Testemunha do tempo

Camila Appel

Um fim se aproxima, e pelo menos sobre esse fim podemos nos dar o prazer de dizer que ele é apenas necessário para o início de um novo começo. Nos jogamos no desconhecido com a certeza de que o amanhã virá, e o conforto de que à meia noite comemoraremos essa transição e continuaremos vivos para testemunhar mais um pouco do que já já virará história.

Viva o mundo dos vivos. Nele sou sua vizinha, brincamos de casinha, formamos família, perdemos pessoas amadas, passamos por fins e recomeços e respiramos sem pensar a respeito. Hoje desligamos o piloto automático, refletimos sobre planos e revisitamos o que conquistamos até aqui, procurando sentidos.

Por ser um momento de busca por sentidos, aproveito o pensamento do sociólogo Norbert Elias, já abordado num post anterior, onde ele diz que há uma conexão entre como uma pessoa vive sua vida e como ela morre. O modo como ela morre depende do quanto sente que alcançou seus objetivos, do quanto sua vida foi realizada e significativa ou frustrada e sem sentido.

Estamos vivendo um processo de individualização profundo, cada um busca um sentido para sua vida como um ser isolado do mundo e quando não o encontra, se depara com um sentimento de vazio e desilusão que pode permear o fim do ano como um sensação de felicidade inatingível.

Elias diz que para muitas pessoas a busca por sentidos é um fardo, uma responsabilidade que não é bem vinda, e por isso buscam alguém que alivie esse peso, formulando para elas os objetivos que farão com que suas vidas sejam dignas. Esperam, assim, um sentido pré-determinado, vindo de fora, que dê direção às suas vidas.

Na virada do ano, transformamos esse fardo em esperança, procurando visualizar um futuro melhor, formando resoluções que nos satisfaçam e tragam conforto sobre como aprimorar nossa vida.

Um dia ela acabará e o mundo continuará a existir sem nós. Os anos passarão mas permaneceremos vivos na lembrança dos que ficam, até desaparecermos completamente, cumprindo com o único destino que iguala todos os seres vivos, como diz Ariano Suassuna, morto nesse ano, em um trecho do Auto da Compadecida enviado na carta de final de ano do 4Estações: “Não tem mais jeito, João Grilo morreu. Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre”. “

O fim de um ano, como mudança de ciclo, é uma espécie de morte, bem vinda e esperada. Os dois podem ser vistos como uma viagem. Na morte não sabemos para onde vamos, como seremos, nem podemos exercer o poder de escolha. Já na passagem do ano, temos o privilégio de decidir o que levar na mala e o que deixar para trás. É o único fim em que continuamos presentes. Há certa honra e humildade em ver esse novo nascer do sol e poder ser, mais uma vez, testemunha do tempo.

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