Morte Sem Tabu https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 Dec 2021 22:32:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A última escolha de Bruno Covas https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/21/a-ultima-escolha-de-bruno-covas/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2021/05/21/a-ultima-escolha-de-bruno-covas/#respond Fri, 21 May 2021 20:45:03 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/8aeae3676dc9d396bf437a918ccf5dbb1dcaa888f91a09d337133472b6c1c7f4_60985b688961f-320x213.jpg https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=2388 Uma das últimas escolhas de Bruno Covas foi a de não se submeter a tratamentos que levassem ao prolongamento artificial  de sua vida. Para isso, ele fez uma manifestação de vontade, formalmente chamada de testamento vital, e muitas vezes registradas como tal, (conheça aqui) e recebeu tratamento paliativo.  Teve conforto na espera de uma morte natural, também chamada de ortotanásia.

Orto significa correto e  thanatos, morte.  Ela se opõe à distanásia, que é o prolongamento da vida com a ajuda de aparelhos respiratórios ou procedimentos invasivos como a entubação. Apesar de serem protocolo em diversas UTIs pelo país,  são uma opção, uma escolha que o paciente e seus familiares têm o direito de tomar.  Muitas pessoas não sabem disso e são levadas à uma distanásia sem compreenderem que se trata de uma escolha.

Do tormento à paz: a morte do meu sogro

Conheça o testamento vital

Recebemos o texto abaixo abaixo do médico paliativista André Filipe Junqueira dos Santos, ex-presidente de Academia Nacional de Cuidados Paliativos.

André é um antigo colaborador do blog. Nos conhecemos desde o início dessa jornada. Com quem aprendi muito e pude tirar dúvidas sobre essa área da medicina tão importante e cheia de informações propagadas de forma confusa, justamente por abordar um tema delicado e rodeado de tabus.

Agradecemos  o envio do texto. 

Autonomia e a abordagem dos cuidados paliativos 

Por André Junqueira dos Santos

A morte de um ente querido é um evento que todos iremos vivenciar e é parte integrante da formação da nossa personalidade. Porém, um fenômeno da sociedade é a morte de uma pessoa que não temos um relacionamento próximo, mas por ser pública, a sua finitude também pode causar grande comoção, similar a perda de um ente querido. Os relatos diários dos boletins médicos, depoimentos de amigos e as homenagens póstumas geram grande impacto e também questionamentos sobre as condições que o famoso morreu.

Um perfil de morte que tem impacto especial é a morte por câncer, ainda mais em pessoas jovens, como recentemente do prefeito de São Paulo, Bruno Covas. O tratamento oncológico muitas vezes é descrito com termos militares (arsenal terapêutico, batalha) quando a morte ocorre, mesmo em uma condição que a doença não permitiria uma recuperação,  frequentemente se diz que “perdeu a luta contra o câncer”. Essa abordagem militar no tratamento oncológico, já abordado em coluna neste blog, tem um impacto negativo nos pacientes e pode expô-los a tratamentos excessivos, com prejuízo na sua qualidade de vida e a um sofrimento evitável na fase final da vida.  

Assim, a morte passa a ser entendida como falha da medicina e não como parte integrante da vida. A visão da morte como um erro da medicina, um insucesso de um tratamento, gera uma expectativa inalcançável, e assim, ansiedade, frustração e cobranças por parte da população e dos próprios médicos. Esses conceitos reduzem a medicina ao objetivo único de  curar a doença. Reduz-se ou mesmo ignoram-se outros objetivos não menos nobres e, sem dúvida, mais importantes, como o de cuidar do sofrimento do ser humano doente. Qualquer médico, por menor tempo de exercício da profissão, consegue depreender que na realidade é a menor parte dos doentes que são curados.

Diante desse impacto, é fundamental a abordagem dos cuidados paliativos. Porém, precisamos entender como ele deve ser oferecido e a autonomia do paciente nessa decisão. Os cuidados paliativos modernos surgiram na Inglaterra na década de 1960, na figura da médica Cicely Saunder, que trouxe a visão de um cuidado de saúde integral para pacientes em situação de fim de vida. No Brasil, os primeiros profissionais de saúde que trouxeram essa visão começaram seu trabalho na década de 1980. No final do século 20, existia uma discussão sobre quando oferecer Cuidados Paliativos, diante de grandes avanços da medicina. Em 1989, a OMS (Organização Mundial da Saúde) definiu pela primeira vez para 90 países e em 15 idiomas o conceito e os princípios de cuidados paliativos, reconhecendo-os e recomendando-os. Tal definição foi inicialmente voltada para os portadores de câncer, preconizando os cuidados paliativos após esgotados todos os recursos para tratamento curativo da doença. O problema é que diante de novos tratamentos e melhoria das condições de saúde, esse momento de suspensão do tratamento não pode ser considerado um ponto claro, podendo ser mantido até o momento da morte em si, o que associou erroneamente a visão de Cuidados Paliativos como “quando há mais nada o que se fazer”. Diante de críticas pela visão limitante, em 2002, o conceito foi revisto e ampliado, incluindo a assistência a outras doenças como AIDS, doenças cardíacas, pulmonares, renais, doenças degenerativas e doenças neurológicas. O conceito atual da OMS amplia o horizonte de ação dos cuidados paliativos, podendo ser adaptado às realidades locais, aos recursos disponíveis e ao perfil epidemiológico dos grupos a serem atendidos:

“Cuidado paliativo é uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual”. (OMS 2002, atualizado em 2017)

Dessa forma, os cuidados paliativos devem ser oferecidos em conjunto com o tratamento modificado da doença. Cuidados paliativos não competem com tratamentos de doença. Tampouco estão reservados para o final da vida. Podem e devem ser oferecidos de forma integrada aos tratamentos, conferindo uma camada a mais de suporte e proteção à jornada de pacientes e familiares por meio do curso de doenças graves.  No caso do câncer, a Sociedade de Oncologia Clínica dos Estados Unidos recomenda desde de 2017 que pacientes hospitalizados e ambulatoriais com câncer avançado devem receber cuidados paliativos especializados, precocemente no curso da doença, paralelo ao tratamento ativo. Cabe à equipe médica que atende o paciente oferecer essa proposta e alinhar então com a autonomia do paciente, expressada através de seus valores e desejos, buscando-se uma decisão compartilhada. A tomada de decisão conjunta é um componente-chave dos cuidados de saúde centrados no paciente. É um processo no qual médicos e pacientes trabalham juntos para tomar decisões e selecionar testes, tratamentos e planos de cuidados com base em evidências clínicas que equilibram os riscos e os resultados esperados com as preferências e valores do paciente.

