A tal da boa morte

Camila Appel

Na discussão sobre o que é uma boa morte, fala-se muito em ortotanásia – deixar que a morte ocorra de forma natural, sem o uso de aparelhos que mantenham a vida artificialmente, por exemplo. É a permissão para não se prolongar a vida a qualquer custo, “assim, quando chegamos numa situação de terminalidade, onde se está no limite da medicina, podemos fazer cuidados paliativos, não prolongando a vida e procurando oferecer o maior conforto possível. É um campo que tem se desenvolvendo muito e conta com critérios para uma morte digna”, disse o médico Dr. Max Grinberg numa entrevista para esse blog.

A boa morte foi o tema da semana passada do podcast Mamilos, do site Brainstorm9, do qual participei. O assunto surgiu após a divulgação de que a advogada Rosana Chiavassa conseguiu ter seu testamento vital autorizado pela Justiça, explicitando o desejo pela ortotanásia, já permitida pelo Código Ético Médico mas não prevista em lei.

A sentença foi dada em junho de 2013, mas a advogada só quis divulgar o caso agora. O testamento vital, contendo as orientações de quais procedimentos a pessoa deseja passar e quais não aceitará, pode ser registrado em cartório e num banco de dados específico, como o organizado por Luciana Dadalto, articuladora do tema no Brasil. Veja uma entrevista com ela no post “não é uma questão de morrer cedo ou tarde mas de morrer bem ou mal”. Ele deve ser feito enquanto a pessoa tenha plena capacidade de juízo crítico, o que abre espaço para polêmicas. Há outras questões, como o fato dos tratamentos existentes evoluírem rápido e o testamento vital poder estar desatualizado no momento de sua efetivação.

 A discussão do podcast teve a presença da médica especializada em cuidados paliativos Milena Reis, a pesquisadora Jussara Almeida e as organizadoras do canal Juliana Wallauer e Cris Bartis. Fala-se de testamento vital, cuidados paliativos, a boa morte, morte digna, autonomia e como lidar com os desafios de ter um parente em processo de final de vida. Há bons links disponíveis para consulta no site do Mamilos.

Dra. Milena questiona o papel da tecnologia no lidar com a morte. Até onde ela pode ir? Ela faz um paralelo entre parto humanizado e a morte natural, na medida em que se discutimos um, poderíamos muito bem discutir o outro. A morte saiu de dentro das casas e está cada vez mais isolada no hospital, um ambiente solitário por essência. O isolamento é até necessário para garantir a esterilização do espaço. “Dizem que higienizamos o processo do morrer”, Jussara fala.

 Dra. Milena assina de 8 a 10 atestados de óbito por semana. Perguntei se ela pensa em boa ou má morte ao ver alguém morrendo. Ela respondeu que: “a gente morre como a gente viveu. Não dá para generalizar, mas se você teve amigos, eles vão estar lá, se você teve família por perto, eles também estarão lá. Estou falando de uma condição emocional, porque ela é determinante para o paciente morrer bem. Podemos ter muitos remédios e a sedação para deixar o paciente mais confortável, mas nada adianta enquanto não chegar o filho que aquele paciente estava esperando”.

Dra. Milena dá a entender que uma boa morte é aquela que ocorre em casa, ao lado de quem se ama. Mas ela destaca que morrer em casa não é algo fácil de ser organizado, porque muitas famílias não têm estrutura emocional para cuidar de um doente terminal, ou mesmo física, como a cadeira de rodas não passar pela porta de entrada. O alto custo de um “home care” também pode impossibilitar o processo.

O podcast também menciona o quanto algumas terminologias podem gerar preconceitos, como testamento vital, uma tradução errada feito da palavra em inglês, living will (will pode ser entendido como vontade e testamento. Nesse caso, a tradução correta seria “vontade em vida”). E cuidados paliativos é normalmente associado de forma negativa a paliativo, como um remendo, uma gambiarra, e assim, algo de menor valor. Há um grupo de estudiosos que defende a mudança do nome. Alguns hospitais usam a terminologia controle de sintomas. Para Dra. Milena, o nome é o menos importante. O grande preconceito disso é que se fala em cuidados paliativos quando a pessoa está prestes a morrer. Mas na verdade ele começa muito antes, logo no diagnóstico da doença e todo médico deveria ter formação em cuidados paliativos. “Toda doença que tem risco de morte é passível de cuidado paliativo”, Dra Milena diz, “ela envolve controle de sintomas e vai além da dor física. É uma abordagem psicossocial e também espiritual, respeitando-se a autonomia da pessoa”.

“Não sabemos nascer, também não sabemos morrer”, Cris Bartis diz. Ela fala sobre o conceito da palavra dignidade, ao lembrar de casos em que o agravamento da doença desfigurou conhecidos e os impediu de conviver, trazendo o questionamento: isso é vida?

 Juliana Wallauer fala sobre o quanto estamos dispostos a lutar pela vida e quem vai decidir que coisas podemos nos submeter numa tentativa desesperada de sobreviver, quando o paciente não tem o direito de decidir o que é, para ele, uma boa morte.

 A pauta é complexa e cheia de desdobramentos. Uma imagem que me veio foi a famosa cena da morte de Don Corleone, no filme “O Poderoso Chefão” – ele tem um ataque cardíaco fulminante, enquanto brinca com seu neto na horta de casa. Suas últimas palavras, que aparecem no livro mas não no filme, são: “A vida é tão bonita”. Quem sabe foi esse o intento do autor, oferecer uma boa morte a um dos personagens que se tornaria um dos mais marcantes da história do cinema.

Podcast Mamilos 10