E se eu morrer?
Se eu morrer, tudo o que eu tenho passa para alguém. O testamento é um instrumento para dizer o que vai para quem, para que essa divisão não seja apenas feita de acordo com o definido por lei. Culturalmente, já foi evitado por ser visto como um presságio de morte, como se falar sobre testamento atraísse ou acelerasse a partida. Hoje em dia, é uma importante ferramenta a disposição do planejamento da sua morte, e principalmente, da vida dos que ficam. Ele nem sempre é necessário, mas entender suas funcionalidades pode ser útil e trazer benefícios para as pessoas que ama e um dia receberão tudo aquilo que construiu em vida.
A advogada Renata Guimarães, do escritório Guimarães Bastos Advogados concedeu a entrevista abaixo ao blog “Morte sem Tabu”.
O que é um testamento?
Testamento é um instrumento de organização patrimonial na hipótese de um falecimento. No passado, há quinze, vinte anos, eu fazia muitos testamentos de estrangeiros que vinham residir no Brasil. Eram normalmente europeus e americanos, jovens, sem filhos, preocupados com a disposição dos seus bens. Nessa época, o brasileiro não tinha o costume de fazer testamento, porque culturalmente era visto como um presságio da morte. Tive muitos clientes que se recusaram a fazê-lo por ser algo mórbido, que pudesse atrair a morte. Mas isso mudou e hoje ele é um importante instrumento de organização patrimonial. Nos últimos dez anos, o número de testamentos quadruplicou.
Quais são os tipos de testamentos?
São três tipos usuais:
– Público: redigido pelo tabelião, registrado e guardado em cartório.
– Particular: escrito pelo testador, precisa ser lido na presença de testemunhas e é um escrito particular, guardado pelo testador.
– Cerrado: escrito pelo testador e sua existência é registrada em cartório. O tabelião sela e costura o testamento e o devolve ao testador. Só fica registrado em cartório que ele foi feito.
A maior parte dos testamentos é publica, é uma escritura. Porque ele tem a segurança jurídica de ficar lavrado no livro, ou seja, você tem fisicamente a preservação do testamento (nos outros casos, ele pode ser perdido pelo testador).
O particular muitas vezes é um testamento transitório, provisório, onde se ajusta determinadas situações até que o planejamento sucessório possa ser concluído e ai sim, lavrado como um testamento público. O testamento é lido na frente de testemunhas e guardado pelo testador e pelo seu advogado se assim desejar. Isso torna o testamento particular frágil, porque pode ser perdido. O único testamento que não corre esse risco é o público, por ficar registrado em cartório (é uma escritura) e num banco de dados, chamado Colégio Notarial – que é um grande arquivo dos testamentos feitos (públicos). Ele não é de consulta totalmente aberta. É de consulta dos juízes, dos inventários, dos cartórios que lavram o testamento e dos herdeiros – que precisam da certidão de óbito para solicitar uma pesquisa.
Normalmente, o testamento cerrado contém um segredo, por exemplo: reconhecer um filho fora do casamento ou a deserdação de um herdeiro obrigatório. Ou seja, ele tem uma informação que o testador quer que fique oculta até a data do falecimento. O testamento cerrado é frágil fisicamente, porque um lacre pode se romper, ou a costura abrir. Eu tive um caso onde um testamento cerrado foi escondido atrás de um quadro, e ele desapareceu, ficou só a marca do envelope atrás do quadro. Nesse caso, você tem o registro que o testamento foi feito, mas não se tem fisicamente o testamento.
É mais comum recomendar-se o testamento público, por ter uma segurança física – fica registrado oficialmente nos livros do cartório. E é um testamento que se cumpre com maior agilidade.
Qual é a diferença entre a divisão dos bens com ou sem um testamento?
Existem duas maneiras de transmitir herança: ou segue-se um testamento ou a lei rege (quando não há um testamento). Vamos usar como exemplo um casal com dois filhos e casamento com separação total de bens. Se não houver um testamento, a lei diz que o patrimônio deverá ser divido por igual entre o cônjuge e os filhos. Assim, cada filho e o cônjuge ficam com 33% do patrimônio, porque ele foi dividido em três. Se os filhos forem menores de 18 anos, o cônjuge é usufrutuário da herança dos filhos até atingirem a maioridade.
Se houver um testamento, essa divisão pode ser feita de maneira diferente. Metade do que uma pessoa tem é chamada de “legítima” e precisa ir para os herdeiros obrigatórios, mas a outra metade, chamada de “disponível”, pode ser disponibilizada como o testador preferir. Os herdeiros obrigatórios são, em primeiro lugar, descendentes e cônjuges (em determinados regimes de bens, inclusive separação total voluntária). Quem não tem filhos, os herdeiros são os ascendentes (pais e avós) e o cônjuge. Quem não tem filhos, ascendentes ou cônjuge, tem a livre disposição da herança.
Nessa hipótese de testamento e de dois filhos e cônjuge, eles dividem por igual (uma terça parte para cada um) a metade do patrimônio (legítima) e não o patrimônio inteiro, ficando com 16,67% cada. A outra metade (disponível) pode ser distribuída pelo testador de acordo com a sua vontade explicita no testamento. O testador pode optar por deixar uma parte para um afilhado ou sobrinho, por exemplo. Ou disponibilizar toda essa fatia dos 50% para os filhos, aumentando a porcentagem do patrimônio recebido em relação ao que receberiam caso não houvesse testamento.
Assim, com um testamento, você pode direcionar o valor “disponível” para quem desejar. Outra coisa que esse instrumento permite é dividir participações societárias em empresas familiares.
