Seja bem-vindo à era da geriatria
Segundo estudo reflexivo do IBGE lançado na última quarta feira (15), “Mudança Demográfica no Brasil no início do século 21: Subsídios para as projeções da população do Brasil e das Unidades da Federação”, nosso país está num processo de alteração profunda de sua estrutura etária. A combinação do declínio da taxa de fecundidade com o declínio da taxa de mortalidade tem resultado no envelhecimento da população.
Em 2008, a faixa acima dos 65 anos correspondia a 6,53% da população. A previsão para 2050 é de 22,71%. Em contraposição, a faixa das crianças, considerada de 0 a 14 anos correspondia a 26,46%, com previsão de passar a 13,15% da população total.
Segundo o IBGE, essa tendência vem ocorrendo a partir do século 18, quando “a revolução industrial e a modernização das sociedades europeias, assim como os avanços científicos, urbanísticos e os ganhos em qualidade de vida de um modo geral, dão início ao processo de transição”.
O estudo indica que como o segmento da população que mais cresce é o de idosos, é necessário a elaboração de políticas públicas para ações de proteção e cuidados específicos a eles.
Esse cenário leva a mudanças nas causas da mortalidade, que vem passando de doenças infecciosas, respiratórias e parasitárias para doenças relacionadas ao envelhecimento e à própria degeneração do organismo, como câncer e doenças cardiorrespiratórias.
Dentro desse contexto, a geriatria pode ser vista como a especialidade do futuro, apesar de continuar pouco procurada, tanto pelos médicos recém formados quanto pelos pacientes.
Conversei com dois médicos que optaram pela geriatria como área e atuação, Dr. Paulo Camiz, geriatra e professor de clínica geral do Hospital das Clínicas de São Paulo, que mantém um blog sobre o assunto O Geriatra, e o Dr. André Filipe Junqueira dos Santos do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
A escolha pela geriatria
Eles optaram pela geriatria por oferecer uma visão global do paciente, já que se trata de uma especialidade extremamente abrangente, na qual tudo se torna importante. Para se especializar em geriatria, é necessário formar-se em clínica geral antes.
“A maior parte dos médicos só enxerga partes e o paciente está cansado disso, de ser visto em partes, de precisar se consultar com vários médicos ao mesmo tempo”, diz Dr. Camiz.
Dr. Junqueira mencionou que há um fator de mercado importante, já que o clínico geral não é muito valorizado no Brasil, ao passo que a geriatra tem conquistado maior reconhecimento, conforme a população envelhece.
A especialidade em geriatria pode ser considerada nova, ela começou na PUC do Rio Grande do Sul, com o médico Yukio Moriguhi, na década de 70. Na década de 80 ela foi inaugurada no Hospital das Clínicas de São Paulo e agora é que está começando a expandir pelo Brasil. Dr. Junqueira disse que forma-se em média, cem especialistas por ano no Brasil. Um número ele considera baixo, “quando eu me formei, em 2010, não tinha nem mil médicos com especialidade reconhecida em geriatria no país, é irrisório”.
Preconceito
Os dois médicos colocaram o preconceito de alguns pacientes em resistir à procura de um geriatra por ver essa especialidade como uma forma de admitir-se a velhice, atrelada a um valor negativo. “Mas isso é cultural, estamos numa fase de transição, estamos aprendendo a aceitar o envelhecimento. Conforme a população envelhece, as aceitações também vão mudando”, disse Dr. Junqueira.
Sobre a baixa procura da geriatria por médicos recém formados, Dr. Camiz diz que “tem muitas variáveis e às vezes se paga muito caro por um erro cometido. É necessário aprofundar-se nas diversas áreas de conhecimento da medicina, e é mais trabalhoso atender o idoso porque tem que ter mais paciência, a consulta é mais demorada… e você depende dos familiares tanto para as consultas quanto para garantir o cuidado do paciente”.
Dr. Junqueira considera essa especialidade reconhecida dentro da área, mas não é popular como é a radiologia, a dermatologia e a anestesiologia, porque, segundo ele, são especialidades com bom retorno financeiro e menor carga de trabalho. “Essa é uma deterioração da visão médica, porque essas funções consomem equipamentos, demandam vários procedimentos acessórios, gerando mais dinheiro aos envolvidos, mas a relação médico-paciente é menor. Cinco ou seis anos antes de eu me formar, o convênio nem autorizava pedidos vindo de um médico geriatra. Hoje em dia, os convênios até demandam o geriatra. Pelo menos não há mais essa dificuldade de trabalhar no mercado”, diz Dr. Junqueira.
O despreparo da sociedade
De certa forma, o idoso é visto como um estorvo pela sociedade, porque ele não produz mas demanda grandes cuidados. Na maioria dos casos, gastamos mais com nossa saúde no final da vida, o que pode ser oneroso para a família e para o sistema de saúde. Dr. Camiz comenta que essa é uma visão errada e preconceituosa, e não leva em conta o fato de boa parte desses idosos sustentarem suas famílias, com a aposentadoria ou com o patrimônio familiar construído ao longo da vida. Ele também diz que velhice não é uma doença, é uma fase da vida e “se nem os médicos estão preparados para lidar com as doenças da idade, o que dirá a população comum”.
