

Um podcast do Freakonomics, sugerido pelo leitor Fabio Storino, reflete sobre um comercial de TV imaginário: um doente em seu leito de morte, ao lado dos familiares, debate sobre os altos custos de estender um tratamento médico que lhe proporcione uma sobrevida de uns três meses. O paciente tem a opção de não fazer o tratamento e ganhar um bônus de seu seguro saúde, num plano chamado de “o pôr do sol magnífico”. Aí, o comercial passa imagens atraentes desse dinheiro sendo gasto com uma última viagem inesquecível, um último desejo ou um investimento financeiro deixado aos netos.

A ideia partiu de um ouvinte do podcast questionando por que as empresas de seguro saúde não oferecem bônus aos pacientes que estão dispostos a dispensar cuidados médicos no final da vida. Ele diz: “quando um paciente recebe um diagnóstico terminal, as empresas de saúde terão informações suficientes que ofereçam uma estimativa dos custos que ele teria com tratamentos médicos pelos próximos 6 a 24 meses. Para os pacientes dispostos a dispensar esse tipo de cuidado, o bônus seguiria de acordo com a seguinte fórmula: um bônus imediato de 50% da diferença entre o custo atual do cuidado médico padrão e os cuidado paliativos. O paciente manterá o controle da opção, mas esse benefício se abrirá imediatamente a ele. A empresa de seguro saúde teria um ganho real e ajudaria a desincentivar o excesso de consumo de cuidados médicos nos últimos meses de vida”.

Veja algumas ponderações apontadas durante o bate papo do podcast, entre economistas e médicos:

  • Esse tipo de proposta seria um pesadelo de relações públicas para as empresas de seguro saúde, porque iria parecer que elas desejam manter o paciente fora do hospital, impedindo que eles tenham acesso à quimioterapia e a outros tratamentos somente para poupar dinheiro;
  • A ideia seria de difícil aceitação porque tratamento médico não é apenas uma questão econômica, é uma questão ética, quase religiosa;
  • É uma ideia fria, calculista, utilitária e pouco “americana”;
  • A ideia deveria ser discutida sim porque, dependendo do estudo, 40%, 60% ou até 80% de todo gasto médico de uma pessoa ocorre nos últimos 12 meses de sua vida;
  • É uma forma interessante de analisarmos: estamos priorizando qualidade de vida ou quantidade de vida? Se for para priorizar qualidade de vida, a ideia pode ser boa;
  • Esse tipo de proposta gera uma reação negativa imediata por tocar em vários tabus: morte, dinheiro e planos de saúde;
  • É uma forma de transferir a responsabilidade para o paciente em definir quando a vida dele terminará (e tirar das mãos dos médicos e do governo) – oferecendo a opção de ele abrir mão de um cuidado médico caro e transferir esse dinheiro para seus netos ou uma instituição de caridade, por exemplo;
  • A ideia não teria aceitação porque a maioria dos Estados dos Estados Unidos não aprova o suicídio assistido, o que indicaria uma dificuldade dos vivos em aceitar a opção de alguém pela morte;
  • Pode ser visto como uma forma de colocar um preço na vida humana;
  • Como seria a viabilização do pagamento ao paciente? Quais impostos o governo deveria cobrar, seria diferente em cada Estado ou igual no país inteiro?
  • Não existe um mercado funcionando em empresas de saúde. Você não sabe quanto custa um serviço médico. Nem a enfermeira sabe quanto custa um serviço, como o eletrocardiograma, por exemplo. É como perguntar para uma vendedora de camisetas quanto custa a camiseta e ela não saber responder. É assim que compramos serviços de saúde. As pessoas não consomem o serviço diretamente porque uma empresa paga pelo serviço por elas. Essa dificuldade em precificar atrapalharia a proposta;
  • O foco deveria ser em oferecer o maior conforto possível aos pacientes e seus familiares e não pensar em dinheiro e centavos (como a ideia sugeriria);
  • Há um paradoxo interessante porque os próprios médicos, em geral, não optam por intervenções em seu leito de morte. Não se vê um médico morrendo numa UTI. Quando é a vez deles, querem ser deixados em paz (um médico que fala no podcast diz que não gostaria de ser reanimado, não quer passar por tratamentos para câncer, etc);
  • Não é só porque a vida possa ser estendida por meio de cuidados médicos que ela deva ser estendida a qualquer custo (em detrimento de qualidade). E se você já pagou por esse cuidado médico, porque não receber algum bônus caso não utilize esse tratamento?
  • Há uma mudança em andamento, sutil mas há, de como o sistema de saúde americano olha para a morte.
  • O que fazer em caso do paciente mudar de ideia no meio do caminho? E se ele for internado em um hospital quando tiver inconsciente, por exemplo.
  • Muitos pacientes sentiriam-se obrigados a pegar o bônus por causa da situação financeira de sua família;
  • Um dos médicos do podcast coloca a questão de que os médicos deveriam ser pagos para falar sobre a morte iminente com seus pacientes. Pois essa conversa exige habilidades especificas e tempo, além de ser desgastante emocionalmente para o médico. Hoje, os médicos recebem mais por prescrever quimioterapia a seus pacientes do que por conversar com eles sobre seus desejos.
  • Essa conversa incentivaria pacientes a falarem sobre seus desejos no final da vida. Se querem ser ressuscitados ou não etc.
  • É muito difícil dizer quando alguém vai morrer (acertar prognósticos), o que inviabiliza a ideia;
  • É difícil para os pacientes saberem qual é a melhor opção e tratamento para eles. Qual é a minha real chance de cura ou de sobrevivência com qualidade? Quantos meses ou anos a mais eu viveria?
  • Em primeiro lugar, deveria haver uma conversa médico-paciente, honesta, sobre o que é realmente importante para ele. A primeira pergunta seria: como você gostaria de receber suas informações médicas. A segunda: qual é sua compreensão sobre sua situação. A terceira: o que é importante para você. A quarta seria: o que você espera do futuro, e a quinta: você já pensou em algum momento em que poderia estar muito doente, já pensou em testamento vital? Essa conversa mudaria completamente como as pessoas buscariam tratamento médico no final da vida. E faz com que se comportem como médicos, por pensarem no benefício que algo trará e o quanto esse benefício vale a pena ou não;
  • A dificuldade do médico falar sobre morte com seu paciente seria um grande problema.
  • Ao invés de uma proposta como essa, deveríamos iniciar o uso de cuidados paliativos com antecedência – no diagnóstico de uma doença e não apenas em sua fase terminal. Isso mudaria todo o cenário – para melhor. As pessoas teriam um melhor gerenciamento de sintomas e de dor e as famílias estariam menos estressadas. No final das contas, acabariam vivendo por mais tempo e não menos. E um bom efeito colateral é o de que a maioria das hospitalizações seriam evitadas.