Num testamento, também é possível deixar legados (atribuir bens específicos a alguém), por exemplo: no caso de um empresário que sustenta os pais, ele pode fazer uma instituição de renda vitalícia para eles. Ou organizar um legado em dinheiro para que um sobrinho faça um tratamento de saúde que precisa ser coberto.
Pode-se inserir clausulas de proteção, como a “clausula de incomunicabilidade”. Com ela, estabelece-se que a herança deixada para sua filha, por exemplo, não seja usufruída pelo marido dela, mesmo que ela case em comunhão parcial de bens ou comunhão universal. A filha pode decidir doar um valor ao marido, mas ele não terá direito pelo regime de bens. Se ela aplicar esse dinheiro herdado, seu marido teria direito à rentabilidade dele pelo casamento com comunhão parcial de bens, mas com essa clausula de incomunicabilidade, ele não terá.
Uma segunda clausula é a “impenhorabilidade”. Isso quer dizer que credores do herdeiro não poderão acessar a herança.
Uma terceira clausula é “inalienabilidade”. A herança, nesse caso, não pode ser vendida. O testador pode deixar uma fazenda a seus filhos, mas deixar estabelecido, com essa clausula, que ela não poderá ser vendida. Muitas vezes se vê prédios abandonados no centro São Paulo, alguns deles são inalienáveis, não podem ser vendidos.
Com um testamento, também é possível nomear tutores para os filhos menores de idade, caso ocorra a morte do pai e da mãe. Pode-se indicar como deve ser a educação dos filhos, com quem eles devam morar, etc.
Quando não se recomenda fazer um testamento?
Há a recomendação de não fazer um testamento se houver uma possibilidade ágil de fazer a divisão dos bens administrativamente (partilha administrativa). Para isso, não se pode ter filhos menores de idade. Esse processo costuma ser muito mais rápido e mais barato. Em um, dois meses, os herdeiros podem concluir uma partilha. Faz-se uma escritura pública, divide-se por igual entre os herdeiros e encerra-se o inventário. Mas nesse caso, não é possível ter outra disposição da herança além dessa divisão por igual, estabelecida em lei, e nem clausulas de proteção ou legados. Muitas vezes, o testamento é necessário num período de vida e depois deixa de ter utilidade. Por isso, é possível fazer um testamento numa fase da vida e depois cancelá-lo.
Qual é a diferença entre testamento e doação?
A doação é a transmissão de bens em vida. Doação para filhos é tida como uma antecipação de herança. A consequência disso é que se um valor for doado a um filho, o outro filho terá direito de acertar essa conta no falecimento do pai. Uma das vantagens da doação é garantir a alíquota de imposto vigente à época do ato, pois há expectativa de majoração do imposto para transmissão da herança.
O que acontece numa incapacidade?
Na incapacidade da pessoa, como no caso de um coma, seu patrimônio fica bloqueado. Nomeia-se um curador, um gestor patrimonial, que vai fazer a gestão dos bens. Há um documento, o testamento vital, onde é possível indicar quem será esse gestor, além de colocar vontades perante tratamentos médicos, podendo conter disposições sobre a não manutenção artificial da vida, por exemplo. (Nota: falei sobre o testamento vital nesse post do blog).
O que é planejamento sucessório?
Ele vai além do testamento pois este é apenas uma ferramenta do planejamento sucessório. Com ele se estrutura o patrimônio familiar, possibilitando o funcionamento e a continuidade dos negócios, mesmo na falta de membros do grupo, por exemplo. Pode-se decidir fazer doações de bens ainda em vida, além do uso de estruturas financeiras como holdings, fundos de investimentos, fundos imobiliários ou previdência, para a transmissão e divisão dos bens da família.
Uma explicação sobre holdings familiares pode ser encontrada nesse artigo.
Há um instrumento que pode dispor sobre vontades relacionadas a enterro?
Sim, ele se chama “Codicilo”. É uma modalidade de disposição de última vontade que tem um propósito específico: estabelecer preferências relacionadas a enterro. Como por exemplo, dizer que se quer ser cremado e as cinzas jogadas no mar. Os codicilos também podem dispor sobre entregas de menor valor, como gratificações a funcionários, ou dar seu livro de cabeceira a um amigo, por exemplo.
Nos Estados Unidos e na Europa é muito comum se falar em “trust”. O que é isso e qual seria sua aplicabilidade no Brasil?
O nome trust vem da época das cruzadas religiosas. Quando o nobre saía, ele deixava o patrimônio “in trust” (confiado a alguém) para que se não retornasse, garantisse que seus bens teriam uma determinada entrega.
Assim, o trust é um conjunto de contratos que viabiliza o recebimento de um determinado patrimônio e a entrega sob determinadas condições. Ele é um veículo de entrega patrimonial. Mas não é só isso, porque no trust existe a figura do trustee. O trustee é uma pessoa que pode fazer a governança profissional do patrimônio, como entregar na data do falecimento ou em determinadas idades, quando o herdeiro fizer vinte anos, por exemplo, já com uma gestão patrimonial em andamento.
O trustee pode entregar só rendas também e não o patrimônio. Se uma pessoa tem um filho com síndrome de down, seu trustee pode fazer a gestão dos recursos para esse herdeiro e entregar só rendas do patrimônio em determinadas datas e não precisa entregar o patrimônio em si. Por isso, o trust é muito usado por patriarcas que não querem uma liquidez muito intensa para um filho, temendo que ele gaste tudo ou não saiba como fazer a gestão do mesmo. O trust e o trustee seriam muito bem vindos no Brasil pois pontuariam uma série de problemas, de governança profissional, de excesso de liquidez para herdeiros e de cuidados em determinados quadros, como de incapacidade.