Em muitas situações, não existe uma única decisão “certa” sobre cuidados de saúde, porque as opções sobre tratamento, exames médicos e problemas de saúde têm prós e contras. A tomada de decisão compartilhada é especialmente importante nesses tipos de situações:

  • quando houver mais de uma opção razoável, como para triagem ou uma decisão de tratamento
  • quando nenhuma opção tem uma vantagem clara
  • quando os possíveis benefícios e malefícios de cada opção afeta os pacientes de maneira diferente

Nessa visão, cabe à equipe médica oferecer as melhores opções terapêuticas e apoiar o paciente na sua tomada de decisão, não devendo fazer questionamentos de âmbito pessoal. O paciente tem direito de priorizar medidas para tentar prolongar ao máximo sua condição de vida, como também limitar o tratamento, buscando priorizar a qualidade do tempo que tem pela frente.

No caso de Bruno Covas, houve uma grande comoção sobre sua condição de saúde nos últimos dias e a descrição dos tratamentos realizados. O mesmo demonstrou até poucos dias antes de sua morte plena consciência e teve a oportunidade de manifestar para sua equipe que, diante de situação irreversível, não gostaria de receber tratamentos para prolongar o seu tempo de vida com o uso do suporte artificial.. Essa mesma visão foi manifestada pelo seu avô, Mario Covas. Em 1999, o então governador em exercício sancionou no Estado de São Paulo a Lei estadual 10.241 , conhecida como Lei Mário Covas, que garante ao paciente o direito de “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”. O avó de Bruno Covas, em 2001, diante do quadro do câncer de bexiga em fase avançada recusou tratamentos de suporte artificial de vida para prolongar o seu tempo de vida.

A discussão desses valores não cabe somente a profissionais de saúde, mesmo especialistas em cuidados paliativos. Promover a autonomia do paciente, oferecer os melhores tratamentos baseados no conhecimento científico alinhado com conceitos éticos deve ser base fundamental de uma sociedade justa e mais humana.

André Filipe Junqueira dos Santos, médico geriatria e paliativista

Ex-presidente de Academia Nacional de Cuidados Paliativos (2019-2020)

André Junqueira – arquivo pessoal

 

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A vontade do paciente deve prevalecer sobre a do médico e a da família? https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/12/a-vontade-do-paciente-deve-prevalecer-sobre-a-do-medico-e-a-da-familia/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/12/a-vontade-do-paciente-deve-prevalecer-sobre-a-do-medico-e-a-da-familia/#respond Wed, 13 Dec 2017 00:09:02 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1454 A Federação dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (FEHOESP) divulgou nesta terça-feira (12) os resultados de uma pesquisa inédita. A Federação queria saber a opinião da sociedade sobre o testamento vital e descobriu algo que pode parecer óbvio, mas é bem complexo.

Para 96,4% dos 716 participantes, a vontade do paciente deve prevalecer sobre a do médico e a da família. Ou seja, as vontades expressas em um documento como o testamento vital devem prevalecer sobre os desejos de todos e entendidas como válidas. Hoje, ele é aceito informalmente, mas não tem proteção legal.

Um testamento vital tem o objetivo de registrar vontades relativas a tratamentos médicos em caso de doenças fora de perspectivas de cura.Ele não é apenas destinado a garantir a suspensão de procedimentos, como a não reanimação ou não ser submetido a certas cirurgias. Também pode ser usado justamente para garantir essas intervenções, contanto que seja a vontade expressa do paciente. A nomenclatura é emprestada do “living will” da língua inglesa, que se refere mais a um “desejo em vida” do que a um testamento em si. O “will” foi traduzido como testamento gerando uma leve confusão.

Ele faz parte das Diretivas Antecipadas de Vontade, assim como o mandato duradouro – a nomeação pelo paciente de um procurador para tomar decisões em seu nome, e pode ser feito por qualquer pessoa acima de 18 anos que não tenha sido interditada, apesar de só ter efeitos na eventualidade de uma doença terminal.

Amparada pela pesquisa, a FEHOESP irá propor um anteprojeto de lei ao Congresso Nacional que garanta segurança jurídica a documentos como o testamento vital.

O presidente da FEHOESP, o médico Yussif Ali Mere Jr, diz que falta respaldo legal para os médicos cumprirem os desejos do paciente sem que corram riscos de processos judiciais. Isso tornaria a fase final da vida ainda mais complicada, com conflitos que podem ser “minimizados” com documentos como esse.

À primeira vista, pode parecer óbvio que a vontade do paciente deva ser a mais importante de todas. Mas os exemplos demonstram a complexidade do tema, como o caso do José Humberto. O menino de 23 anos não quer mais fazer hemodiálise, o tratamento indicado para a doença renal crônica que tem desde 2015. Ele alega sofrer muito durante o procedimento e busca uma morte que ele chama de “digna”, sem sofrimento.

Sua mãe, inconformada, apelou à Justiça para obrigar o filho a manter o tratamento. Ela ganhou a causa, mas não pode usar força ou sedativos, o que, na prática, significa que ele provavelmente não o fará. A Folha organizou uma enquete, perguntando aos leitores se José Humberto tinha direito a essa recusa. Dos 3905 votos, 86% foram favoráveis a ele.

O Conselho Federal de Medicina prevê essa autonomia e diz que nenhum paciente pode ser obrigado a se tratar. Eu também sou mãe e não consigo imaginar a dor de ver um filho definhar. Mas preciso admitir que eu já enfiei remédio goela abaixo do meu filho de 3 anos, totalmente contra a vontade dele. Mesmo se ele tivesse 18 anos, seria muito difícil eu aceitar o seu “não”, ainda que em algum momento eu imagino que entenderia que aceitar é, acima de tudo, respeitar. (me desculpem a dramatização pela rima, não resisti).

Mas esse caso específico parece remeter a um outro ponto, o da judicialização das relações. Quem comentou essa questão foi a advogada Luciana Dadalto, especializada em testamento vital, que participou comigo de um evento na penúltima quinta-feira, no Sesc Ipiranga, parte do ciclo “Finitudes” e apresentou os resultados da pesquisa da FEHOESP na coletiva de imprensa desta terça-feira (12).

