Um dia numa enfermaria de cuidados paliativos
O dia começa com uma reunião na sala dos médicos, que antecede a visita aos pacientes. O sol entra pela janela da sala e às vezes eu me perco olhando um avião que cruza o céu na trajetória de Congonhas. É a vista dos pacientes da enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual.
É a vista dos que estão lidando com a morte iminente, cada um a seu modo. Mas nem todos pacientes de cuidados paliativos lidam com essa realidade de imediato, porque o conceito atual abrange uma doença ameaçadora da vida e não necessariamente terminal.
Após uma longa discussão sobre cada caso, o grupo de médicas percorre o corredor da enfermaria. Um paciente prefere não entender o que significa seu diagnóstico, não olhar para o fim (esse sim sem possibilidades de cura). Outro, até em melhores condições físicas do que esse primeiro, escolheu ejetar-se do mundo antes que seu corpo falhasse por completo. Em depressão, ele se recusa a sair da cama, mesmo tendo músculos para isso. Seu sentido na vida é o trabalho, e a partir do momento que perdeu a possibilidade de realizá-lo, morreu para si mesmo. Não quer saber de aprender a conviver com a doença e permanece lá, esperando a morte chegar. “Dor, depressão e desamor mata mais do que qualquer tumor” me confidenciou uma das médicas.
Uma senhora está de olhos fechados, a mente em algum outro universo com a filha a velá-la de lágrimas nos olhos e desespero no coração. Ela nos vê entrando no quarto, ela chora, mas sabe que a mãe está “indo embora”. Essa mãe apresenta uma respiração chamada sororoca. Em inglês, o termo é “death rattle” – a respiração da morte. Tido como um sinal de que a pessoa está bem perto do seu último suspiro, ela soa como um ronco da alma. Faz um certo eco cavernoso, talvez por encontrar menos vida para absorver o som lá dentro. É fruto da perda do reflexo de deglutição – perde-se a capacidade de engolir saliva, que se acumula nas vias aéreas.
Uma outra senhora está também em algum outro lugar. Ela dorme. É acordada para a visita das médicas. Ela vai aos poucos tomando consciência do que está acontecendo e levanta o dedo que cambaleia no ar. É a sua tentativa de dar algum sentido àquela cena e segue a contar mulher por mulher, um a um dos casacos brancos. A Dra. Maria Goretti Salles Maciel (fundadora da enfermaria, em 2002, e presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos) sempre apresenta o grupo nas visitas. Quando o paciente crava os olhos em mim (sem jaleco e com um olhar infelizmente de desconforto porque não consegui me arrancar nenhum outro), ela comentava que eu era “a jornalista escondidinha ali”.
Me senti envergonhada por invadir um espaço tão privado sem ter algo a oferecer de útil. Não sou a psicóloga (Paula Coube) que todos olharam atentos enquanto um paciente conta seu sonho – ele via seu próprio corpo e mais três pessoas iguais a ele, todos de terno. Colocavam a mão no seu estômago (fonte da doença) e dizia que logo logo ele teria uma libertação.
O sonho foi visto como um triunfo pela equipe médica, uma “carta do subconsciente” por poder significar um início de elaboração da morte. Esse paciente não fala sobre o assunto diretamente. Ele é jovem, 64 anos, e esportista, com uma obstrução do intestino. Sua esposa está ao lado e rejeita qualquer possibilidade de não-cura. Sua condição o leva a muitas náuseas e vômitos. Um jargão interno que me encantou é “náusea do poeta” – expressão usada por Goretti sobre náuseas relacionadas a aspectos emocionais. É inspirada num poema de Drummond, sobre tédio, no qual diz “vomitar o tédio da vida”. Goretti escutou esse poema e o apelido “náusea do poeta” pegou, simbolizando o medo de morrer.
Esse sonho já tinha sido discutido na reunião prévia à visita, junto com uma orientação de se “trabalhar a esposa do paciente”, que está muito apreensiva com a situação e não aceita a possibilidade de uma doença irreversível. Comenta-se de tudo nessa reunião, casamentos atuais, ex casamentos, quantos filhos, como é a relação entre os filhos, qual é hobbie do paciente – como um fascinado por caiaque, o que levou Goretti a usar rios e pedras como metáfora para explicar carinhosamente a condição de seu corpo. Também se comenta inclinações espirituais e como cada um está lidando com o morrer (se for o caso). O foco da discussão não é só a doença do paciente. Na verdade, ela é a última coisa a ser comentada. Antes, faz-se essa análise do seu estado psicológico e o de seus familiares. Em primeiro lugar vem “quem é esse paciente, o que ele ama, quem ele ama”, para depois passarem para “o que ele tem” e daí, “o que podemos fazer por ele”.
