O que os mortos falam
Os cemitérios podem nos contar muito sobre a história de uma cidade e de um país. É o caso do cemitério da Consolação, em São Paulo. Lá, são oferecidas visitas guiadas pelos túmulos de pessoas de relevância nacional, como o de Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a famosa Marquesa de Santos, benfeitora do cemitério.
Visitas turísticas em cemitérios são comuns na Europa, para conhecer túmulos famosos e visitar obras de arte, como o cemitério Pèrre-Lachaise em Paris. Os visitantes recebem um mapa na entrada e se dirigem aos túmulos mais desejados, como o do músico Jim Morrison (1943-1971), o escritor Oscar Wilde (1854-1900), o dramaturgo Molière (1622-1673) e Allan Kardec (1804-1869) – a maior referência do espiritismo. O cemitério Hollywood Forever, nos Estados Unidos também conta com uma estrutura turística, além de promover eventos culturais, shows de jazz e pop – como Lana Del Rey, e stand-up comedies. Os dois cemitérios oferecem também tour virtual completo no site.
No cemitério da Consolação, você é recebido por Francivaldo Gomes, mais conhecido como Popó, um “ defensor do que resta da nossa história”, como ele mesmo diz. Dedicado à causa, demonstra paixão pela história da cidade enquanto faz seu tour, passando por túmulos como o do abolicionista Luiz da Gama (1830-1882), Antonio Agú (1845- 1909) – o fundador de Osasco, o do jornalista Libero Badaró (1798-1830), marquês de Monte Alegre (1796-1860) – fundador do primeiro jornal da cidade, em 1827, o “Farol Paulistano”, e de escritores como Mario de Andrade (1893-1945) e Monteiro Lobato (1882-1948). Há nomes de bairros, ruas e estádios da cidade enterrados ali: Cerqueira Cesar (1835-1911), Eusébio Matoso (1897-1940) e Paulo Machado de Carvalho (1901-1992).
Alguns funcionários passaram toda sua vida dedicada aos mortos, como Seu José, trabalhador do cemitério há 60 anos. Ele é empreiteiro, constrói túmulos, alguns deles para abrigar 20 corpos. Um túmulo de 2,20m por 2,20m custa por volta de R$18.000. Os túmulos abandonados são usados para revenda.
Seu José morava na frente do cemitério, e brincava lá enquanto seu pai oferecia serviços de marmoraria. Seu filho é engenheiro civil e faz plantas para cemitérios. Seu José quer ser enterrado ali, no túmulo do pai e diz não ter medo da morte, porque nunca viu alguém que morreu voltar para dizer se é bom ou ruim.
Os funcionários parecem muito envolvidos com o dia a dia do local. Em minha visita, há duas semanas, presenciei uma revolta de uma sepultadora sobre o roubo de um portão de bronze na noite anterior. Os roubos parecem estar cada vez mais frequentes. O túmulo do escritor Monteiro Lobato, por exemplo, perdeu seu único ornamento: uma coroa de flores em bronze, só deixando a antiga marca no local. A guarda municipal faz ronda a pé durante o dia e ronda de carro a noite, mas indica a pouca iluminação como um fator para o crescimento dos furtos. O proprietário do túmulo precisa assinar uma declaração isentando o cemitério de responsabilidade caso haja roubos de ornamentos. Cabe a família fazer um B.O e recorrer à justiça.
O cemitério da Consolação tem referência europeia, com um arco a la arco do triunfo na entrada, projetado por Ramos de Azevedo, que também projetou a capela no centro do terreno. Foi fundado em 1858 e conta com 8500 túmulos.
Muitas famílias tradicionais de São Paulo tem túmulos ali. São construídos com granito, mármore de Carrara e ornamentados com esculturas feitas por Victor Brecheret, Francisco Leopoldo e Silva, Nicola Rollo, Amadeu Zani e Luigi Brizzolara.
O cemitério da Consolação foi o primeiro cemitério público a ser construído na cidade de São Paulo. Até então, os corpos eram enterrados dentro das Igrejas, na crença de que a proximidade dos santos auxiliaria a entrada da alma no paraíso.
Houve muita resistência para essa mudança cultural. A ideia demorou quase trinta anos para ser implementada. Até então, somente os enforcados e os escravos eram enterrados em cemitério – no Cemitério dos Aflitos, atual bairro da Liberdade. Escravos foram enterrados no Consolação também, acabando com a separação dos senhores sepultados nas Igrejas e escravos em cemitérios, talvez já indicando que a morte pode significar o fim simbólico das diferenças sociais.
Hoje, em São Paulo há 22 cemitérios públicos e cerca de 50 particulares, cada um com uma história para contar.
O que os mortos falam eu não sei. Mas os vivos deixam claro a mensagem mais inscrita nos túmulos: saudades.