A mãe de José Humberto buscou o apoio do Justiça porque não conseguiu se comunicar com o filho. O exercício da escuta e da empatia falhou.

Isso se reflete em diversas esferas. Segue também uma judicialização do amor. Duas pessoas que se amam ou que já se amaram buscam um árbitro para chegar a um lugar comum. Ninguém quer ceder e nos sentimos impotentes para levarmos adiante negociações.

O testamento vital aponta para um caminho diferente porque ele não existe para intermediar relações, mas para que o paciente possa deixar explícito os tratamentos que ele quer, e os que ele não quer, no final da vida, caso não esteja consciente para tomar decisões.

Eu defendo que cada um possa definir sobre sua morte nessa etapa final e também sou a favor da ortotanásia, o chamado processo da morte natural, sem interferências da tecnologia. A morte com entubação, na UTI, com respiração e alimentação artificial é uma morte com o amparo da tecnologia. Da mesma forma que podemos nascer de parto natural ou cesariana, podemos morrer naturalmente ou com acesso a todos esses apetrechos. O lado negativo dessa realidade é que a UTI é um ambiente solitário, desconfortável e frio. A própria necessidade de esterilização não permite visitas prolongadas. É, também, uma morte inconsciente, em sua grande maioria. Os pacientes morrem sedados, sem poder fazer escolhas em seus últimos dias de vida.

Aqui, lembro de uma frase da geriatra Ana Claudia Arantes, que virou título de seu livro: a morte é um dia que vale a pena viver. Lembro, também, da paliativista Maria Goretti, indicando que no hospital, somos pacientes, enquanto que, fora dele, permanecemos como pessoas. Essa é a luta dos cuidados paliativos, olhar cada um como um ser inserido em uma realidade psicossocial. Por isso é tão importante o debate sobre políticas públicas voltadas para cuidados paliativos e o acesso a opiódies (remédios para a dor) mais modernos, inexistentes no Brasil.

Mesmo ressaltando essa tendência da judicialização das relações, acredito que uma lei que proteja o testamento vital é necessária, por intermediar um conflito muitas vezes impossível, que nasce da relação médico-paciente-família. Se não, vamos acabar como o homem dessa reportagem aqui, desesperados, com uma tatuagem enorme no peito: “Do Not Resuscitate”.

Entenda o que é o testamento vital na seção “testamento vital” do blog.

Recomendo: É melhor morrer em casa ou no hospital?

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Visita à Dignitas https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/visita-a-dignitas/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2017/12/11/visita-a-dignitas/#respond Tue, 12 Dec 2017 01:33:50 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1452 A Suíça permite, por lei, o suicídio assistido. Algumas instituições se especializaram no procedimento, como a “Dignitas” e a “Exit” , o que trouxe a má fama de “turismo da morte” ao país, por atrair pessoas do mundo todo em busca de uma morte assistida. Alguns países autorizam o suicídio assistido, mas não a eutanásia. Na eutanásia, um profissional de saúde ministra a substância letal no paciente, enquanto o suicídio assistido prevê que a pessoa tome a substância de forma independente. Em estágios avançados de algumas doenças, essa autonomia não é possível, o que inspira discussões comuns ao tema.

Esse debate não chegou ao Brasil e arrisco dizer que ainda não temos condições de fazê-lo sem discutir, antes, uma política nacional de cuidados paliativos. Talvez, um levante o outro e isso pode ser positivo. Mas em outros países ele caminha rápido, como nos Estados Unidos, que já contempla cinco estados com leis nesse sentido, a França e o Canadá. Holanda e Bélgica foram os pioneiros e são ainda mais polêmicos por permitirem suicídio assistido em função de distúrbios mentais, como depressão. É importante ressaltar que essa opção é defendida como uma ferramenta de prevenção e combate ao suicídio, já que muitos desistem de morrer depois de passarem pelo longo processo exigido por lei (leia mais aqui).

A revista “The Economist” já se posicionou a favor do suicídio assistido e considera sua legislação uma questão de tempo. Os documentários a respeito são desconcertantes como o “Choosing to Die”, que é filmado, em parte, na “Dignitas”.

A advogada Luciana Dadalto, fundadora do portal “Testamento Vital”, visitou à Dignitas e escreveu sobre sua experiência. Segue seu relato, abaixo:

Leia mais sobre esse tema na seção: Eutanásia e Suicídio Assistido.

Recomendo: Conheça a filosofia Hospice e os Cuidados Paliativos clicando aqui.

Minha visita à Dignitas

Por Luciana Dadalto

Em 14 de setembro de 2017, vivi uma das maiores experiências acadêmicas da minha vida. Fui a “DIGNITAS – Viver com dignidade – Morrer com dignidade” (ao longo do texto vou chamá-la apenas de Dignitas), a organização mais conhecida no mundo em prol do direito à escolha acerca dos desejos no fim de vida.

Você deve estar pensando “como você teve a coragem de seguir Dignitas”? “Que coisa mórbida”. Além de ser tentado a fazer piadas como “você se atreveu a beber água lá?” Sim! Eu tive a coragem de ir para Dignitas e eu voltaria lá mil vezes se me acolherem e eu vou te dizer por que:

Em 15 de setembro de 2017, lancei o livro “Tratado Brasileiro sobre o Direito Fundamental à Morte Digna” na Universidade de Lisboa, em Portugal. Sabendo de minha viagem à Europa, decidi visitar Dignitas, mas fiz uma resolução unilateral e não contei a eles.

Sim, foi uma loucura. Eu tive a ideia, contei para minha sócia (e grande amiga) e ela me presenteou com as passagens aéreas de Lisboa a Zurique, pensando que eu já tinha contatado Dignitas, acontece que eu, ingenuamente, pensei que seria possível entrar em contato poucos dias antes… As passagens foram compradas em 29 de agosto e em 30 de agosto enviei meu primeiro e-mail para a Dignitas. Mas, recebi uma resposta dizendo que a visita não era possível. E eu comecei minha saga. Eu insisti, enviei vários e-mails, enviei meu currículo em inglês, liguei para lá mais de 7 vezes em um único dia, e no dia 07 de setembro recebi sua aceitação.

