“Para Gelar a Alma” – Edgar Allan Poe é encenado em cemitério
Se os contos de Edgar Allan Poe (1809-1849) já são perturbadores, mais macabros ainda podem ficar ao serem contados dentro de um cemitério. Seu universo inquietante é mesclado ao das benzedeiras do imaginário brasileiro em “Para Gelar a Alma”, peça teatral em cartaz na capela do cemitério Consolação em São Paulo.
Zeza Mota, atriz do grupo Na Companhia de Mulheres (fundado há 11 anos) e uma das idealizadoras do projeto, conta que o intuito inicial era fazer um espetáculo infanto-juvenil. “Queríamos atrair a atmosfera de medo das histórias de terror contadas ao redor da lareira que costumávamos ouvir quando criança. Um clima de suspense mas, ao mesmo tempo, de aconchego”.
O diretor e dramaturgo da peça, Márcio Araújo, conhecido como um dos criadores do programa Cocoricó (TV Cultura), afirma que o suspense é pouco usado no teatro. “Isso é mundial, normalmente se opta pela comédia ou pelo drama. Foi muito interessante explorarmos esse gênero e os limites do que faz realmente as pessoas sentirem medo”.
Ele escolheu três contos de Poe para a inspiração do texto, baseado nos maiores medos, reais, das três atrizes da peça. O medo de sofrer tortura, retratado em “O Poço e o Pêndulo” (1842), o medo de morrer afogado, abordado no conto “Descida ao Maelström” (1841), e o pânico de ser enterrado vivo, esmiuçado por Poe em “O Enterro Prematuro” (1844), pelo olhar de um narrador em primeira pessoa (como em todos seus contos) que sofre de catalepsia. Como são contos com personagens masculinos, os nomes das benzedeiras foram definidos com referência a personagens femininos de outras histórias – Morella, Berenice e Ligéia.
Os contos escolhidos traçam destinos cruéis mas com finais de alívio. São homens que sobrevivem à morte em sua tortura máxima, além da física, uma tortura psicológica. É a superação daquilo que tanto atrapalhou a felicidade de Poe – angustiava a morte prematura da sua mãe, da madrasta, do irmão e da amada esposa. Apesar de já ter pedido uma mulher em casamento num cemitério, dizem terem-no visto diversas vezes chorando ao pé da lápide (da esposa) e mesmo sobrevivendo a torturas psicológicas da morte em seus contos, cedeu a um misterioso fim. Encontrado após dias de sumiço nas ruas de sua cidade natal, com roupas de outra pessoa pequenas demais para seu tamanho, Poe delirou até morrer, aos quarenta anos.
As figuras das três benzedeiras costuram o enredo da peça, amaldiçoadas a nunca serem felizes no amor. A ideia da maldição é baseada em fatos reais. A tia-avó de Mota conta que uma familiar sua, num belo dia, se apaixonou pelo padre de sua cidade – Pilar, no interior de Alagoas. A bordo de um pequeno barco, se empenharam em fugir para usufruir desse amor, mas acabaram morrendo afogados. A comunidade revoltou-se contra a mulher, que teria levado o pobre padre ao mau caminho, originando a maldição de que todas as mulheres daquela família seriam desgraçadas por todo o tempo, infelizes no amor. Para a tia-avó de Mota, a maldição fez sentido, pois ela enviuvou do noivo e viúva permaneceu até morrer, virgem. Já para Mota, não. Casada há dezoito anos e “muito feliz”, como ela diz.
Cemitério acolhedor
Inicialmente, a peça não foi pensada para um cemitério. Mas surgiu a oportunidade de uma parceria com o Serviço Funerário do Município de São Paulo, que se “empenha em transformar cemitérios em pontos de cultura e lazer, pois são parques de memória e vida”, afirma Lucia Salles França Pinto, sua superintendente. Para ela, a ocupação faz parte de uma mudança de paradigma. “Os cemitérios não são fúnebres, ao contrário, são patrimônios históricos e memória é o que temos de mais vivo na gente”, ela diz. O Serviço Funerário também faz a gestão dos outros 21 cemitérios públicos da cidade e a fiscalização dos 19 particulares.
Essa é a terceira peça que ocupa o cemitério Consolação e a ideia é dar continuidade às atividades culturais e incentivos de lazer, como os shows de música e o cinetério (exibição de cinema no cemitério), além da instalação de wi-fi e dos códigos QR (já em funcionamento), que permitem visitas autoguiadas por meio de um aplicativo do celular. Também há um projeto para classificar o cemitério Consolação como um “museu a céu aberto”. Lucia diz que a única exigência feita às companhias teatrais é que sejam espetáculos com entrada gratuita. Esse em questão, viabilizou-se com o patrocínio de uma fábrica de caixões.
A adaptação a esse novo espaço trouxe algumas poucas mudanças de referências no próprio texto, como uma das benzedeiras que cuidava dos jardins da sua casa e passou a tratar o jardim do cemitério.
Não dá para saber se o espetáculo incomoda os mortos, mas alguns dos vivos já estão reclamando. Familiares alegam que há profanação do local. Como resposta, foi colocado um pano preto em cima de um Jesus crucificado de aproximadamente três metros de altura, para assim descaracterizar a capela como um ambiente religioso. O fato de não haver velórios ali possibilita as atividades culturais a noite, já que sua ocorrência não permitiria tais eventos.
Sobre a expectativa de público, Araújo comenta que espera causar medo e estranhamento, apesar de admitir um lado cômico do enredo. E Mota brinca: “mesmo se não vier ninguém, temos público garantido – Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Paulo Goulart, Tarsila do Amaral, são todos convidados eternos” (referindo-se a alguns dos túmulos mais famosos do Consolação). Mas não serão só os semblantes dos nomes nas lápides que estarão presentes, a temporada inteira já está quase esgotada, mesmo antes de estrear.
Serviço
Onde: Capela do cemitério Consolação – Rua da Consolação, 1660
Com: Abigail Tatit, Zeza Mota e Edi Fonseca
Direção e dramaturgia: Márcio Araújo
Quando: temporada de 13 de junho a 05 de julho. Sábados e Domingos às 19h
Ingressos gratuitos
Capacidade: 40 lugares
Duração: 55 min
Classificação: 12 anos
Estacionamento: vagas gratuitas no local
Reservas por email: paragelaraalma@gmail.com