EQM – Passagem de ida e volta para a morte

Camila Appel

Um dos maiores mistérios da existência humana é a compreensão do que acontece com a nossa consciência após a morte. Continuamos como observadores de um outro mundo ou apagamos completamente? Uma forma de buscar respostas é pesquisar sobre as “experiências de quase-morte” (EQM), termo traduzido de “near-death experiences”, criado em 1975 pelo pioneiro nos estudos desses fenômenos, o médico americano Raymond Moody Jr. São experiências subjetivas que ocorrem em situações ameaçadoras de vida. Os elementos mais comuns são: sentir paz, total serenidade, ver um túnel ou uma luz forte, encontrar parentes falecidos, revisar a vida, sair do corpo e vê-lo de cima, e retornar de forma consciente ao corpo.

Não há consenso entre os pesquisadores sobre a melhor forma de definir esse tipo de experiência e nem como estudá-la. O desafio é conseguir separar reações fisiológicas ou delírios de uma real consciência. A forma que parece mais concreta para uma investigação, e a mais utilizada, é o uso de casos de parada cardíaca, quando a pessoa é considerada clinicamente morta e volta a viver, relatando ter estado consciente durante o período em que estava morta.

E por que interessa à ciência investigar esse tipo de experiência? Porque a implicação disso é enorme. Se a consciência funciona mesmo com o cérebro parado, implica que ela é uma entidade independente do cérebro, ou seja, não é apenas fruto de conexões elétricas e químicas dos neurônios. Isso contradiz a concepção de que a mente e a consciência são produtos de atividade neural, dando mais um nó na cabeça dos cientistas, que não sabem ao certo nem como os pensamentos são formados ou como a subjetividade e o “eu” consolidam-se em nosso ser. O vencedor do prêmio Nobel, Dr. John Eccles, defende que a consciência é uma entidade a parte, ou seja, não pode ser reduzida apenas a atividades cerebrais. As experiências com EQM poderiam contribuir nesse sentido.

Um médico destemido, Sam Parnia, consolidou-se como um especialista em ressuscitação. Ele diz que “ninguém que morra de algo reversível deve morrer mais disso”. Além de investigar formas mais eficazes de ressuscitar pacientes, Dr. Parnia dedicou-se a um estudo intitulado “Aware Study”. A sigla “Aware” refere-se a “awareness during resuscitation” e quer dizer “consciência durante o processo de ressuscitação”. Dr. Parnia pretendia demonstrar a existência de uma consciência após a morte, confirmando de forma objetiva as experiências de quase-morte, mas nesse sentido, não conseguiu. Após a divulgação dos resultados, passou a dizer que o importante era “abrir portas para novas descobertas”. Alguns veículos da mídia resolveram pular na onda do vendável e da informação rápida e sucinta e divulgar sumários pobres sobre os resultados da pesquisa, com títulos como: “First Hint of Life Afte Death in Biggest ever Scientific Study” (“Primeiro indício de vida após a morte no maior estudo científico de todos os tempos”), reproduzidos com rapidez no Brasil e compartilhado no Facebook.

O “Aware Study” define-se no seu site como “o maior estudo já realizado nesse campo” – das experiências de quase-morte. Foram estudados 2060 pacientes que sofreram uma parada respiratória, em quinze hospitais na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Áustria. A pesquisa durou quatro anos e usou um sistema de entrevistas qualitativo e quantitativo, formado em três etapas. Foi a primeira vez que se usou marcadores objetivos para tentar separar as experiências reais dos eventos alucinatórios, com testes que procuraram identificar a validade visual e sonora dos relatos. Utilizou-se placas com imagens específicas colocadas em locais escondidos da visão convencional, mas que poderiam ser vistas por alguém “flutuando acima de seu corpo”, na sala de ressuscitação, para verificar se algum paciente as mencionava, como prova de estarem conscientes durante o processo. Seria uma forma de diferenciar de forma objetiva alucinações ou efeitos fisiológicos de um real evento de “Experiência Fora do Corpo”.