Antes de tudo, tenho que lhes dizer que tive muita sorte. A Dignitas não é um lugar aberto aos visitantes e ao contrário do que eu imaginei (e ao contrário do que a mídia nos diz), não é uma clínica. A Dignitas é uma sociedade sem fins lucrativos que defende, educa e apoia a melhoria dos cuidados e as tomadas de decisões autônomas no fim da vida, uma organização cujo principal objetivo é implementar a liberdade de escolha e autodeterminação em questões de vida digna e morte em todo o mundo. Não é um hospital, um hospice, uma clínica, um consultório médico ou algo assim. Não há médicos empregados na Dignitas.

A configuração que eu encontrei foi: mesas, cadeiras, telefones, arquivos e pessoas trabalhando – assim como qualquer escritório em qualquer lugar do mundo. Não havia nada mórbido, nem mau tempo …

Passei cerca de duas horas conversando com um dos membros do conselho, um advogado, responsável pela Dignitas hoje e, embora muitas das minhas duvidas tenham sido respondidas em seu site (www.dignitas.ch), na verdade, teve uma emoção extra.

Eu podia ver como a informação recebida está mal representada. O suicídio assistido é apenas uma das obras da Dignitas. Mas a maior – e o mais importante deles – é a informação e a educação sobre a qualidade de vida, a escolha e a morte digna, incluindo a importância das pessoas que ganhavam a vida (sim, meus pequenos olhos brilhavam). Eu ouvi algumas vezes que eles acham que a discussão sobre liberdade de escolha e autodeterminação em questões de vida e morte digna socialmente mais relevante do que a discussão sobre suicídio assistido.

Percebi o valor da autonomia do paciente. E vi, na prática, quão burocrático é para um estrangeiro ter acesso ao suicídio assistido na Dignitas. O chamado “turismo da morte” está longe de ser um oásis. Dignitas tem um rigor imenso que precede a realização do suicídio assistido e, para ter uma ideia, o período mínimo entre a candidatura, a adesão a Dignitas e a realização do suicídio assistido é é de no mínimo, três a quatro meses. Então, não apenas diga “Eu quero morrer em Dignitas”, eles têm um lema: pensar, ler e depois agir. Ou seja, se você se interessar pela matéria, leia a grande quantidade de material no site da Dignitas. Somente após a pessoa ter certeza de que compartilha os mesmos valores da Dignitas, ela pode se tornar um membro e, eventualmente, realizar suicídio assistido se cumprir os critérios legais.

Em outras palavras, é necessário passar por um longo processo de envio e análise de documentos (todos oficialmente traduzidos para inglês, alemão, francês ou italiano) e, em uma etapa posterior ao procedimento de avaliação, duas consultas com um médico suíço ( que não tem ligação com Dignitas), que deve certificar a gravidade da doença, bem como o discernimento do paciente.

Ao contrário do que ouvi falar de muitas pessoas, Dignitas não é uma “máquina da morte”, mas uma instituição que defende o direito à autodeterminação e escolha na vida e uma morte digna, dentro da lei do país em que se baseia (Suíça) e todo o procedimento é feito de acordo com critérios legais.

E, não, não vi ninguém morrer. Mas eu vi pessoas que lutam dentro dos limites legais para garantir a autonomia de fim de vida dos pacientes até o último momento. E fiquei muito grata pela oportunidade. Então compartilho essas linhas com você com a permissão da Dignitas.
Abraço,
Luciana.

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Após regulamentação, cresce 771% o número de testamentos vitais lavrados no Brasil https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/31/apos-regulamentacao-cresce-771-o-numero-de-testamentos-vitais-lavrados-no-brasil/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2016/08/31/apos-regulamentacao-cresce-771-o-numero-de-testamentos-vitais-lavrados-no-brasil/#respond Wed, 31 Aug 2016 17:03:21 +0000 https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/files/2016/08/image-180x65.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=1087 Testamento vital é uma nomenclatura emprestada do “living will” da língua inglesa, que se refere mais a um “desejo em vida” do que a um testamento em si. O “will” foi traduzido como testamento gerando uma leve confusão. Ele é uma ferramenta para manifestar vontades sobre tratos médicos no final da vida, no caso de estarmos inaptos a tomarmos decisões ou a nos comunicarmos perante uma doença fora de perspectivas de cura. Portanto, não tem a ver com sucessão patrimonial como os testamentos. Mas o nome pegou.

Além do registro de procedimentos médicos, é possível inserir informações relativas a enterro, velório, destino para as cinzas, etc – que também podem ser registradas em um outro documento, chamado codicilo. A menção da vontade pela doação de órgãos ainda é polêmica, já que, no Brasil, a lei de doação reconhece ser uma decisão da família e não do paciente.

O testamento vital faz parte das Diretivas Antecipadas de Vontade, assim como o mandato duradouro – a nomeação pelo paciente de um procurador para tomar decisões em seu nome, e pode ser feito por qualquer pessoa acima de 18 anos que não tenha sido interditada, apesar de só ter efeitos na eventualidade de uma doença terminal.

O documento pode expressar a opção por não ser reanimado, não ser submetido a certas cirurgias ou a tratamentos para prolongamento da vida de modo artificial, evitando certos procedimentos. Também pode servir justamente para garanti-los. A questão central é seguir a vontade expressada pelo paciente enquanto ele ainda estava em plena capacidade de juízo crítico e de comunicação.

Segundo o Colégio Notarial do Brasil, o número de testamentos vitais lavrados no país cresceu em 771% após a Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM) – que constata a obrigação dos médicos em aceitar o documento como legítimo e levar em consideração a vontade do paciente incapacitado de comunicar-se. É necessário respeitar as disposições do Código de Ética Médica, por isso o documento não pode prever eutanásia (considerada crime no Brasil).

Um ano antes da regulamentação, os cartórios de notas brasileiros haviam lavrado apenas 79 documentos. Em 2015, foram 668. Destaque para São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, os estados que mais realizaram esse tipo de documento.

“Qualquer pessoa plenamente capaz pode fazer seu testamento vital perante um tabelião de notas. Basta apresentar seus documentos pessoais e declarar que tipo de cláusulas deseja incluir. A escritura será apresentada posteriormente aos médicos pelos familiares ou por quem o declarante indicar caso futuramente ele seja acometido por uma doença grave ou fique impossibilitado de manifestar sua vontade em decorrência de algum acidente”, explica o presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo, Andrey Guimarães Duarte.

