Funeral celeste – o impactante ritual tibetano

Camila Appel

No alto de uma das áridas montanhas do Tibet, um grupo de pessoas se reúne. Há música e contemplação. O corpo de um defunto é preparado enquanto a representação dos Dakinis (“dançarinos celestes”) se aproxima. São os urubus, aguardando para se alimentarem, num ato considerado sagrado por oferecer-se o corpo para sustentar a vida de outro ser. Alimentar os urubus, essas entidades celestes, com seus restos mortais é um bom carma e existe para ensinar a impermanência da vida.

Rafael Roldan, leitor do blog, me escreveu sugerindo essa pauta. Ele é especialista em cultura tibetana e me contou sobre a prática e os significados desse ritual.

 A música escutada é recheada de simbologias. Toca-se um tambor de dois lados, derivado do hinduísmo, conhecido como o “tambor de Shiva” e chamado Damaru. Ele representa o ritmo do universo e a alternância de pólos. Também se assopra uma corneta de fêmur humano (chamada Kang Ling), que representa a superação da dualidade. O lado assoprado tem apenas um orifício e representa a verdade absoluta e o outro lado, de dois orifícios, representa o dualismo.

Enquanto isso, a figura do rogyapa, ou “breaker of bodies” (quebrador de corpos em tradução livre), corta o corpo de uma maneira específica e o desmembra. O motivo para isso é fazer com que o corpo seja consumido mais rápido pelos urubus. Uma representação do funeral celeste é uma faca curva –  chamada de kartika – usada para esfolar o cadáver. Hoje já não se usa muito essa faca, mas seu símbolo é muito importante e representa o corte que se faz no ego.

Na entrevista do primeiro vídeo abaixo, um rogyapa assume precisar de um pouco de uísque para levar adiante a cerimônia. Mas há um significado para isso, porque o uísque é um tipo de oferenda chamada de “oferenda irada”, usada para satisfazer os espíritos assistentes de Yama, o deus da morte.

Outro símbolo característico do ritual é um sino, que é possível ser escutado durante toda a cerimônia. Os dois símbolos mais importantes do budismo tibetano são o sino de metal e o cetro. O sino representa a interdependência dos fenômenos, pois um sino nunca pode tocar sozinho, precisa de algo batendo no metal para produzir o som. Também representa a sabedoria ou esfera primordial da mente, e o cetro (dorje ou vajra), representa o método. A sabedoria é absoluta, mas os meios de se transmiti-la são inúmeros. O sino é usado na mão esquerda e o cetro na mão direita. Eles sempre precisam estar próximos, representando a união entre a verdade absoluta (sino que é a sabedoria, o feminino) e a verdade relativa (cetro, que é o masculino e por isso há uma interpretação do sino indicar a vagina e o cetro, o pênis).

O funeral celeste envolve a prática do Chöd, um ritual meditativo que depois acabou sendo praticado longe do funeral, como exercício, usando as mesmas imagens do ritual. Os praticantes do Chöd se visualizam saindo do seu corpo e se tornando um Buda (geralmente uma Buda mulher) e vêem seu corpo sendo retalhado, oferecido para pacificar demônios e deuses. O budismo diz que nosso grande referencial de identidade é o corpo, e por isso, esse é um exercício de desapego e a prática é realizada com esse fim.

Geralmente, o Funeral Celeste é feito com a leitura do livro tibetano dos mortos, que também pode ser lido durante o velório. Vou falar mais sobre o livro tibetano dos mortos em breve.

Um possível motivo para o surgimento do Funeral Celeste é um tanto quanto prático. Nas altas altitudes do Tibet, não crescem árvores, não há madeira para cremação, que é a forma mais tradicional de enterro budista, e o solo é duro demais para ser escavado. Assim, essa prática acabou sendo a solução encontrada para a disposição dos restos mortais e evitar-se a disseminação de doenças.

Alguns vídeos sobre o ritual são difíceis de serem assistidos. E os comentários a respeito vão de desgosto a nojo para belo e puro. O mais leve e poético deles está postado em primeiro, abaixo. Em seguida tem um vídeo com cenas indigestas (por favor, pensar duas vezes antes de assistir). Apesar da beleza da significância da cerimônia, achei difícil ver corpos humanos cortados como vacas e porcos no açougue. Bem, aí também tem um pouco da minha própria arrogância de achar que podemos fazer isso com todos os animais da Terra, menos com um dos mais frágeis de todos, nós mesmos.