Visita ao necrotério

Camila Appel

São 5h35 da manhã. Dr. Paulo Salvia me espera na porta da casa da minha prima, em Campinas. Ela me olhou com um misto de admiração e estranhamento quando falei do porquê do pedido repentino de pernoite na sua casa. “Vou visitar o necrotério de Campinas”, eu disse sorrindo, sem perceber o peso da palavra.

Cumprimento Dr. Paulo, recebo um livro de presente que se torna uma ótima distração para o caminho. Ele é médico legista e professor de medicina legal na Unicamp. Leitor do blog, me procurou para compartilhar seus pensamentos em relação à morte e desde então alimentamos uma conversa muito rica. Me convidou para visitar o necrotério da cidade, onde trabalhou por muito tempo. Aceitei a oferta como uma Alice deslumbrada, feliz por ter um desafio pela frente. Nem perguntei se assistiríamos a uma autópsia. O que para ele era óbvio e justamente o motivo da visita. Quando chegamos ao necrotério, ele me levou para vestir “trajes adequados”, como um avental branco, luvas e protetor para os cabelos. Percebi que não tinha mais volta e me convenci de que era aquilo mesmo o que eu esperava ver. O que ele definiu como “morte concreta” pareceu perfeito para a ocasião. O campo de estudo desse blog é tanto a morte concreta quanto a simbólica, por isso era totalmente justificável eu estar ali e agradeço ao Dr. Paulo pela oportunidade.

Assisti a três autopsias, disfarçando um sorriso no rosto, do tipo mulher-moderna-nada-me-afeta e dei graças a Deus que não abriram o bebê na minha frente. Só vi o mini-caixão branco e na saída, o pequeno deitado ainda com seu cordão umbilical. Permaneci com a imagem daquele mini corpinho intocável.

Mas não foi o que aconteceu com os outros três defuntos que estavam lá. Uma senhora, um senhor e uma mulher com as unhas pintadas de rosa, as pontas descascadas, e o pé todo em ferida. Ela era diabética. Quando Dr. Paulo tirou a lona azul que cobria o corpo do senhor, minha reação foi acariciar as sobrancelhas brancas e grossas dele… pensando agora, parece o que a pediatra do meu filho, e amiga, fez comigo na mesa de cirurgia (tive que fazer cesaria), quando ela alisou minhas sobrancelhas segundos antes do parto. Esse gesto foi fundamental para me ajudar a encarar o desconhecido naquela mesa fria. Talvez, inconscientemente, eu quisesse passar o mesmo àquele senhor.

Ele, claro, não reagiu. Poli, o técnico, chegou logo em seguida. É ele quem faz a autópsia, retira os órgãos e os deixa expostos numa tábua para o médico responsável fazer o relatório formal do motivo da morte, que Poli mesmo já sacou muito antes da entrada do médico. Poli tem movimentos rápidos e certeiros. Concentrado, passa de uma etapa à outra como alguém cumprindo tarefas automáticas de um trabalho massificado. O primeiro movimento é colocar a cabeça dos defuntos apoiada numa espécie de cavalete, chamado “apoiador de crânio” e cortar suas roupas.

O senhor vinha do hospital, ainda tinha um fraldão e marcas de agulha, algodão e esparadrapo. Na mesa ao lado, a senhora vestia pijamas. Pensei sobre as tantas vezes que ela usou esse traje, onde o comprou ou se ganhou em alguma data especial, como o Natal. Mas naquele momento, é apenas um obstáculo a mais para uma operação necessária e cotidiana, a autópsia.

Poli pega uma espécie de tábua de plástico branca e a apoia na mesa, sob as pernas deles. A tábua serve para colocar os órgãos extraídos. Com uma faca, em segundos rasga o couro cabeludo de orelha a orelha, para expor o que se chama tábua óssea. A pele que solta é virada e cobre os olhos do morto. Com uma serra elétrica, ele abre o crânio e retira o cérebro. Minha reação estúpida foi comparar a imagem da cavidade cerebral a um romã. Ninguém deu bola. Logo depois, sua faca faz um corte longitudinal, de cima do peito até embaixo do umbigo. Salta uma massa amarela, a gordura, e costelas, que é o tórax. De lá, ele retira o coração, rim, fígado, baço, e eu vejo um brilho no olhar de Poli ao constatar a causa mortis com rapidez. Um coração infartado que causou um tal de tamponamento do pericárdio, um fígado todo enrugado, áspero, sinais de pressão alta, de tabagismo, de alcoolismo, dos ismos mortais da nossa era. Tá tudo ai. A morte não mente.