O preço desse documento em São Paulo é de R$ 361,59 e pode variar de estado para estado.

O Colégio Notarial lista 10 motivos para se fazer um testamento vital e registrá-lo em cartório:

Dignidade

Permite que o paciente escolha previamente a que tipo de tratamento médico deseja ou não ser submetido, preservando o direito à vida e morte dignas.

Tranquilidade

Não antecipa a morte do paciente (eutanásia), apenas garante que ela ocorra de modo natural ou permite o seu retardamento, conforme a vontade do paciente.

Respeito

Feita por escritura pública gera tranquilidade ao paciente de que a sua vontade será respeitada quando ele não puder mais se manifestar.

Paz

Proporciona maior conforto e menos sofrimento para a família do paciente no momento de dor.

Segurança

A escritura pública oferece maior segurança para o médico cumprir integralmente os desejos do paciente, resguardando-o contra eventuais pressões de seus familiares.

Autonomia

Pode ser feita por qualquer pessoa, a qualquer tempo, desde que ela esteja lúcida e consiga expressar a sua vontade quanto ao destino de seu próprio corpo.

Lealdade

É possível nomear um procurador para ficar responsável por apresentar aos médicos e à família do paciente, os desejos e escolhas antecipadamente feitas por ele.

Revogabilidade

Pode ser alterada ou revogada a qualquer tempo, desde que o paciente esteja lúcido.

Perpetuidade

Fica eternamente arquivada em cartório, possibilitando a obtenção de segunda via (certidão) do ato a qualquer tempo.

Liberdade

É livre a escolha do tabelião de notas qualquer que seja o domicílio da parte.

Eu preciso ressaltar que a escritura pública não garante o cumprimento do documento, apesar de com certeza aumentar as chances dele ser seguido.

Luciana Dadalto, uma porta-voz do tema, já me disse que a resolução do Conselho de Medicina é insufiente, por apenas se referir às responsabilidades dos médicos e não levar em consideração outros profissionais de saúde como os enfermeiros. Também não garantiria uma validade legal ao documento. “Sempre vai cair no arbítrio do poder judiciário, por não haver uma legislação específica. Um juiz poderá falar que é válido e outro que não é”, ela diz.

É primordial a escolha de um médico que, desde já, se coloque como alguém que alimenta um canal de comunicação sobre a morte, seu posicionamento acerca da morte natural, da sedacão terminal, da internação na UTI, sem tabus, e seja reconhecido por respeitar as vontades expressas em um testamento vital.

Leia mais sobre esse tema em:

Testamento vital no blog Morte sem Tabu.

 

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Brasileiros aderem a documento que guia tratamentos no final da vida https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/12/22/brasileiros-aderem-a-documento-que-guia-tratamentos-no-final-da-vida/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/12/22/brasileiros-aderem-a-documento-que-guia-tratamentos-no-final-da-vida/#respond Tue, 22 Dec 2015 11:39:02 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=798 O testamento vital tem atraído mais atenção daqueles preocupados com autonomia no final da vida. O documento tem o objetivo de registrar vontades relativas a tratamentos médicos em caso de doenças fora de perspectivas de cura.

Ele não é apenas destinado a garantir a suspensão de procedimentos, como a não reanimação ou não ser submetido a certas cirurgias. Também pode ser usado justamente para garantir essas intervenções, contanto que seja a vontade expressa do paciente.

Faz parte das Diretivas Antecipadas de Vontade, assim como o mandato duradouro – a nomeação pelo paciente de um procurador para tomar decisões em seu nome, e pode ser feito por qualquer pessoa acima de 18 anos que não tenha sido interditada, apesar de só ter efeitos na eventualidade de uma doença terminal.

O portal testamentovital.com.br oferece um banco de dados para cadastro desse tipo de documento. Ele é on-line, gratuito e gera um código de acesso que pode ser compartilhado com uma pessoa de confiança do solicitante.

Criado em 2013, teve seus registros triplicados em um ano, de 20 para 60. Sua administradora, a advogada e doutora em ciências da saúde, Luciana Dadalto, estuda o tema desde 2008, com quatro livros publicados. Ela comenta que, no Brasil, estamos muito atrasados no que diz respeito a liberdades individuais. “A principal importância do testamento vital é transferir para o paciente um direito que é dele, que é a decisão sobre como viver seus últimos dias de vida”, diz.

Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil, até novembro desse ano, o cadastro de testamentos vitais em cartório no país cresceu 21% em relação ao ano passado. Em 2010, apenas 50 documentos foram registrados. Em 2015, esse número passou de 600 no ano. Um fator determinante para esse aumento foi a regulamentação 1.995 do Conselho Federal de Medicina, de 2012, que constata a obrigação dos médicos em aceitar o documento como legítimo.

Para Dadalto, ela é insuficiente, por se referir apenas às responsabilidades dos médicos, excluindo qualquer outro profissional de saúde, e não garantir uma validade legal ao documento. “Sempre vai cair no arbítrio do poder judiciário, por não haver uma legislação específica. Um juiz poderá falar que é válido e outro que não é”, diz.

Algumas dificuldades para sua popularização seria a dificuldade de se falar a respeito. Para a advogada de família Renata Guimarães, alguns brasileiros demonstram um entrave cultural para lidar com questões terminais que podem anteceder o falecimento, ao sentir que pensar sobre a morte representa um mau agouro. Ela também cita a real dificuldade de cogitar e lidar objetivamente com doenças agudas e irreversíveis. Algo menos latente em seus clientes estrangeiros, inclusive porque há países que possuem lei específica sobre o testamento vital.

A advogada diz perceber um aumento significativo nos últimos três anos de documentos nesse sentido – escrituras públicas ou escritos particulares.

“Tais documentos têm por foco a situação de incapacidade civil de uma pessoa, e costumam abordar a gestão do patrimônio, cuidados pessoais e de saúde e diretrizes de não manutenção artificial de vida em casos terminais e irreversíveis. Já a forma de enterro, velório ou cremação costumam ser descritas em outro documento, denominado codicilo”, define Guimarães.

Dadalto considera a inserção de doação de órgãos no testamento vital uma questão polêmica, porque a lei de doação no Brasil o reconhece como uma decisão da família e não do paciente.

