A máscara em que você vive – sobre o suicídio entre homens

Camila Appel

O documentário “The Mask You Live In” (a máscara em que você vive), disponível no Netflix, ressalta um aspecto fundamental da cultura norte-americana, que ao meu entender poderia ser replicado à brasileira: a criação de mitos relacionados à masculinidade. Essa cultura estaria enraizada em nossa comunidade, nas escolas, nas casas, nos playgrounds das praças, sendo disseminada pelos pais e professores de forma automática e inconsciente. E, infelizmente, seria um dos motivos do porquê a taxa de suicídio entre homens ser superior da entre as mulheres. Dos 15 a 19 anos, ela é cinco vezes maior, passando para sete vezes maior entre os 20 a 24 anos.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) coloca como um ponto chave para essa diferença o fato dos homens optarem por armas mais letais do que as mulheres. Eles escolhem pistolas, por exemplo, enquanto as mulheres optam por overdose de remédios – um caminho mais fácil de ser revertido do que um tiro. A justificativa cultural levantada no documentário também tem sua razão de ser e deve ser trazida para discussão.

A raiz do problema estaria na nossa construção de gênero, na separação entre características que seriam consideradas femininas das tidas como masculinas. Meninos cresceriam sendo ensinados a não demonstrar sentimentos ou qualquer vulnerabilidade. O ser sensível pertenceria às mulheres. Se um menino chora na classe, ele é rapidamente tachado de menininha, ou de “bicha”. Esses meninos crescem com os próprios pais falando: seja homem! Assim, se desenvolvem acostumados a reprimir sentimentos – demonstrá-los é visto como sinal de fraqueza. E acabam extravasando em atitudes violentas e auto destrutivas.

O documentário diz: “construímos uma ideia de masculinidade nos EUA que não dão aos meninos uma chance de se sentirem seguros em sua masculinidade, então eles têm que afirmá-la o tempo todo”. Essa afirmação ocorreria em atividades de grupo envolvendo bebidas, drogas e atos violentos contra outros grupos ou mesmo contra as mulheres – o alvo daquilo que buscam reprimir em si mesmos.

Os meninos temeriam não serem homens “o suficiente”. Aí entra um conceito que Mark Henick ressalta em sua palestra do TED: “Porque escolhemos o suicídio”. Mark, ao comentar sobre suas tentativas de suicídio, diz que não conseguia parar de pensar que ele não era bom o suficiente, não era inteligente o suficiente, ele simplesmente não era suficiente, não bastava.

Segundo Joe Ehrmann, em palestra do TED “Be a Man”, há três mitos associados à masculinidade que contribuem para a cultura do “Be a Man” e ajuda a destruir uma sociedade:

  • Habilidade atlética – masculinidade é associada à força, a um bom desempenho atlético. Os meninos com facilidade em esportes são mais valorizados.
  • Conquista sexual – masculinidade é associada à conquista, ao uso das mulheres como objeto – para validar uma insegurança sobre o que é ser homem.
  • Sucesso econômico – ser homem estaria associado ao título do seu cargo, a poder, ou às posses que um homem tem.

Joe chama esses mitos de “as grandes mentiras da nossa sociedade”. Elas estariam enraizadas em toda propaganda direcionada a homens.

O documentário cita a informação de que a “American Psychological Association” diz que 80% dos homens sofre de alexithymia – a inabilidade de colocar emoções e sentimentos nas palavras. Seria o resultado de uma criação que reprime demonstrações emotivas dos meninos. Isso gera um déficit de empatia nos homens, porque se eles não conseguem entender as emoções neles mesmos, não conseguem compreendê-las nos outros. Joe associa essa realidade ao abuso de drogas, violência sexual e homicídio entre os homens. “Meninos que não podem chorar, atiram balas”, ele diz. Sua redefinição de masculinidade é baseada no princípio de que ser homem é ser simplesmente um bom ser humano: construir relações profundas, amar e ser amado, ter qualidade de relacionamento, fazer a diferença no mundo, se comprometer a uma causa.

Discursos como o de Joe Ehrmann partem do princípio de que gênero é uma construção social e a masculinidade não pode ser vista como a rejeição de tudo o que é feminino. O psicólogo Michael Thompson diz, no filme, que homens e mulheres são muito mais parecidos do que são diferentes. “Se você der 50 mil testes psicológicos para as mulheres e para os homens, os resultados, em termos de gênero, serão 90% iguais”.

A máscara que todos nós vestimos, sobre o que significa ser homem ou ser mulher, quais qualidades são esperadas de nós por nascermos com um pinto ou uma vagina, o que enfim representamos na sociedade, é bem retratada na frase de George Orwell que abre o documentário: “ele veste uma máscara, e seu rosto se adapta para moldar-se a ela”. Ela me lembrou outra, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos, Tabacaria): “ O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara”.

Aproveito para indicar o excelente discurso da atriz Emma Watson sobre a campanha HeforShe, nas Nações Unidas. Não há legendas em português, segue a tradução de uma pequena parte:

“Igualdade de gênero também é uma questão para os homens. Até hoje eu vejo o papel do meu pai sendo menos valorizado pela sociedade, apesar de eu necessitar sua presença tanto quanto a da minha mãe quando eu era criança.  Eu já vi meninos sofrendo distúrbios mentais e não poderem pedir ajuda, por medo de que isso os faria menos homens. No Reino Unido, suicídio é a maior causa de morte entre homens de 20 a 49 anos, ganhando dos acidentes de trânsito, câncer e doenças do coração. Eu já vi homens se sentirem frágeis e inseguros por haver um senso distorcido do que significa ser um homem bem sucedido. Assim como as mulheres, os homens também não têm o benefício da igualdade. Nós normalmente não falamos sobre os homens serem aprisionados por estereótipos de gênero, mas eu posso ver que eles são sim. E quando eles se libertarem, as coisas vão mudar para as mulheres como uma consequência natural. Se os homens não precisarem ser agressivos para serem aceitos, as mulheres não se sentiram compelidas a serem submissas. Se os homens não precisarem controlar, as mulheres não precisarão ser controladas. Homens e mulheres deveriam ser livres para serem sensíveis, ou para serem fortes. Já é tempo de percebemos gênero como um espectro ao invés de dois pontos de ideais opostos”.

A questão de gênero é uma discussão fundamental tanto para os homens como para as mulheres. As consequências dos estereótipos masculinos podem levar a graves quadros mentais, como crises de ansiedade, pânico e desespero. 90% dos suicidas sofrem algum tipo de distúrbio mental no momento de suas mortes. Em sua grande maioria, depressão. A conjuntura que desemboca num ato suicida cabe a nós discutir como sociedade, como educadores, como propagadores de uma cultura que cria doenças silenciadas, enraizadas no nosso discurso diário, sem ao menos nos darmos conta de sua existência.