Um cemitério inspirado em Inhotim no meio no Jardim Ângela

Camila Appel

Considerado pela ONU em 1996 como a região urbana mais violenta do mundo, o Jardim Ângela, bairro na periferia da zona sul paulistana, tem hoje em um cemitério uma opção de lazer e acesso à arte.

É no Cemitério das Cerejeiras que os moradores da região -que ainda conserva casas precárias de tijolos aparentes, algumas forçadas a ligações clandestinas para ter acesso à agua e luz- podem, contraditoriamente, viver uma realidade de primeiro mundo.

“Os moradores do bairro mal têm opções culturais e recreativas por perto”, afirma Daniel Arantes, diretor do cemitério. O parque do Ibirapuera, fica a cerca de 30 km do cemitério e o Burle Marx a 15. Mas os três têm algo em comum: bancos do designer Hugo França espalhados pelo jardim.

Foi numa visita ao Centro de Arte Contemporânea Inhotim que Arantes se apaixonou pelos bancos de França e decidiu contatá-lo com um pedido inédito: transformar os eucaliptos que seriam extraídos de seu cemitério num plano de expansão, em seus bancos esculturais. Hoje, o Cerejeiras é o segundo maior acervo de Hugo França no mundo, com 22 peças, só perdendo para Inhotim, com 126.

Hugo França transforma resíduos florestais em “esculturas mobiliárias”, como ele mesmo as define. “A madeira é uma matéria-prima muito nobre para jogar no lixão e sua decomposição natural é tóxica”, ele diz.

O trabalho de França aproveita as formas orgânicas das árvores e indica um desdobramento educacional, ao tocar na questão da sustentabilidade.

Ele afirma não ter estranhado a proposta de Arantes. “Achei a ideia de produzir para um cemitério espetacular”.

Num canto entre as árvores, há um mural de homenagens para visitantes materializarem seus sentimentos com palavras. As que mais apareceram, como “lembrança”, “repouso” e “afeto”, foram forjadas em aço pela artista Ale Bufê e espalhadas pelo jardim, formando o “Bosque das Palavras” – “ecoando emoções em harmonia com a natureza e estabelecendo uma relação emocional entre os sentimentos etéreos e a matéria sólida”, diz a placa explicativa.

Também há poemas de Carlos Drummond de Andrade impressos em placas.

Para França, a primeira função da arte contemporânea é a reflexão, que casa com o ambiente introspectivo e natural do cemitério, propício para esse tipo de pensamento. “A relação entre as pessoas num ambiente como o do Cerejeiras é diferente da dos cemitérios que estamos acostumados a ver. Isso ajuda o processo do entendimento da morte, porque associar a morte a algo feio é diferente de associá-la a algo bacana e bonito”, afirma França.

Ele diz acreditar na morte como um fim e não como uma passagem para outra dimensão, “sou ateu e materialista”, conclui.

A obra mais pesada já feita por França está no Cerejeiras. Ela tem 17 toneladas e é resultado da fusão de duas enormes raízes, apoiadas no chão de ponta cabeça. Há uma escultura que remete ao espaço em si. É um desenho geométrico apontando para o céu. Segundo o designer, seria uma forma de indicar espiritualidade, por haver um senso comum de associar a morte ao céu.

Inhotim é uma inspiração para Arantes por mesclar arte com paisagismo. Outros cemitérios fora do Brasil serviram de estímulo, como o Forest Lawn em Los Angeles, que conta com peças de arte e ícones arquitetônicos dos Estados Unidos, e o Parque Del Recuerdo, no Chile.

O cemitério parece um parque recreativo, e assim é visto pela população local. Costumam visitar o espaço nos finais de semana e tirar fotos de “noivos” após o casamento. “As pessoas se arrumam para vir aqui”, diz Orlando Giorgini, gerente do cemitério. “Tem uma vista muito bonita. Quando as pessoas pisam no Cerejeiras, não pensam que é um cemitério, pensam que é um parque”, afirma a “dona do lar” Karina Souza Silva, 28, moradora do bairro há 23 anos. “Meu avô, que sempre morou na região do Jardim Ângela, comprou uma gaveta para ele no cemitério assim que foi fundado (em 1993) e começou a pagar a mensalidade. Ele falava que só ia morar num lugar bom depois que morresse, porque ele achava o cemitério muito bonito. Não há preconceito em ser um cemitério, a gente se sente bem lá dentro”, diz ela.

Há um playground para crianças que a primeira vista pode parecer apenas uma ótima ideia, mas é reflexo da realidade dos moradores, que não têm a opção de deixar seus filhos com uma cuidadora enquanto atendem a um velório ou enterro. Esse aparente detalhe muda todo o astral do cemitério, com risadas genuínas complementando o clima sóbrio. Durante minha visita, havia o velório de uma senhora de uns oitenta anos e crianças se divertindo no parquinho à frente. Seus gritos de euforia não pareciam contrapor com a severidade do momento, mas sim aprofundavam a consciência de vivermos imersos num ciclo da vida, quem sabe refletindo, à sua maneira, sobre a morte e as saudades.

O Cerejeiras também tem animais, como galinhas-d’angola e carpas; e árvores com frutos – uma enorme magnólia na frente do velório. “O cemitério não precisa ser um local triste. Ele pode ser acolhedor e com vida”, afirma Arantes.

Ele é um caso raro de espaço que alia cemitério à arte contemporânea. A relação mais comum entre necrópoles e arte baseia-se no conceito clássico de arte tumular, como há no cemitério da Consolação, com esculturas de artistas como Victor Brecheret e Luigi Brizzolara.

Como projetos futuros, o Cerejeiras pretende construir um Orquidário, um Anfiteatro e um Borboletário, “o ciclo da borboleta tem tudo a ver com o ciclo da vida”, diz Arantes.

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Matéria em 09 de junho no caderno Ilustrada.