A discussão não é simples e me parece ser um jogo de ideias válido de ser imaginado, por compreender um aspecto fundamental no que se refere a cuidados médicos no final da vida: direto à autonomia. Termos autonomia para tomar decisões, para nutrir uma conversa franca com médicos e familiares sobre um possível fim e como desejamos viver esse momento. Se a autonomia estiver comprometida (por questões físicas como um estado inconsciente), há formas de garantir que desejos sejam executados, com documentos como o testamento vital. Como a médica paliativista Ana Claudia Arantes diz: a morte é um dia que vale a pena ser vivido.

Escute o podcast nesse link

Transcrição do podcast (em inglês)

vladimir_kush
Vladimir Kush “Sunrise by the ocean”

 

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Um dia para morrer – a discussão no Brasil https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/11/01/um-dia-para-morrer-a-discussao-no-brasil/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/11/01/um-dia-para-morrer-a-discussao-no-brasil/#respond Sat, 01 Nov 2014 10:25:09 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=77 Brittany Maynard vinha divulgando que se suicidaria nesse sábado, 1° de Novembro, mas em seu último vídeo (veja aqui) anunciou que talvez não fosse, por ainda se sentir bem. Ao mesmo tempo, ela afirmou em entrevistas, como essa aqui da New Yorker, que temia esperar demais e ficar incapacitada de tomar os remédios letais por conta própria (devido a uma consequência de uma das convulsões que vem sofrendo,causadas por um tumor no cérebro) e assim, não poder mais ser assistida pela lei “Death and Dignity” (morte e dignidade) do estado de Oregon, que permite o suicídio assistido. No caso de uma incapacidade, a eutanásia poderia abreviar sua vida, mas não é permitida nos Estados Unidos. Uma menina de 29 anos, recém casada, bonita e aparentemente cheia de vida, sensibilizou a todos com sua fala conformada e serena. Falei sobre o caso dela no meu post: Permissão para Morrer: o caso de Brittany e a história de Nathalie (link).