Os casos foram estudados em 2008, mas o resultados dos estudos só foram divulgados em outubro de 2014, na publicação Resuscitation. Do total dos pacientes estudados, 39% relataram a percepção de uma consciência enquanto estavam clinicamente mortos, mas não descreveram eventos específicos. Para Dr. Parnia isso sugere que muitos pacientes podem perder a memória desses eventos após a recuperação, devido a drogas sedativas ou danos cerebrais. Uma das conclusões do estudo é a de que “os temas relacionados à experiência da morte parecem muito mais amplos do que a compreensão que temos deles até agora”. Também se afirma haver “indícios de que algumas memórias de consciência visual são compatíveis com o chamado “experiência fora do corpo” e podem corresponder a eventos reais”. 46% relataram memórias relacionadas aos sete maiores temas cognitivos humanos: medo, animal ou plantas, luz clara, violência e perseguição e deja-vu. Apenas 2% dos pacientes relataram memórias visuais, como ver os médicos na sala.

Após uma parada cardíaca, a atividade elétrica do cérebro cessa em 20 a 30 segundos e só retoma quando o coração volta a bater. Cientificamente falando, não deveria haver nenhuma consciência durante esse período. Alguns cientistas afirmam que o relato de consciência é fruto da atividade cerebral ocorrida logo antes da parada cardíaca ou imediatamente após, nos primeiros segundos da ressuscitação. O indivíduo está inconsciente mas ainda tem ondas cerebrais presentes, dando a impressão de que ocorreram enquanto o corpo estava morto. Isso poderia explicar porque é comum os pacientes relatarem ver um túnel, já que a redução de fluxo sanguíneo para a retina e para o córtex visual, a zona do cérebro responsável pelo processamento da visão, provoca um estreitamento do campo visual.

Pesquisa da University of Michigan, anterior a do “Aware Study”, com ratos em laboratórios, indicou haver estímulos cerebrais isolados e esporádicos mesmo após a parada respiratória. Isso justificaria fisiologicamente as experiências de quase-morte, como sentir paz, pensar em memórias do passado ou mesmo encontrar parentes mortos, oferecendo uma explicação totalmente científica para esse tipo de fenômeno. Os pesquisadores também afirmaram terem encontrado uma prova de que a morte é um processo e não um evento, ou seja, ela ocorre aos poucos. Dr. Parnia critica esse estudo por ele ter sido feito em cérebros de ratos, e por isso pouco poder ser aplicado ao cérebro humano, “não há um modelo animal de experiências de quase-morte”, ele diz. O “Aware Study” foi realizado apenas com seres humanos.

As conclusões da tão esperada pesquisa do “Aware Study” desapontam. Primeiro porque divulga-se que foram estudados 2060 pacientes, mas 1920 deles não puderam ser ressuscitados (ou seja, morreram) ou não foram capazes de dar entrevista, caindo consideravelmente o número de pacientes realmente entrevistados.  Apenas 140 dos 2060 foram realmente estudados para se averiguar a possibilidade de terem tido uma experiência de quase-morte. Muito também se falou sobre a iniciativa do estudo em esconder na sala de ressuscitação placas com imagens específicas, de forma que apenas o paciente pudesse “vê-la” de cima, fora do corpo, para tentar comprovar a presença de uma consciência, de forma objetiva. Mas nenhum foi capaz de identificá-las. Nenhum.

Mas o fato de que 2% dos pacientes tiveram alguma forma de consciência visual verificada (terem identificado um médico que estava na sala, por exemplo) é excitante e indica que há muito ainda para se pesquisar sobre a relação cérebro-consciência, um campo obscuro já não mais privilégio das religiões.

