Um aborto em Israel
“Precisamos falar sobre o aborto” é uma campanha da revista TPM para o fim do silêncio que cerca a questão. Incentivam internautas a postar fotos e vídeos com o cartaz da campanha e divulgam o apoio de artistas conhecidos. A revista parte do princípio da insustentabilidade do fato de mais de um milhão de mulheres fazerem abortos clandestinos por ano no Brasil, colocando sua vida em risco devido a complicações por se submeterem a um procedimento arriscado em função da sua ilegalidade, como falta de higiene e uso inadequado de medicação abortiva.
Algumas críticas à campanha se baseiam em valores religiosos e questionamento dos números expostos, falando-se em manipulação do discurso midiático. Também se alega a falta de fomentação de um debate, por não darem voz àqueles que defendem a lei vigente.
Segundo reportagem da Folha, a discussão sobre o aborto ficará ainda mais difícil em 2015, devido a uma Câmara formada por congressistas que defendem ideias mais conservadoras. (veja aqui).
Li depoimentos de mulheres que fizeram abortos clandestinos e fiquei intrigada para conhecer um relato de um aborto legalizado. Encontrei uma mulher de 36 anos, aqui indicada como L. que abortou em seu país natal, Israel, em agosto de 2014. L. diz que seu país é dividido entre extremos de conservadores e liberais, sendo polarizado quanto a religião e tradição. De qualquer forma, ele permite o aborto por lei em todo território nacional, seguindo algumas condições, como conta a história abaixo.
Após um teste de farmácia, L. descobriu que estava grávida. Sua primeira reação foi de desespero, por já ter três filhos e nunca ter se imaginado com mais um. Conversou com seu marido a respeito e, juntos, avaliaram o aborto como a melhor opção para a família. Os dois sofreram bastante com a criação dos filhos, um deles deficiente físico. L. estava finalmente sentindo sua vida entrar nos eixos, tinha acabado de conseguir o emprego dos sonhos e começava uma rotina administrável e prazerosa. Não via a possibilidade de um quarto filho na família, a gravidez foi completamente indesejada.
Ela foi até uma clínica do governo, fez um exame com uma ginecologista e, após a confirmação do ultrassom, disse sua decisão à médica, que não a questionou em momento algum. Apenas comentou que precisavam de um motivo para apresentar ao comitê que avalia os casos de solicitações de aborto. Em Israel, só com a aprovação desse comitê é possível realizar o procedimento. Os motivos aceitos são:
– A gravidez ser fruto de um caso extraconjugal ou resultado de incesto;
– O feto ter riscos de defeitos físicos ou mentais. Por isso é aceito o motivo da mulher estar sob alguma medicação que pode ser prejudicial ao bebê. No caso, deve-se dizer qual é o remédio;
– A mulher ser menor de 18 anos ou maior de 40;
– Se a gravidez colocar em risco a vida da mãe;
– Em caso de estupro.
L. e sua médica optaram por dizer que ela estava tomando um remédio contra acne, prejudicial à formação do feto. A médica assinou um documento atestando o uso do remédio e L. se programou para marcar um horário com o comitê, que se reúne três vezes por semana. Ela conseguiu uma vaga para o mesmo dia.
O comitê era composto por dois médicos e uma assistente social. L. sentiu que os integrantes suspeitaram que ela não tinha um problema real com acne (não há qualquer indício de acne no seu rosto), mas questionaram se ela queria ter esse filho. L. respondeu, veementemente, que não. Após quinze minutos, ela saiu de lá com um papel assinado permitindo o aborto. O comitê costuma aprovar 98% das aplicações.
Com a permissão em mãos, L. tentou marcar uma cirurgia num hospital público, mas a fila de espera era de um mês. Ela não quis esperar tanto tempo e acabou agendando em uma clínica particular, para dois dias depois. L. sentiu muito apoio emocional dos médicos, num procedimento que durou quinze minutos e uma internação que totalizou cinco horas.
O custo foi de US$ 1.500, mas metade desse valor foi reembolsado pelo plano de saúde do governo e a outra metade pelo seu plano de saúde privado.
L. não se arrepende de ter feito um aborto e se sente agradecida por ter tido essa possibilidade. Mas diz não ser um sentimento agradável e que não conseguiria fazê-lo de novo, caso engravidasse mais uma vez sem querer.
Há uma discussão atual no país sobre a necessidade da existência desse “comitê de terminação da gravidez”, com base na argumentação de que ele torna o processo mais burocrático, levando muitas mulheres a optar por abortos ilegais, mais caros (pois o governo não subsidia, claro), mas mais rápidos. No caso do depoimento acima, o processo legal, via esse comitê, foi bem rápido, já que ela conseguiu uma audição no mesmo dia em que a solicitou. Mas a fila de espera no hospital público era de um mês, o que a levou a uma clínica particular. Ela teve seu dinheiro reembolsado, mas se não tivesse condições de fazer esse pagamento adiantado, teria que esperar um mês inteiro para a realização do procedimento.
De qualquer forma, mesmo com o aborto permitido por lei, há abortos ilegais em Israel (os que não passam pela análise desse comitê) mas a mulher tem a opção de procurar o caminho legalizado. Ou mentir para o comitê, como foi o caso do depoimento acima, em que a médica assinou um documento explicitando o uso de um remédio, inverídico. Destaco uma contradição: Israel é mesmo um país de extremos. Ao mesmo tempo em que libera o aborto em todo território nacional, estabelece por lei que engravidar do amante é uma justificativa para não dar continuidade à gravidez. Tudo pela preservação do núcleo familiar tradicional.
A discussão sobre o aborto não é simples e mesmo com a sua legalidade, há desdobramentos que precisam ser contemplados no debate.
Como esse blog se dispõe a falar abertamente sobre morte, uma abordagem interessante é a discussão se o aborto poder ser considerado morte ou não. Em breve.
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