Suicídio assistido e eutanásia são considerados crime no Brasil. Mas vamos compreender um pouco sobre o que significa cada coisa.

suicídio assistido, como o aprovado no estado de Oregon, permite que o paciente tenha acesso a remédios e dê fim à própria vida, no momento e local de escolha.

A eutanásia, como a autorizada na Bélgica, na Holanda e em alguns lugares da Suíça, já permite que o paciente morra pelas mãos de profissionais da saúde, pois são eles que dão ou injetam os remédios letais, ou desligam aparelhos que mantém a vida artificialmente. Assim, na eutanásia, abrevia-se a vida do paciente. A palavra é de origem grega e significa “boa morte”.

A distanasia é investir no paciente a qualquer custo, e a ortanásia é permitir que a pessoa morra naturalmente. Não se acelera nem se retarda a sua morte. Ou seja, procedimentos médicos como a traqueostomia, ou o uso de equipamentos e medicações que servem para prolongar a vida, não são utilizados. Isso é permitido no Brasil, mas sua jurisprudência ainda não é clara.

Testamento vital é uma ferramenta a disposição de todos que queiram registrar suas vontades no trato médico de doenças ameaçadoras de vida, como as doenças terminais, estado vegetativo persistente e doenças crônicas avançadas. Um médico é obrigado a seguir o testamento vital, desde que não vá contra a lei e contra o código de ética. Vou publicar uma entrevista com a maior articuladora dessa ferramenta no Brasil, Luciana Dadalto, em breve.

Aí entra um conceito um pouco mal interpretado mas de grande importância: cuidados paliativos. O site Casa do Cuidar coloca a seguinte definição: “Segundo a Organização Mundial de Saúde, Cuidados Paliativos é a assistência integral oferecida para pacientes e familiares quando diante de uma doença grave que ameace a continuidade da vida”. Eles se iniciam no momento saudável na vida de uma pessoa que adquiriu uma doença progressiva e irreversível e se estende para além da morte do paciente porque engloba a família e a equipe médica e enfermeiros, ou seja, engloba o período de luto – um momento que também deve ter apoio psicológico. Uma instituição que oferece apoio ao luto é a Quatro Estações. Falarei mais sobre cuidados paliativos e sobre o luto em outros posts.

 

Seria hiprocrisia afirmar que não é eutanásia

Médicos já afirmaram que a eutanásia é prática comum nas UTIs, como revelou a Folha nessa matéria que recomendo a leitura. Veja aqui.

O médico Caio Rosenthal, infectologista e membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, assumiu publicamente ter feito eutanásia no pai, paciente de câncer pancreático, em 1989, ao injetar um coquetel de analgésico que o levou a uma parada cardio-respiratória. Dr.Rosenthal deu um depoimento à revista Veja, em 2002, em que diz saber de casos de dor extrema nos quais se oferece uma dose de medicamento que pode ter o efeito de abreviar a vida do paciente. Ele conclui afirmando que seria hipocrisia dizer que isso não é eutanásia.

 

Entrevista com Dr. João Figueiró – médico clínico e psico-terapeuta

 Durante o governo Fernando Henrique, João Figueiró criou no Ministério da Saúde o “Programa Nacional de Assistência à Dor e Cuidados Paliativos”. E na Associação Médica Brasileira, o “Programa Nacional de Educação Continuada em Dor e Cuidados Paliativos”.

“A ideia era ter um programa no Ministério da Saúde de assistência e um de educação dos profissionais, na Associação Médica, mas esses programas acabaram sendo extintos”, ele conta.

Dr. Figueiró acredita que estamos muito atrasados no Brasil em relação ao que fazer no final da vida. Ele defende que todos devem ter direito sobre sua vida e sobre o fim da sua vida também, incluindo suicídio assistido e eutanásia. “Mas essa é uma posição de pensamento ideológica, porque no Brasil a prática dessas ações é crime”, afirma.

Um fator importante mencionado por ele é o de que a decisão precisa ser tomada quando a pessoa está em plena capacidade de juízo crítico. O que não é o caso da depressão. Por isso, em pacientes deprimidos, não se pode considerar a manifestação desse desejo. É preciso, primeiro, tratar a depressão para depois voltar a discutir o tema objetivamente. Ele já teve casos em que o desejo foi revertido após esse tratamento.

Dr. Figueiró diz que, “como o assunto é tabu, as pessoas evitam tratar dele com objetividade. Há muito juízo moral.” Para ele, deve-se começar discutindo o assunto com familiares e amigos e, se houver interesse, fazer uma manifestação de vontade, num período de lucidez de juízo.