Pensei em como o corpo humano, algo que considero sagrado, é frágil. Com apenas um movimento é inteiro dissecado, o que estremeceu de certa forma, o lugar intocável em que eu concebia a raça humana.

Dr. Paulo me convidou para sentir o ar dentro do pulmão, amassando o órgão, que no momento me parece melhor definido como uma massinha lisa, aerada, mistura de areia com papel-bolha. Toquei o último suspiro de alguém, e pensei no que Clarice Lispector acharia disso.

Admirei o entusiasmo do doutor, falando sobre como o SVO (Serviço de Verificação de Óbitos) é uma escola formidável, por apresentar tantas peculiaridades em um só corpo, como os rins da senhora, um deles atrofiado, o super-coração da outra mulher, os canais entupidos do outro coração que tinha marcas amarelas (desculpe Dr. Paulo, mas esqueci completamente o que elas significam). O doutor me convidava para tocar em tudo e eu meio que pedia uma espécie de permissão mental e estendia o dedinho cambaleante.

Não vi os corpos serem fechados. Quando fui embora, os três estavam lá, parecendo bonecos de plástico de efeitos especiais de cinema. Todos abertos, com os órgãos expostos ao lado, aguardando a chegada do médico. Não pareciam “reais” e a imagem certamente remeteu a um açougue. Talvez o símbolo mais humano era a etiqueta no tornozelo indicando o nome e sobrenome de cada um, e a lembrança de que pertencem a uma família.

Um quarto corpo era o de um homem jovem, muito machucado, que morreu de traumatismo craniano por cair de uma altura de quatro metros. Mas não vi a autópsia dele porque seria feita pelo IML (Instituto Médico Legal) e era necessário esperar o médico do IML para iniciar os procedimentos. Em Campinas, o SVO e o IML funcionam no mesmo espaço. Os corpos que vêm para o SVO são os de morte natural, como morrer em casa, enquanto que os que vêm para o IML são de causas externas, como traumas e acidentes de carro. Ali, também se recebe corpos de outras sete cidades como Valinhos, Paulínia e Indaiatuba.

Notei um balde de pó de serra na sala. Dr. Paulo me falou que ele é usado para preencher os espaços vazios após a autopsia e ainda disse que muitas vezes utilizam jornal para preencher a cavidade cerebral.

Depois de fechado, o corpo é levado para uma outra sala para ser preparado para o velório. Essa sala é pequena e comprida, com caixas de velas e flores empilhadas. Me refugiei nela em alguns momentos para me afastar do cheiro da autópsia. Para mim, a pior parte de todo processo. Esse cheiro ficou alguns dias impregnado e é indescritível. Dr. Paulo e Poli não o percebem mais, ou pelo menos não se incomodam com ele.

Saí dessa experiência com a sensação de que a morte concreta é menos assustadora do que a simbólica, e lembrei da minha mãe apontando uma passagem de um livro*: “o penoso na morte é o verbo ativo: morrer. Estar morto, tudo bem”.

Na saída, vi pessoas aguardando perto da entrada do Cemitério dos Amarais (onde fica o necrotério) e questionei se eram familiares daquelas que acabei de ver serem autopsiadas. Senti respeito e compaixão, como se eu compartilhasse uma intimidade com elas. E a singela sensação de que sim, o que sobra é somente um corpo, um recipiente para algo maior, talvez. O que estava na mesa era apenas uma representação simbólica do que foram em vida, a ser mantida viva na memória dos que ficam.

Quando fecho os olhos, às vezes vêm imagens de um órgão ou outro, ou um rasgo na pele com se fosse papel, ou o cheiro, mas prefiro me ater ao movimento do carinho na sobrancelha daquele senhor, e o pensamento de que vai ficar tudo bem.

Encontro motivação na ideia, talvez ingênua, de que posso de alguma forma, contribuir para a desmitificação do desconhecido, dessa realidade que nos amedronta e ao mesmo tempo empolga, como um encontro amoroso que uma hora ou outra, há de acontecer. Prefiro manter a poesia e arriscar sofrer mais com a morte simbólica do que me submeter apenas à praticidade de tudo que a cerca. E sigo no caminho desse blog, em ter a honra de fazer uma autópsia da morte em vida. Com a suave sensação de que o morrer é mesmo mais aterrorizante do que o estar morto.

 * “A força da palavra”, de Betty Milan”, ed. Record, 2012, página 195, entrevista com Jean D`Ormesson.

Gostaria de agradecer ao Dr.Paulo Newton Danzi Salvia, ao Erivelto Luís Chacon – Analista Técnico da Divisão Funerária da SETEC e ao Dr. Ivan de Mello Pompeu Piza.

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