É preciso imaginar Sísifo feliz

Camila Appel

O post anterior trouxe comentários de leitores relatando já terem pensado em suicídio, mas reconhecem que nunca chegariam às últimas consequências. Isso me trouxe a lembrança do ensaio filosófico “O Mito de Sísifo” (ed. Livros do Brasil, 2005) de Albert Camus (1913-1960).

Após desafiar os deuses, Sísifo foi condenado a empurrar uma rocha montanha acima e ao chegar no topo, vê-la rolar morro abaixo para então descer e tornar a levá-la até o topo novamente, preso por toda a eternidade num trabalho inútil e sem esperança. Camus viu nesse mito uma boa metáfora para expor seus pensamentos sobre o que ele chama de “absurdos” que nascem da relação do homem com o mundo. Em “O Mito de Sísifo”, ele relaciona o absurdo ao suicídio, na medida em que o suicídio seria uma possível solução para a conscientização do absurdo.

O filósofo não acredita que o suicídio seja uma saída, mas vê essa reflexão como necessária: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”. Esse julgamento partiria da uma pergunta complexa: qual é o sentido da vida?

Sísifo está fadado a um trabalho inútil e sem sentido. Seus esforços de levar a rocha são rapidamente neutralizados pelo retorno à estaca zero. Na descida, Sísifo pensa a respeito de suas ações e toma consciência de que são desprovidas de sentido, o que ele chama de “absurdo”. Camus diz que o mito só é trágico devido a essa consciência de Sísifo. Se não refletisse a respeito, não haveria tragédia.

Quando nos damos conta do absurdo da vida, da falta de sentido em nossas ações, há espaço para a reflexão sobre se ela vale a pena ser vivida ou não.

Ele diz: “no instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo regressando para a sua rocha, contempla essa sequência de ações desvinculadas que se tornou seu destino, criado por ele, unido pelo olhar de sua memória (…)”.

Camus acredita que se matar é uma espécie de confissão: “confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos”, ou “confessar que isto não vale a pena. Viver, naturalmente, nunca é fácil. Continuamos fazendo os gestos que a existência impõe por muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume. Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento”.

Mas há otimismo nesse filósofo. Ele não vê o suicídio como uma saída, ao contrário, apenas o encara como uma reflexão necessária (“o perigo é não refletir a respeito”) e a partir dela, voltarmos a Sísifo com outros olhos. Ao invés de vermos esse homem preso num trabalho sem sentido e inútil, é necessário mudar o ponto de vista e contemplá-lo como um homem interagindo com um universo particular e rico. A montanha é sua casa, “cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo”.

Camus conclui que não há sentido no trabalho, assim como não há sentido em viver, mas amamos a vida mesmo assim. “A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.

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Sísifo, de Tiziano Vecellio, 1548-1549. https://www.museodelprado.es. Domínio público.