 

Contra

Um especialista em cuidados paliativos, que não quis ser mencionado, me informou que era contra a eutanásia ou o suicídio assistido porque apenas os pacientes mal amparados optariam por tais alternativas.

Os motivos religiosos normalmente baseiam-se na afirmação de que só Deus dá a vida e assim só Deus tem o direito de tirá-la.

Do ponto de vista médico, pode ser mencionado o Juramento de Hipócrates (um juramento feito pelos médicos, normalmente na sua formatura) – em que se compromete a: “A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda.”

 

Animais?

Conversando com uma amiga sobre o tema, me surpreendi ao perceber outro ponto de vista. Ela comentou que seu cachorro está muito doente e o veterinário indicou sacrificá-lo. Sacrificar um animal pode ser comparado à eutanásia, na medida em que se injeta substâncias que causam a morte, ou seja, abrevia-se a vida do “paciente”. Ela é contra esse procedimento por achar que a decisão de “ir embora” não cabe a ela, “a morte é um aprendizado de desapego em que não se pode interferir”, ela disse. Eu já tive uma cachorra sacrificada, odiei passar por isso, mas nunca relacionei esse evento à eutanásia. Minha cachorra estava sofrendo demais e não tinha qualidade de vida nenhuma, só gemia de dor, dia e noite, mesmo com os anestésicos mais fortes a nossa disposição.

Para quem vê os animais de estimação como parte da família, pode chegar a comparar os dois procedimentos. Pensar nos pudores, nos medos, e quem sabe no alívio, que os procedem. Ou, como no meu caso, um imenso sentimento de culpa. Mas encontrei conforto na afirmação de que foi melhor para ela.

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Permissão para morrer – o caso de Brittany e o depoimento de Nathalie https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/10/30/permissao-para-morrer-o-caso-de-brittany-e-o-depoimento-de-nathalie/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/10/30/permissao-para-morrer-o-caso-de-brittany-e-o-depoimento-de-nathalie/#respond Thu, 30 Oct 2014 15:40:18 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=52 O caso da americana Brittany Maynard tem emocionado muitos ao redor do mundo e anda aquecendo a discussão sobre suicídio assistido e eutanásia. Essa jovem de 29 anos enfrenta o pior tipo de câncer cerebral, Glioblastoma Multiforme, e recebeu, em abril, o diagnóstico de seis meses de vida.

 Mas ela não quer esperar para ver. Assustada com a descrição de como seria o final da doença, se mudou para o estado de Oregon, um dos cinco dos Estados Unidos que permitem o suicídio assistido.

 Desde o início da lei “Death and Dignity” (Morte e Dignidade) no estado, 1.100 pessoas tiveram acesso às drogas letais e 750 as usaram. No ano passado, foram registradas 71 mortes assistidas. As drogas devem deixar o paciente inconsciente em apenas alguns minutos, e levar à morte em 25 minutos.

 Arthur Caplan, do centro médico da New York University disse numa entrevista à CNN que 30% dos pacientes que tem acesso à droga não a tomam, mas a utilizam como um mecanismo de segurança.

 Brittany tem os remédios em mãos e diz encontrar paz na ideia de poder escolher onde, como e ao lado de quem pretende morrer.

Em seu vídeo, com mais de nove milhões visualizações (assista aqui), ela diz sentir alívio em pensar que não precisa morrer da forma como os médicos relatam que seu câncer a levará. Decidiu morrer na sua casa, na cama que divide com o marido, ao lado dele, da melhor amiga e da mãe. Inicialmente, ela afirmou que tomaria os remédios nesse sábado, 1° de novembro.

Mas num vídeo recém divulgado (assista aqui), ela coloca a decisão em dúvida por ainda se sentir bem, apesar de perceber o avanço da doença. Nesse caso, a constatação de Arthur Caplan, sobre o uso das drogas como mecanismo de segurança pode ser procedente. Numa entrevista à revista People, Brittany disse temer esperar demais para usar os medicamentos e perder a capacidade de tomar essa decisão como resultado de uma convulsão. Ela sofre convulsões frequentes que têm se intensificado. Se ela perder a consciência em consequência de uma crise, a lei de suicídio assistido não poderá mais ser utilizada e a eutanásia (um profissional da saúde injetar os remédios nela, por exemplo) não é permitida nos EUA.

 A entidade Compassion and Choice, lançou uma campanha de apoio à jovem, com assinaturas e depoimentos em vídeo de sua família. A ONG oferece consultoria e planejamento às famílias que procuram o suicídio assistido como alternativa e buscam advogar leis sobre “morte e dignidade” ao redor dos Estados Unidos.