O “Aware Study” pode não ter conseguido resultados convincentes, mas o doutor Parnia tem contribuições importantes no campo da ressuscitação e assim, no lidar com a morte. Ele explica alguns casos interessantes, como o de uma menina que foi ressuscitada após 16 horas morta, no livro “Erasing Death” (“Apagar a Morte”, disponível em português de Portugal, ed. Pergaminho, 2013).

Pelo ponto de vista científico, continuamos com as mesmas dúvidas: a consciência é apenas fruto da atividade cerebral? É o cérebro que ativa a consciência ou é a consciência que ativa o cérebro? E por último, que raios acontece depois que morremos? Continuamos a observar o mundo ou desaparecemos numa infinita gelatina sem cor e cheia de granulados, que me parece ser a galáxia em que vivemos.

Arrastada por 50 metros no asfalto – o depoimento de Vania Toledo

A forma mais popular de nos referirmos a uma experiência de quase-morte é nos casos em a pessoa sobrevive a um acidente grave e relata memórias sobre o período em que esteve desacordada, por exemplo. Escutamos depoimentos de amigos e nos assustamos com a vivacidade e profundidade da experiência. Não há dúvidas de que passar por uma situação de risco iminente de morte é transformador. Os relatos são vívidos e intrigam também por assemelharem-se muito uns aos outros. Os elementos presentes numa experiência de quase-morte já foram definidos por pesquisadores e confirmados com depoimentos. Apesar de não haver consenso e nem provas concretas quanto a uma explicação científica para sua ocorrência.

Conversei com a fotógrafa Vania Toledo sobre um acidente gravíssimo que ela teve em 1991. Num momento da sua recuperação, foi dada como morta por 11 médicos.

Numa tarde de domingo, Vania saía de um cinema na rua Augusta em São Paulo quando foi atropelada por um carro. Ela segurou no para-choque para levantar-se mas o motorista resolveu sair andando como se nada tivesse acontecido, arrastando Vania por 50 metros, grudada no para-choque. As pessoas na rua começaram a gritar e a polícia interveio, acionando a sirene. O motorista finalmente parou. Ele e seus três amigos estavam bêbados.

Vania desmaiou e conta ter se visto de cima, morta no asfalto. “Parecia que eu estava numa grua de cinema, bem alta, como se estivesse nas nuvens. Na minha frente, tinha um brilho muito forte, como uma luz diretamente nos meus olhos. Eu sentia paz misturada com medo. Acho que era o medo do desconhecido, porque eu senti que estava indo embora, mas eu adoro a vida e gostaria muito de viver”, diz Vania. Ela considera que o medo a trouxe de volta, junto com a força da vontade de criar seu filho e continuar seus projetos.

Após o acidente, ela leu outros relatos sobre esse tipo de experiência e, numa conversa com o dramaturgo Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), que era espírita, entendeu ter visto o túnel da morte, que liga a vida real com a vida após a morte.

“Quando eu vi os bombeiros chegando, eu voltei para o meu corpo”. Vania foi para o Hospital Santa Casa, onde passou por 22 cirurgias. De lá foi transferida para o Hospital Sírio Libanês, em que permaneceu por seis meses e meio na UTI. Seu ortopedista a chama de “milagre”. Ela foi dada como morta em consequência de uma septicemia (infecção generalizada grave). Sobreviveu.

“O que eu passei não foi uma fantasia, é algo profundamente íntimo e doloroso para mim, algo que eu nunca conto para ninguém”, afirma Vania. “É como se eu tivesse visto o portão que dá para o outro lado, mas eu decidi não abrir e não entrar. O fato de você sobreviver a isso e poder constatar a força da recuperação e de reverter todos os prognósticos médicos, é no fundo, a força da vida. É a possibilidade de decisão interna que temos de dirigir pelo menos um pouquinho o nosso destino, o mínimo poder de decisão que o ser humano tem de viver ou não”.

Vania comemora seu aniversário todo ano no dia 11 de novembro, dia do acidente. “É uma nova vida que me foi dada a viver”.