Para Dr. Junqueira, o envelhecimento não é algo trabalhado e por isso os familiares não sabem lidar com a situação. “A família passa a estimular menos o idoso, deixando-o sentado o dia inteira vendo televisão, por exemplo. A sociedade brasileira não tem instrumentos para favorecer o envelhecimento ativo”.
Envelhecimento ativo
Segundo publicação da Organização Mundial da Saúde (OMS), “Envelhecimento Ativo: uma política de saúde”, sua definição é: “o processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas”.
Dr. Alexandre Kalache é uma referência nesse tema. Ex-chefe do “Programa de Envelhecimento e Saúde” da OMS, ele destaca, de acordo com uma reportagem da Folha, que “os países desenvolvidos, onde a revolução já ocorreu, houve enriquecimento antes do envelhecimento. Já no Brasil, a população está envelhecendo em condições de pobreza, o que transforma a velhice em fardo”. E “é importante executar políticas públicas que garantam a qualidade de vida dos idosos nesses anos de vida que eles ganharam”. Dr. Kalache é presidente do “International Longetivity Center ”, sediado no Rio de Janeiro.
Um dos desafios da geriatria é exatamente incentivar a integração do idoso na sociedade. Dr. Camiz fez um estágio no Japão e pode perceber a presença de uma estrutura social que favorece uma vida digna ao idoso, algo que não se vê no Brasil. “A forma como o motorista de ônibus pisa no freio já é diferente. Pode parecer um detalhe, mas é isso que fará com que um idoso quebre um fêmur ou não, por exemplo. Faz parte de todo um contexto social. No Japão, não se vê buracos na rua. Parece besteira também, mas isso está relacionado a um envelhecimento saudável, porque possibilita a maior sociabilidade do idoso, ele poder caminhar e desfrutar do ambiente em que está. Alguma coisa foi feita? Sim, há um tempo atrás não existia vaga para idosos nos estacionamentos, mas isso é muito pouco. Estamos vendo a geração que vai passar dos cem anos, e temos que nos preparar para isso”, diz Dr. Camiz.
Como parte do processo de envelhecer bem, Dr. Camiz também coloca a necessidade de trabalhar a saúde emocional do paciente, muitas vezes atrelada à baixa inserção social. “Vejo todo dia no meu consultório, pacientes reclamando de dor física e apresentando um quadro depressivo grave. Se não tratamos a depressão, a dor física não melhora”.
Dr. Junqueira diz que não há atividades para o idoso numa cidade como São Paulo. “Pode haver uma ou outra atividade isolada, mas não temos uma política integrada”, o que nos leva ao questionamento do papel do Estado como facilitador e provedor dessa inserção.
Papel do Estado
Dr. Junqueira diz que o Estado transfere todo o cuidado do idoso para a família, o que gera desdobramentos negativos. “Não há casas de repouso públicas, elas são privadas ou filantrópicas”. O Estado já teria começado a formar políticas integradas para outros setores, como o das crianças e dos cadeirantes, ao passo que no caso dos idosos, ainda não.
Um desdobramento negativo é que o Estado não oferece nenhum suporte para o paciente ficar em casa, como home-care, cuidadores de idosos ou qualquer infra-estrutura nesse sentido.
“Às vezes o idoso fica muito mais tempo no hospital do que o necessário porque a família não tem condições de cuidar dele. Isso é muito comum. Um colega médico meu trabalhou na Inglaterra como um cuidador de idoso, pago pelo governo. Essa profissão é capacitada e regulamentada lá. Isso não ocorre no Brasil”, diz Dr. Junqueira.
Uma possível consequência do cuidado do idoso estar somente nas mãos da família é o fato de poder gerar uma superproteção. “Muitos familiares não contam a gravidade da doença para o parente, acham que se falar, a pessoa vai piorar. Por ser responsável pelo idoso, a família muitas vezes assume a identidade da pessoa, toma decisões por ela, define o que ela pode saber e o que não”, diz Dr. Junqueira.
Medos – perda de autonomia e solidão
Os dois médicos mencionaram que o tabu de falar sobre a morte parte mais dos familiares do paciente do que deles mesmos.
O maior medo dos idosos seria sentir dor e solidão. Alguns usam frases como “ter medo de ser abandonado” e de “dar trabalho”.
“Quando uma pessoa está morrendo, tudo o que ela não quer é ficar sozinha e tudo o que os familiares mais fazem é deixá-las sozinhas. Vejo muito isso. Nos principais hospitais, boa parte dos pacientes que estão na UTI não precisariam estar lá. Mas é mais cômodo para o médico, porque tem um plantonista 24h a disposição para cuidar daquele paciente. A UTI facilita essa solidão, ela é muito desconfortável para visitas”, diz Dr. Camiz.
Outra questão colocada é o medo de perder a autonomia, de depender de alguém para realizar tarefas comuns como levantar da cama, tomar banho, comer e andar.