Alerta no RG

Neuza Guerreiro de Carvalho anda com seu testamento vital na bolsa. No RG há um recado: “na pasta cor-de-rosa da bolsa está meu testamento vital”. Aos 85 anos, ela prefere definir o que seja feito com seu corpo, caso esteja inconsciente. Quer seguir de acordo com suas próprias escolhas, tanto na vida quanto na morte. Professora de biologia por 30 anos, ateia, evolucionista, diz que já está na reta de chegada. “Bonita ou não, é a reta de chegada. Não tenho mais do que 10 anos de vida útil”, diz.

Decidiu pela doação do corpo para estudos acadêmicos e já tem os papéis preenchidos no Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Doou o cérebro de sua mãe para a faculdade de medicina da USP e diz ver nessas ações uma forma de cidadania. Não quer em ser enterrada, nem velada. “Tudo o que fica está assimilado na gente”, comenta.

Vovó Neuza, como gosta de ser chamada, tem seu testamento vital assinado pelos dois filhos, com firma reconhecida. Além de sempre o carregar na bolsa, o documento foi incluído em seu prontuário no Hospital das Clínicas, porque ela considera que será atendida lá em alguma emergência.

Não abre mão de sua decisão. “Eu sou muito fria nisso e minha própria formação ajuda nesse sentido. Eu sei, por exemplo, que num acidente qualquer, numa emergência, vão perguntar para quem estiver comigo: entuba ou não entuba? Eu estou dizendo nesse documento: não entuba. Porque depois de dois anos, seja lá quantos anos for, ninguém vai ter coragem de desentubar (o termo médico utilizado é extubar) e aí fica aquela confusão”.

Vovó Neuza trabalha com oficinas de resgate de memória no projeto “Amigo do Idoso” do Hospital Universitário (HU-USP). A ação foca em objetos que marcaram a vida da pessoa. Para ela, o sofá de sua casa, todo florido, é um objeto de memória precioso, com seus mais de 60 anos de história ao lado (ou embaixo) de Neusa . “É um objeto biográfico meu. Eu posso ir morar em outro lugar, mas se não couber o sofá, não tem conversa. Esse vai me acompanhar para o resto da vida”.

A professora se aposentou aos 50 anos, porque quis sair do trabalho ainda quando estava no auge. Ela diz querer o mesmo da vida: “Eu quero sair bem da vida”.

Atualização em 23 de dezembro

O Colégio Notarial do Brasil enviou o complemento abaixo sobre o assunto abordado na matéria, salientando diferenças entre o registro do documento em cartório do registro em um banco de dados virtual.

“Entendemos importante ressaltar que qualquer documento pode ser contestado na Justiça, tanto a escritura pública quanto o instrumento particular.

É relevante salientar também que os juízes vêm acatando frequentemente a vontade expressa nas escrituras públicas. Além disso, gostaríamos de expor outros pontos do porquê as escrituras possuem mais segurança jurídica comparadas ao banco de dados privados citado na reportagem e ao instrumento particular.

  • A perpetuidade alcançada pela forma pública, na medida em que fica para sempre no livro de notas.
  • A comunicação à central notarial, que pode facilitar o encontro de eventual testamento vital lavrado.
  • A força da central notarial como forma de gerar estatísticas públicas.
  • A capilaridade dos cartórios, podendo atender o cidadão em qualquer cidade do país.
  • A segurança do médico em saber numa questão duvidosa qual caminho pode ser adotado.

É importante ressaltar ainda a fé pública do tabelião, que além de segurança jurídica, tem como parte inerente ao seu trabalho a imparcialidade, por exemplo, podendo relatar as condições de saúde do solicitante ao testamento vital. Note que uma pessoa pode se cadastrar nesse banco virtual sem o gozo de suas capacidades mentais adequadas. No cartório isso não aconteceria”.

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Vovó Neuza. Marcus Leoni/Folhapress
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França aprova a sedação terminal e o cumprimento obrigatório do testamento vital https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/03/19/franca-aprova-a-sedacao-terminal-e-o-cumprimento-obrigatorio-do-testamento-vital/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2015/03/19/franca-aprova-a-sedacao-terminal-e-o-cumprimento-obrigatorio-do-testamento-vital/#respond Thu, 19 Mar 2015 14:45:20 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=425 Nesta terça feria (17), a França aprovou a sedação terminal, ou seja, sedar o paciente de forma “profunda e contínua” até sua morte. O texto passou pelo Parlamento francês com 436 votos a favor, 34 contra e 83 abstenções e  precisará ser considerado pelo Senado. Mas, na França,  a decisão da Assembléia Nacional normalmente é definitiva.

A proposta está alinhada com as propostas do presidente François Hollande, que prometeu em seu programa de campanha de 2012, que “toda pessoa maior de idade, em fase avançada ou terminal de uma doença incurável que provoque sofrimento insuportável físico ou psíquico, que não pode ser amenizado, possa pedir, em condições precisas e estritas, uma assistência médica para terminar sua vida com dignidade”.

A sedação poderá ser usada apenas no caso de doenças ameaçadoras de vida no curto prazo (com prognósticos de pouco de tempo de vida), e será decidida pela equipe médica junto aos familiares do paciente ou requisitada pelo próprio paciente se estiver em plena capacidade de juízo critico.

A proposta de lei não menciona eutanásia ou suicídio assistido, como a promessa de campanha do presidente deu a entender que indicaria, e não permite a possibilidade de injeções letais. Ela distingue-se da eutanásia por considerar que se está induzindo a pessoa a dormir e não a morrer (como aconteceria se fosse administrado diretamente um remédio letal, prática comum nos países que permitem a eutanásia). Mas o limiar entre as duas coisas é complexo. Durante essa sedação, pode se retirar tratamentos médicos, incluindo alimentação e hidratação, até que o paciente morra. Por isso, pode ser considerado uma “eutanásia passiva”. Este método abre brechas aos defensores da eutanásia para afirmarem que o processo pode causar sofrimento ao paciente (como morrer de fome) e assim, a eutanásia poderia ser considerada um caminho mais “humano”, pois o aliviaria desse possível sofrimento.

Um ponto importante da proposta de lei é tornar obrigatório o cumprimento do testamento vital, um documento que explicita manifestações de vontades sobre tratamentos no final da vida, caso o paciente não tenha condições de se expressar. Pode-se indicar o desejo para não ser ressuscitado e não ter aparelhos que sustem a vida artificialmente, como respiração artificial e alimentação, por exemplo.

