Oração ao cadáver desconhecido
A “Oração ao cadáver desconhecido” é normalmente exposta na entrada das salas de aula de anatomia. Estudantes de medicina são encorajados a lerem-na antes de uma autópsia. É o que me contou o doutor André Filipe Junqueira dos Santos, médico geriatra do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
A partir do depoimento dele, achei interessante compartilhar o ponto de vista de dois médicos sobre a autópsia, complementando a minha visão exposta no post “Visita ao Necrotério”. Segue, abaixo, o depoimento do Dr. André e logo em seguida uma conversa com dr. Paulo Danzi Salvia, que me acompanhou na visita.
“Ao ler o seu post e seu primeiro contato com um cadáver, lembrei-me de minhas aulas de anatomia. Estas aulas acontecem nos primeiros anos do curso de medicina e de outras faculdades de saúde (enfermagem, odontologia). Para muitos alunos é a primeiro contato com uma pessoa morta, pois alguns nunca foram a um velório ou viram um morto em outra condição (reflexo atual de nossa sociedade em esconder a morte). Como a maioria dos alunos tem menos de 20 anos de idade neste momento, existem muitas fantasias e receios em participar desta aula. Na entrada do laboratório de anatomia de minha faculdade, existe uma oração ao cadáver desconhecido, a qual um professor de anatomia solicitava sempre que lêssemos antes de entrar nas aulas. Esta oração e outras atitudes que ele cobrava durante as aulas, foram as primeiras lições que tive para como auxiliar alguém em situação de vulnerabilidade, pois respeitar o cadáver é um passo fundamental para entender a vida e sua fragilidade e com isso respeitar o próximo, quanto ele se encontrar vivo e doente. Ainda hoje, apesar de todo recurso tecnológico existente, a causa da morte só é descoberta após uma necropsia. A anatomia e o estudo dos cadáveres é um tema de grande fascínio na medicina ao longo dos séculos. A história da anatomia conta com a contribuição de grandes artistas, como Leonardo da Vinci, Rembrandt e outros”.
Leonardo da Vinci (1452-1519) foi pioneiro do registro da anatomia do corpo humano. O livro “Os Cadernos Anatômicos de Leonardo da Vinci” (Ateliê editorial, 2012), reproduz 1200 desenhos anatômicos do artista. “No Renascimento, artistas como Leonardo aproximaram-se de médicos-anatomistas para retratar melhor a forma humana em pinturas e esculturas. Eles foram chamados de “artistas-anatomistas”, segundo Charles O’Malley (Universidade de Stanford)”, como diz o artigo “Leonardo da Vinci, o Desbravador do Corpo Humano”.
Para entender o impacto de uma autópsia, dr. André indica o livro “O Físico” de Noah Gordon, que se passa na Idade Média, quando a Igreja Católica proibia o procedimento. “Há uma cena em que o protagonista participa pela primeira vez, de forma secreta, de uma autópsia e fica maravilhado com ver o corpo humano por dentro, em uma época que o conhecimento médico era muito limitado”, ele diz.
“O Físico” teve uma adaptação recente para o cinema (estreou em outubro de 2014 no Brasil). Veja uma crítica da Folha aqui.
Segue, abaixo, a “Oração ao Cadáver Desconhecido”.
“Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que em seu seio o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a humanidade que por ele passou indiferente.” Karl Rokitansky (1876)
Dr. Paulo Danzi Salvia, médico legista e professor de medicina legal na Unicamp, que me acompanhou na visita ao necrotério, diz ter um olhar técnico e o pensamento voltado para critérios científicos, ao acompanhar uma autópsia. Ele vê o corpo como uma máquina, comparação herdada de sua criação, pois seu pai consertava televisores e rádios e Dr. Paulo cresceu observando o pai “dissecando esses instrumentos”, como ele colocou.
Se tinha algum defeito na imagem da TV por exemplo, era necessário abri-la e investigar o problema, medindo as voltagens das resistências. Esse meio investigativo foi decisivo para a decisão de sua profissão. “O corpo, como a máquina, precisa de um equilíbrio, quando ocorre um desequilíbrio e uma peça não funciona direito, você busca consertá-la, quando esse desequilíbrio é muito grande, o organismo não dá conta e morre. Aí, inicia-se a busca de o motivo do corpo ter parado de funcionar. Às vezes, a causa é evidente, mas há muitos casos em que ela não é”, ele diz.
Será evidente, por exemplo, quando é possível observar o defeito diretamente no órgão e ele ter sido responsável pela morte da pessoa, como acontece nos casos de cirrose, cardiomegalia por hipertensão que pode levar a um infarto, ou quando se observa um rompimento de uma artéria cerebral que levou ao acidente vascular cerebral. No caso do IML (Instituto Médico Legal), para onde vão os corpos mortos por causas externas, é comum ter-se causas evidentes, como ferimentos causados por acidentes com arma de fogo ou trauma craniano por queda de moto.
Quando a causa não é evidente, é necessário investigar. Envenenamentos ou intoxicação por excesso de remédios podem não deixar vestígios claros.
Dr. Paulo também gosta dos aspectos simbólicos da autópsia. A morte não existe, mas sim os medos relacionados a ela e a dor da perda, “são os símbolos da morte que mobilizam a humanidade”, ele diz. Ele é encantado pelo funcionamento das coisas, do corpo humano e da sociedade e vai fundo na sua investigação, fez dois anos de filosofia e acredita que ela seja a base de tudo, por estudar o mecanismo do raciocínio em si.
Depois de acompanhar três autópsias ao lado de dr. Paulo, admirei o entusiasmo com que ele investigava o corpo humano e imagino não ser possível fazer esse trabalho sem a companhia de um pensamento cartesiano e o olhar do cadáver como uma máquina. Claro que a máquina copia o corpo e não o contrário, mas o distanciamento que essa relação proporciona possibilita o trabalho dos médicos, ao mesmo tempo que os distancia. A ideia, lembrada pelo dr. André, dos professores estimularem respeito a um corpo, mesmo que sem vida, é bem vinda. Afinal, ele será sempre será considerado intocável e amado por alguém.
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