Obituários: resolvendo o mistério de uma vida

Camila Appel

 

“Doce cantora com cheiro de mel”, “Médico brincalhão especializado em plásticas”, “Rigorosa professora de história de Araraquara”, “Seu Zé: o sorridente mestre da pizza paulistana” são alguns dos títulos dos obituários publicados diariamente numa coluna do caderno Cotidiano desta Folha.

   É um desafio definir uma pessoa em uma linha. Normalmente, os títulos remetem à função que o falecido exercia na sociedade, sua contribuição, sua produtividade. O que me leva a pensar que aquela crise pré-vestibular da escolha da faculdade, da nossa especialização no mundo, possa ser, em última instância, uma escolha enlutada. Decidimos seguir a vida com um codinome que será lembrado na nossa morte e poderá resumir o legado deixado.

   Mas ele não vem só acompanhado de uma tarefa a ser cumprida, seja entreter os outros, curar, educar, alimentar, cuidar da casa e da família, ou gerar riqueza física ao sustentar outros empregos. Ele é seguido por um adjetivo, aquela palavra que nos faz imaginar como um médico se colocava no mundo (de forma brincalhona) ou como uma cantora se expressava e escolhia seu repertório. E no fundo, são eles que nos chamam mais a atenção. Você pode ter escolhido desenhar casas como sua tarefa principal do dia a dia, mas não será somente o resultado imediato delas que marcarão sua existência. E sim, a forma como você se relacionava com o outro.

   Lembro das palavras da médica Ana Claudia Arantes, durante uma palestra que assisti no Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), ao dizer que a essência do ser humano é a amorosidade. Sua afirmação surge de anos de experiência em acompanhar a morte de pacientes, como especialista em Cuidados Paliativos. Ela constata que seus pacientes, logo antes de morrer, sentem uma redenção ao amor. Como uma última chance de expressarmos quem realmente somos. E para ela, quem realmente somos é bonito, o que torna a última lembrança pacificadora e intensifica a vontade de uma homenagem ao morto.

   A publicação de um obituário é uma forma de homenagem e cabe aos jornalistas do caderno levarem esse desejo a cabo.

   Os títulos acima foram criados pelo jornalista Pedro Ivo Tomé, 28, que escreve obituários na Folha. Ele desenvolve mini biografias que podem ser vistas como verdadeiras pérolas literárias. Essa maior liberdade na escrita, em relação às reportagens tradicionais, é um dos motivos que faz Tomé gostar de seu trabalho.

   Ele diz que a escolha de quem será “homenageado” não é fácil, pois a demanda é grande. Muitas vezes ele precisa dizer não à família solicitante, principalmente quando a morte ocorreu há muito tempo e não há uma cerimônia próxima que possa servir de “gancho” para chamar o leitor – como a possibilidade de um amigo do falecido ficar sabendo sobre uma missa pelo jornal.

   O preconceito existe, segundo Tomé, mas não em relação ao trabalho em si. “Muitas famílias acham que eu estou ligando para vender anúncios de morte no jornal e mal sabem da existência de uma coluna diária”. Outra dificuldade é lidar com pessoas enlutadas, que além de exigir sensibilidade, podem não ajudar muito na apuração, por não se lembrarem de fatos memoráveis da vida do ente querido na hora da entrevista, afetadas por um sofrimento agudo.

   Ele já recebeu pedidos para verem a matéria antes da publicação, e quando nega  (devido à ética jornalista, como diz), algumas famílias negam a publicação. Por isso, ele já avisa no início da conversa que o texto só poderá ser visto impresso no jornal.

   Um aprendizado indicado por Tomé é a percepção de que uma família nunca está preparada para a morte, mesmo que o falecimento já seja esperado, pela idade ou por uma doença avançada incurável.

   “A consciência não tira o peso da morte”, é a sua conclusão. Mas captar a essência da vida seria um contraponto a essa consciência, pois pode fazer com que se aproveite melhor a vida, no sentido de relevar coisas de menor importância.

   Tomé não considera a coluna algo mórbido. “Só se fala sobre a morte no último parágrafo. Todos os outros são sobre a vida da pessoa.” Ele diz que seu trabalho o incentiva o olhar para sua própria vida e pensar se ele poderia entusiasmar um obituarista da mesma forma que ele se entusiasma por muitas das vidas que escreve. Mas considera que “todo mundo, no final das contas, tem uma história interessante. Até hoje, em muitos casos, eu me comovo.”

 Dois obituários reconhecidos internacionalmente são o da revista “The Economist” e o do jornal “The New York Times”.

   A escritora norte-americana Margalit Fox escreveu mais de mil obituários para o jornal “The New York Times”. “Quase todo dia eu recebo um mistério para resolver. O mistério sobre como uma vida foi vivida e o porquê daquela vida”, ela conta numa entrevista ao jornal em que trabalha.

   Fox comenta ser o trabalho mais estranho no ramo do jornalismo americano, mas um dos melhores. Sua escrita envolve a solução desse mistério – de como as pessoas caminharam em suas vidas, de A para B e daí para C, e o quanto desse progresso foi um produto do livre arbítrio ou resultado de destino puramente cego. E também como e por que incorporaram a era em que viveram. “Essa é, na essência, o profundo e agridoce prazer do trabalho – a chance de ver, através das lentes de uma história pessoal – como o mundo, para o melhor ou pior, chegou a ser do jeito que é.”

   Anne Wroe, escritora dos obituários da revista “The Economist” (que destaca uma página inteira ao final de cada edição para obituários), diz numa entrevista ao portal  The Hairpin que o trabalho significa mesclar a mente de um jornalista com a criatividade de um escritor. E coloca como a chave para um bom texto, não pensar em cronologias, mas sim em encontrar a essência de quem era aquela pessoa e o que era realmente fundamental para ela.

  Wroe destaca que muitas vezes mergulha no universo do retratado para entender como sua mente funcionava. Por exemplo, ao escrever sobre um carpinteiro obcecado por gavetas, ela aprendeu a fazê-las bem, para ficar tão apaixonada por essa atividade quanto o morto.

   “Eu nunca menciono como uma pessoa morreu porque eu não acho que seja importante. Eu acho que um obituário é uma celebração da vida”, conclui na entrevista.

   Alguns veículos assumem escrever biografias antecipadamente à morte, para o caso de pessoas muito conhecidas, que servirão de base para seu obituário.

  Sobre isso, escreveu Diogo Guedes no artigo “Quando o jornalismo utiliza a morte para falar da vida”: “Parece uma lógica cruel, mas se trata, em geral, de uma forma de respeitar figuras públicas, garantindo que o que será falado sobre elas será justo, preciso e único. O curioso é que, apesar dos textos ficarem lá prontos, as pessoas retratadas não podem ler o que será publicado depois da sua morte. Talvez porque quase ninguém está preparado para contemplar a sua imagem e, pior, a sua ausência no mundo”.

   Bruce Weber, escritor de obituários do “The New York Times”, comenta que, no caso de obituários adiantados, ele normalmente oferece à pessoa a possibilidade de uma entrevista. As reações são mistas. Alguns acham divertido, outros ficam horrorizados. E há aqueles que se empolgam com a possibilidade de oferecer uma “última palavra” – como um depoimento póstumo. Em qual desses você se classificaria?