A questão do uso da tecnologia para manter a vida me lembrou o depoimento da médica, Milena Reis, no post A tal da boa morte. Para Milena, discute-se muito a possibilidade do parto humanizado, sem intervenções da tecnologia como a cesárea. Da mesma forma, deveríamos discutir a morte humanizada, sem essas intervenções que podem ser impedidas de acontecerem via um testamento vital, caso o paciente já não tenha mais consciência para esse tipo de decisão.

A economista Elca Rubinstein, ex-professora da USP e da UNB e doutorada nos Estados Unidos, quer lutar por seus direitos no que se refere ao morrer. Estimulada a fazer um testamento vital durante um curso nos Estados Unidos (chamado “From aging to Saving” – do envelhecimento à sabedoria), ela diz ter sentido dificuldade em pensar sobre sua finitude, mas ficou impressionada com a possibilidade de definir o que pode ser feito e o que não pode ser feito com seu corpo no fim da vida, caso não se esteja em estado consciente para decidir. Elca elaborou um testamento vital, que mantém guardado em um zip-log dentro do freezer de casa e está entrando com uma ação judicial para fazer com que tenha valor jurídico. Ela acionou a mesma advogada de um caso recente, Rosana Chiavassa, que ganhou na Justiça o direito de ter seu testamento vital cumprido por lei e assim ter o que ela considera ser uma morte digna e poder deixar o corpo morrer naturalmente, num processo chamado ortotanásia.

Seu objetivo é abrir precedentes para que o testamento vital seja considerado um documento legal no Brasil.

Elca afirma que “o testamento vital é uma porta pra você começar a ter uma conversa com você mesmo, com sua família, filhos, amigos, médicos e advogado”.

“Depois que o fiz, me senti de bem com a morte, porque o medo de perder a dignidade ao morrer, passou. Se houver uma passagem, eu quero entrar nessa passagem sem ter que ficar até o final, segurada por uma tecnologia médica que nada tem a ver com dignidade”, Elca diz.

Em 42 estados dos Estados Unidos, um documento chamado “Five Wishes” tem valor legal e funciona como um testamento vital. Mas ao invés de ser um documento em branco para se colocar manifestações de vontades, ele indica perguntas que devem ser respondidas, facilitando a reflexão e a tomada de decisão. Aborda questões pessoais, emocionais, espirituais, além das médicas. Nele, pode-se indicar a pessoa que tomará as decisões por você, caso não o possa, como gostaria de ser tratado e o que se deseja que os entes queridos saibam.

Elca menciona quatro razões para se fazer um testamento vital.

1- Físicas

“Se eu estiver morrendo, quero morrer em casa, com as pessoas e coisas que gosto, sem milhões de tubos, nem práticas e tratamentos que prolonguem o sofrimento quando o corpo estiver pronto para partir”.

2- Filosóficas

“Muita gente diz que não vale a pena se preocupar com os momentos finais da vida, porque tudo acaba ali. Eu não concordo. Acho que a morte é uma passagem e por isso é importante fazê-la de bem com tudo o que fui e com o que posso vir a ser”.

3- Financeiras

“Um tratamento para prolongar o final pode ter custos altíssimos e dilapidar o pequeno patrimônio que eu juntei para deixar aos meus filhos.  É preciso olhar o custo-benefício por todos os ângulos”.

4- Informação

“Hoje existe um instrumento, que é o testamento vital, que me permite expressar antecipadamente o que quero e o que não quero”.

Deixo aqui uma curta animação indicada por Elca, “A Dama e a Morte” que representa para ela a possibilidade de morrer quando ela achar que está pronta para isso, sem ser submetida a vários tratamentos e tecnologias que prolonguem sua vida sem sua vontade.

Tudo isso me remete à uma pergunta veterana aqui do blog: o que é uma boa morte? Não conheço alguém que voltou de lá para contar, mas continuamos aqui refletindo e acredito que seja benéfico colocar-se em pauta, no Brasil, a discussão sobre “morte digna” e assim tornar mais claro o significado e os desdobramentos desse emaranhado de conceitos como ortotanásia, eutanásia, distanásia, suicídio assistido, testamento vital, cuidados paliativos, enfim, essas referências que muitas vezes não são claras nem para os médicos que tratam do paciente terminal.

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Permissão para morrer – o depoimento de NathalieUm dia para morrer – a discussão no BrasilBioética da beira do leitoTestamento vitalA tal da boa morte

Atualização em 20.03 – A sedação paliativa

Recebi um e-mail do médico geriatra e paliativista Dr. André Filipe Junqueira dos Santos, indicando algumas considerações importantes sobre este tópico.

No Brasil, ocorre a prática da “sedação paliativa”, que não é regulamentada por lei como ocorreu recentemente na França. Ela é ministrada a pacientes com uma doença incurável, na fase terminal e com sintomas que não podem mais ser controlados – que não respondem a nenhum outro tratamento, por exemplo, uma falta de ar decorrente de um câncer de pulmão. A sedação não é um coma induzido pois nela há um nível de consciência, ao passo que no coma não.

Dr. Junqueira diz preferir o termo sedação paliativa ao termo sedação terminal, pois este último daria a entender que o procedimento vai levar à morte e esse não é o intuito da sedação. Ele diz já ter tido casos em que a sedação foi retirada após a melhora do paciente.

A sedação paliativa é realizada em vários hospitais e muitos já possuem protocolos a respeito, como o Hospital Albert Einstein e o Hospital do Servidor Público Estadual.

Dr. Junqueira diz já existir trabalhos científicos mostrando que a sedação não antecipa a morte, diferindo-se da eutanásia, como esse estudo do Annals of Oncology. A principal diferença é que o objetivo da eutanásia é aliviar o sofrimento antecipando a morte e no caso da sedação, o objetivo é atenuar os sintomas da doença, pelo rebaixamento do nível de consciência. Além disso, a eutanásia não é reversível, a sedação sim.

Na eutanásia, injeta-se uma substância chamada cloreto de potássio, provocando-se uma parada cardíaca. Na sedação, é usado um remédio para baixar o nível de consciência, chamado Midazolam, comercialmente conhecido como Dormonid (medicação utilizada por exemplo, para sedação durante uma endoscopia) .