A história de Nathalie 

Nathalie, que preferiu não publicar seu sobrenome, nasceu no Haiti, mas sua família é Belga. Seu pai trabalhou nas Nações Unidas e por isso ela foi criada em diversos países. Um dia, veio passar férias no Brasil, conheceu o carnaval no Recife, e acabou ficando. Já se foram mais de vinte anos.

Em dezembro do ano passado, Nathalie voltou para a Bélgica para acompanhar um evento delicado, a eutanásia de sua mãe, Helena.

Helena tinha uma doença degenerativa, sofria de dores constantes e passou por três cirurgias mal sucedidas para tentar amenizar sua artrose. Em setembro do ano passado, Helena viu que não queria mais viver de uma forma não considerada por ela como qualidade de vida, e decidiu pela eutanásia, que é um procedimento legal na Bélgica. Ela queria “escolher a hora de sair de cena e morrer com dignidade”, como colocou sua filha. O processo, rigoroso e burocrático, demorou três meses, passando por juntas médicas e psicólogos. Em dezembro, Helena pode concretizar sua vontade.

Nathalie contou que a mãe era muito esclarecida em relação à questão. Seus pais sempre apoiaram a eutanásia. Fizeram parte de uma organização chamada “Morrer com Dignidade” e tinham um pacto que na hora que um dos dois decidisse, o outro iria apoiar. Eram defensores do meio ambiente, viviam sem carro por motivos ambientais e faziam compostagem. “São pessoas muito conectadas com a vida, com a vida com qualidade”, ela disse.

Os familiares mais próximos foram chamados para acompanhar a passagem de sua mãe, na sua casa. Meia hora antes do momento, Helena pediu para abrir uma garrafa de champanhe e disse estar muito feliz em poder tomar essa decisão ainda em vida. Procurou acalmar os parentes falando que aquilo seria melhor para ela. O brinde foi acompanhado de dor e choro por todos, mas Helena não se abalou e respeitou o sofrimento dos que ficavam. “Não era um clima artificial de felicidade. Estávamos muito tristes, mas respeitando sua decisão”, disse Nathalie.

Na hora combinada, profissionais da saúde injetaram remédios letais em Helena. Em alguns minutos ela ficou inconsciente e em mais ou menos uma hora, foi considerada morta. Nathalie lembra de achar o rosto da mãe sereno e ter a atitude instintiva de cobri-la com um cobertor, como se ela estivesse apenas dormindo. Helena tinha 79 anos.

Natalie nunca questionou essa decisão. Ficou triste porque achou muito duro viver sem sua mãe. Permaneceu na Bélgica mais algumas semanas para apoiar o pai, casado com Helena há mais de cinquenta anos. E depois voltou ao Brasil.

Outros familiares e amigos não concordaram com a atitude de Helena. Achavam que ela ainda podia viver bem. Mas “ela não aguentava mais viver do jeito como estava, virando um trapo de gente”, colocou Nathalie.

Ela é a favor da discussão da eutanásia e do suicídio assistido no Brasil, por considerar que se deva respeitar a vontade de cada um. “Porque são atitudes que só influenciam a vida da pessoa, você tem que poder decidir seu destino, individualmente. Quem for muito religioso e a religião não permitir, é só não fazer uso da lei. Os outros não podem impor a não-opção. Quem não quiser fazer, não faz”, disse Nathalie. Mas considera que o processo deve ser muito rigoroso, sem margem para nenhum tipo de abuso e com um acompanhamento psiquiátrico.

Quando perguntam para Nathalie do que sua mãe morreu, ela responde: eutanásia, e muitas vezes recebe reações negativas, mas isso não a impede de contar a verdade e humanizar o procedimento, como ela mesma coloca. “Não é um bicho de sete cabeças. Precisamos começar a desmitificar a eutanásia”.

O caso de Brittany é de suicídio assistido e o da mãe de Nathalie, eutanásia. A diferença básica entre eles é que, no suicídio assistido, o paciente recebe os medicamentos letais e ele mesmo os toma. Na eutanásia, permite-se que ele morra pelas mãos de profissionais da saúde, pois são eles que dão ou injetam os remédios no paciente.

Em breve, explorarei a discussão da eutanásia no Brasil. Não é um assunto fácil, mas sim complexo e necessário. Porque mesmo quem é contra o procedimento, pode se surpreender ao ver que ela já vem sendo praticada, só que não com esse nome.

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