Mitos e verdades sobre o aborto espontâneo
No meio de sua palestra sobre mudanças climáticas durante um congresso em Costa Rica, ela, grávida de quase dois meses, começou a sentir uma cólica insuportável. Lembrou das palavras da ginecologista, dizendo que era bem provável essa gravidez “não ir para frente”. Não foi.
Essa mulher é uma em dez que sofre aborto espontâneo. Um “processo”, se assim posso chamá-lo, pouco falado em público e por isso talvez rodeado de más informações e mitos. Abaixo, seguem alguns deles, respondidos com a consulta à ginecologista e obstetra, Dra. Albertina Duarte.
O aborto espontâneo acontece com mais frequência do que se imagina: verdade. Dra. Albertina diz que a cada dez mulheres que engravida, uma poderá ter sua gravidez interrompida. Ainda existem aqueles que são chamados de “silenciosos”, podem ser interpretados pela mulher como atraso menstrual e não abortamento espontâneo. Alguns ginecologistas mencionam a taxa de 15% a 20% de abortamento espontâneo após o atraso menstrual e de 30 a 40% antes dele (entre a fecundação e o atraso menstrual).
Não se fala muito a respeito por ser considerado natural: mito. As mulheres não saem por aí contando porque sentem dor ao compartilhar essa história e pode haver vergonha em ter perdido um bebê, como se de alguma forma estivesse conectado a um fracasso pessoal. Arrisco dizer que há certo machismo na ideia de existirem mulheres boas parideiras e as más e assim, perder um bebê faria com que a mulher diminuísse seu valor.
“A natureza é sábia” é um bom conforto: parcialmente verdade. Eu mesma já usei essa frase com uma amiga e me arrependi ao ver a expressão no rosto dela. Não parece servir de consolo algum. Mas tem um fundo de verdade, porque quanto mais precoce a gravidez, antes das 12 semanas, maior a possibilidade de haver uma malformação do feto que leve ao aborto. Fisicamente, o útero tende a espontaneamente eliminar a gravidez que não está indo bem.
O aborto espontâneo é culpa da mãe, por não estar em boas condições de saúde: mito. Ele ocorre por uma infinidade de fatores, nem sempre ligado ao estado de saúde da mãe. Por exemplo, o espermatozoide pode carregar alguma infecção, ou doenças sexualmente transmissíveis, como clamídia e gonorreia. Os espermatozoides também podem ser contaminados por doenças não sexualmente transmissíveis, como o estreptococos.
Aborto espontâneo é castigo de Deus: mito. Existem explicações clínicas para ele e a mulher deve investigar suas causas a fim de evitar futuras ocorrências.
O aborto espontâneo pode acontecer por desejo mental da mulher: mito. Não é possível abortar com o poder da mente. Mas com a coincidência do desejo de ter a gravidez interrompida e a ocorrência do fato, pode surgir culpa.
Por ser natural, não dói: mito. Ele pode ser bem dolorido e amenizado com analgésicos. Mas há uma forma de aborto espontâneo “silencioso”, que não é muito dolorido e normalmente confundido com a menstruação.
Ele pode estar relacionado a alterações hormonais e à falta de vitaminas: verdade. A falta de vitamina D e de ferro pode contribuir para o aborto espontâneo. Alterações hormonais, como baixa progesterona, também.
A mulher fica enlutada após o aborto espontâneo: verdade. O luto se intensifica por ser um luto solitário, porque é mais difícil compartilhá-lo. Ele é menosprezado pela sociedade com frases como: “ah, logo mais você faz outro”, ou: “vocês já tem dois filhos, não precisa de um terceiro”. Há relativamente pouco tempo para lidar com esse luto porque, por lei, a mulher deve voltar a trabalhar após 15 dias da licença médica. E ele aparenta ser maior quando é necessário enterrar o feto – exigido se pesar mais de 500g, equivalente a aproximadamente 4 meses de gestação. Após a 20ª semana de gestação, não é mais considerado abortamento espontâneo, e sim parto prematuro.