O Manual de Cuidados Paliativos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos aborda os aspectos éticos da diferença entre sedação paliativa e eutanásia, disponível nesse link (página 520).

Sobre a retirada da alimentação e da hidratação, Dr. Junqueira diz que são procedimentos opcionais e polêmicos. Na sedação, não há a sensação de fome ou sede, pois são atividades reguladas pelo hipotálamo, que deixa de funcionar. Mas Dr. Junqueira considera ser uma questão, do ponto de vista fisiológico, indiferente, porque se o paciente tem horas ou dias de vida, não será a alimentação ou a hidratação que o fará viver mais ou menos. Ele vai morrer em decorrência de complicações da própria doença. Porém, existem outros aspectos além da fisiologia envolvidos na alimentação e na hidratação, como religiosos, psicológicos e emocionais, sendo que esta decisão deve ser feita em conjunto com a equipe médica junto e os familiares.

Ressalto que a eutanásia é considerada crime no Brasil, assim como o suicídio assistido. Assisti, recentemente, o documentário “Choosing to die” (“Escolhendo Morrer”) organizado pelo escritor Terry Pratchett (1948 – 2005) sobre o suicídio assistido. Segue o link abaixo (em inglês – não encontrei um link com legendas em português) para quem tiver interesse em ver como funciona esse procedimento na Suíça, um dos países que em que ele é permitido.

 

 

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“Não é uma questão de morrer cedo ou tarde, mas de morrer bem ou mal” https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/11/04/nao-e-uma-questao-de-morrer-cedo-ou-tarde-mas-de-morrer-bem-ou-mal/ https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2014/11/04/nao-e-uma-questao-de-morrer-cedo-ou-tarde-mas-de-morrer-bem-ou-mal/#respond Tue, 04 Nov 2014 17:18:46 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/?p=100 A frase do título desse post é do filósofo Sêneca. Encontrei-a no portal on-line Testamento Vital. Criado por Luciana Dadalto, ele é o mais completo do tema no Brasil. O site oferece informações sobre esse instrumento, além de um banco de dados para cadastro de testamentos vitais, o Rentev – Registro Nacional de Testamento Vital, onde o solicitante pode arquivar o testamento vital, gratuitamente e gerar um código de acesso para que uma pessoa de confiança (amigo, familiar ou profissional de saúde) possa acessá-lo quando for necessário.

Apesar do nome remeter a testamento, eles não se relacionam. Testamento vital é uma tradução, não muito bem feita, do termo referente em inglês “living will”. Esse “will” está relacionado à vontade, mas a palavra também pode ser traduzida como testamento, por isso a leve confusão. “Living will” seria “vontade em vida” pois essa é uma ferramenta para manifestar vontades sobre tratos médicos no final da vida. Já o testamento, dispõe sobre sucessão patrimonial. Mas a tradução foi feita dessa forma e aqui no Brasil, o famoso “living will” americano é conhecido como testamento vital.

Uma possível semelhança entre testamento e testamento vital é a de poderem evitar brigas entre descendentes, já que sem um testamento vital, filhos, sobrinhos e netos podem discordar sobre quais procedimentos tomar. Essa ferramenta evitaria, assim, desgastes familiares, tanto emocional quanto financeiro.

 No Brasil, eutanásia e suicídio assistido são considerados crimes. Falei mais sobre esses conceitos no meu post: Um dia para Morrer. Mas o testamento vital é aceito e deve ser seguido pelo médico, desde que não vá contra a lei e contra o Código de Ética.

 A definição oferecida pelo portal segue abaixo:

 “O testamento vital é um documento, redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade”. Ele terá validade quando a pessoa estiver em situação de fim de vida, estado vegetativo persistente ou uma doença terminal, por exemplo.

 Um exemplo prático é pedir para não fazer quimioterapia no caso de câncer terminal ou ser colocado na UTI (Unidade de Terapia Intensiva).

 Uma dificuldade está em se definir o que é “pleno gozo de suas faculdades mentais”, pois não englobaria pacientes com demência ou em depressão. Uma pessoa com tendência a Alzheimer, por exemplo, deveria escrever o testamento vital antes dos sintomas se apresentarem, mas alguns autores defendem que pode ser feito mesmo no início da doença. É uma linha difícil de ser definida. Sobre a depressão, fiz uma entrevista com o médico e psico-terapeuta João Figueiró, disponível nesse link.

A articuladora deste instrumento, Luciana Dadalto é advogada, fez mestrado em direito privado e doutorado em medicina. Ela sempre se interessou pela relação entre direito e medicina. Um dia, se deparou com um texto originalmente espanhol, sobre testamento vital, e ficou intrigada com a falta de conhecimento sobre essa ferramenta no Brasil. Luciana motivou-se a explorar o tema e trazer seu conhecimento a público, assim como trabalhar na conscientização de sua importância. Interesse pelo público há, porque seu livro “Testamento Vital” já está com a segunda edição esgotada.

 Manifestação de vontade em outros países

 Nos Estados Unidos, há outros documentos de manifestação de vontade, além do living will, que tratam de outras situações além das de fim de vida, como um câncer não terminal e aneurisma cerebral. São chamados de POST, e consistem em documentos de aceitação e recusa de tratamento.

 Nos países onde a eutanásia é permitida, como Bélgica e Holanda, o testamento vital pode abordar essa questão, explicitando-se a vontade de optar pela eutanásia em algumas situações.

 

Patinando no Brasil

 Apesar de seus esforços, Luciana acredita que ainda patinamos no Brasil. Numa linha evolutiva de zero a dez, ela diz que estamos no patamar um. Um dos fatores para isso é uma perspectiva religiosa e moralista que impede uma discussão objetiva sobre os diretos do ser humano.

Outro motivo é a de falta de informação. Muitas pessoas acreditam que o testamento vital vai contra a lei, por associa-lo à eutanásia, mas essa é uma percepção errada. Ele parte do principio que o paciente já vai morrer e a única coisa que ele quer é morrer de uma forma digna, com autonomia para escolher como quer chegar até o final de sua vida. “A ideia é permitir que as pessoas que queiram se utilizar disso, se utilizem. Não é uma obrigatoriedade”, ela diz.

Como fazer um testamento vital?

O passo-a-passo de como fazer um testamento vital está descrito no link: testamentovital.com.br/informações, segundo infográfico abaixo.

infografico_Testamento_Vital

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