Eu também não era a assistente social, Izabel Mendonça, que tudo anotava com um olhar meigo e silencioso. Quando visitamos a senhora do dedinho no ar, a assistente percebeu que não havia parentes ao redor e já se colocou ao telefone para descobrir o mal entendido. Os parentes acharam que havia horário de visitas para os internados na enfermaria de cuidados paliativos, como há nas outras. A desinformação foi esclarecida. Não há. Aqui pode vir a hora que quiser e ficar quando tempo quiser.
Tampouco tinha a oferecer o que uma das médicas (Maria Carolina Manfredini e Michele Dias Pinheiro) teria. E eu nada entendia de bem-estar e conforto, como a médica-acupunturista Paola Toth. Normalmente, também há a presença de uma fisioterapeuta e de uma assistente espiritual.
Eu não entendia dos casos e não podia dar qualquer informação útil aos parentes. Mas Goretti me incluiu como participante no “diário” da reunião dos médicos – que é o documento no qual anotam as informações de cada paciente. Nele há um índice usado para apurar-se prognósticos, chamado de PPS. Ele leva em consideração fatores como as capacidades do paciente (andar, se alimentar) e seu nível de consciência, formando um porcentual. Vai de zero a cem por cento. Por exemplo, 10% é um paciente nos últimos dias de vida. Um que apresente PPS de 50% é provável que tenha alta. Nesse caso, receberá atendimento domiciliar dessa equipe. Hoje, há 80 pacientes atendidos em domicílio. A taxa de morte na enfermaria segue mais ou menos um a cada dois dias.
A minha inclusão nesse documento me tocou, O gesto demonstra a preocupação com o outro, que faz parte do olhar que permeia os paliativistas. Foi uma forma de me colocar como uma participante menos intrusa nas visitas, e confortar meu sentimento de impotência. É difícil olhar a morte e não poder fazer nada contra ela. O que me coloca como referência-base para o case de como nossa visão da morte é deturpada. Deve-se lutar contra ela, ou pior, presume-se a arrogância de querer controlar tudo na vida, inclusive seu fim.
Essa visão prejudicial de precisarmos “lutar contra a morte” foi coloca pela jornalista Eliane Brum na reportagem “Vida até o Fim”, publicada no livro “O Olho da Rua” (ed. Globo, 2008) sobre essa mesma enfermaria. Ela coloca um pensamento que parece definir bem o clima de lá: “descubro então que a morte é um parto do lado avesso. E na enfermaria são todas parteiras que, em vez de esperar o tempo de nascer, respeitam o tempo de morrer”.
Uma enfermeira me contou que alguns pacientes chegam ali sem saber o porquê de serem removidos a um local chamado cuidados paliativos. Não foram avisados sobre seu diagnóstico, cabendo aos médicos que o acolhem contar as possíveis más notícias. Essa atitude é, em parte, baseada no fato de os paliativistas terem uma formação mais adequada para lidar com o tema da ameaça à vida.
Um problema visto pela equipe é só receberem pacientes em finalzinho de vida. Essa área da medicina teria melhores condições de atuar com a pessoa ainda bem, no diagnóstico da doença e não apenas nesses últimos momentos. Um dos motivos é por oferecer essa estrutura acolhedora que as outras áreas não têm, que é a estrutura multidisciplinar de atendimento. Um olhar personalizado e sem pressa, para ajudar o paciente a conviver com uma doença crônica.
No dia seguinte à minha visita, peguei um avião em Congonhas. Um bem simpático com cara de cachorro salsicha, como todos eles têm. No ar, zapeei os prédios lá embaixo pela janelinha de plástico. Em algum deles estaria um olhar acamado, uma sororoca, algum último suspiro. Enquanto eu mergulhava no céu ao lado de uma mulher que levava no ventre, o desenvolvimento de, em breve, mais um novo respiro no mundo. Simples assim.
OBS: o paciente sem vontade de viver melhorou seu estado psicológico e obteve alta. Foi para casa com a família e não precisou ser receitado com anti-depressivos. O esportista com naúseas passou a sentir-se melhor e sua esposa também, mas continua internado em estado crônico. E as duas senhoras faleceram no final de semana seguinte à minha visita. Em paz, como já aparentavam estar quando as vi.