No próximo mês, já deve-se tentar engravidar de novo: mito. Aconselha-se esperar 90 dias para tentar uma próxima gravidez.
Há medicamentos que podem induzir o aborto, como efeito colateral: verdade. Principalmente alguns medicamentos para emagrecer e contra acne.
Stress e depressão podem contribuir para o aborto espontâneo: verdade. Não se sabe o nível da participação desses itens, mas precisam ser considerados. Um stress muito intenso pode alterar a prolactina, facilitando o aborto espontâneo.
O aborto espontâneo pode ser considerado uma morte: não se sabe, porque nunca tivemos essa discussão publicamente. A definição clínica seria – é um embrião que não viveu. “Para muitas pacientes é considerado uma morte”, Dra. Albertina diz.
Atualização em 5 de março:
Inspirada por alguns comentários deste post, decidi inserir um novo mito aos acima. Segue:
O aborto espontâneo só é sentido pela mulher: mito. Os homens não passam por uma dor física mas podem sentir a perda de um possível filho e passar pelo processo de luto. Pode haver um sentimento de impotência para lidar com a situação e também precisam de cuidado e atenção.
Atualização em 30.03
Dr. Salmo Raskin, médico especialista em Genética Clínica, colocou algumas ponderações complementares a esse assunto que são importantes de serem destacadas. Um ponto indicado por Dr. Raskin é o de ser fundamental investigar-se as causas do aborto espontâneo para evitar novas ocorrências.
Em sua área específica de atuação, essa investigação dará bases para um aconselhamento genético mais preciso, apontando se há ou não risco elevado de um novo aborto pela mesma causa, ou até um risco do nascimento de uma criança com comprometimento de causas genéticas. Um exame importante é o Cariótipo, que é a análise dos cromossomos do material fetal ou embrionário, feito na curetagem – procedimento realizado em alguns casos de aborto espontâneo no qual há a necessidade de se retirar esse material do útero da mulher. Outro exame complementar é o exame anatomopatológico da placenta e do feto, que pode ser proveitoso para causas como as displasias, mas não deve ser o único exame solicitado, como ocorre em muitos casos.
Dr.Raskin destaca que de 50 a 60% dos casos de aborto espontâneo ocorrem por uma malformação do feto em consequência de uma alteração cromossômica. Mas há outras causas relevantes que devem ser investigadas, como as imunológicas, como por exemplo, a trombofilia – situação em que a mulher tem uma tendência a coagular o sangue exageradamente, levando o sangue da mãe a não passar corretamente par a placenta. Também existem causas de natureza infecciosa, como o parvovírus B-19. O aborto pode ocorrer devido a uma malformação da anatomia do útero da mulher, como o útero septado – quando há uma espécie de trava no meio do útero, impedindo o desenvolvimento do embrião.
Sobre a possibilidade de causas hormonais para o abortamento espontâneo, Dr. Raskin menciona que o hipotireoidismo é mais relevante do que a baixa progesterona para incentivar a ocorrência.
Dr. Raskin diz que se deve separar a mulher que teve apenas um aborto, das que tiveram abortos consecutivos, pois são situações muito distintas. Em caso de apenas um aborto espontâneo, a alteração cromossômica faz-se a causa mais comum, mas no caso de abortos consecutivos, não. Esse tipo de alteração (cromossômica) ocorre como um incidente casual e pontual, ao passo que a reincidência indicaria outras causas e devem ser investigadas para poder direcionar um tratamento e evitar futuras ocorrências.
Sobre o mito O aborto espontâneo é culpa da mãe, por não estar em boas condições de saúde, Dr. Raskin aponta que não há evidências cientificas de que o espermatozóide seja uma fonte de vírus ou bactérias que contaminam a mulher, mas ele pode ocorrer sim independente das condições de saúde da mulher.
Segue um bom artigo indicado pelo Dr. Raskin, sobre abortos espontâneos consecutivos (em inglês): Evidence-based management of recorrente miscarriages, publicado no Nacional Center of Biotechnology Information.