Um dia numa hospedaria de cuidados paliativos

Camila Appel

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Em uma casa de 1954 alugada pela prefeitura, ergue-se uma escadaria cinematográfica de um film Noir, introduzindo um vitral poético. Até os vidros das janelas menores são esculpidos, um deles mostra veados saltitando na floresta, e no outro, panteras. Há uma escada lateral estreita, destinada ao uso de funcionários na concepção inicial. Hoje não há tal distinção. Essa casa que um dia abrigou famílias de alta renda no bairro da Aclimação de São Paulo, desde 2004 recebe pacientes de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Municipal.

É para essa hospedaria – como são chamadas as casas com esse conceito, baseado no termo inglês Hospice, que são direcionados pacientes portadores de doenças ameaçadoras da vida (saiba mais no post “Cuidados Paliativos” e “Um dia na enfermaria…”).

Chegam em etapas muito distintas de seu diagnóstico. Alguns vivem dias, outros, anos. Como é o caso de Gilberta Fátima dos Santos, 56 anos, moradora da casa há um ano e oito meses. Acamada devido a um tumor na coluna, Gilberta não tem mais os movimentos da cintura para baixo. Sente falta de morar com a família, mas entende não haver infraestrutura na casa dos filhos para abrigá-la.

“Você sabe como é apartamento, lá é tudo menor. O banheiro é pequeno, impossível de entrar uma cadeira de rodas. Nem tem condições para instalar uma cama dessas (hospitalar). Só se for uma apartamento enorme, com um andar grandão que seja só seu. Então não tem condições. Aí eles (filhos e netas) vêm até aqui. Fui ao teatro com eles, fui para a igreja, fui ver minha netinha no hospital quando ela nasceu…”

Dos quatro filhos, uma menina morreu aos 14 anos, vítima de leucemia. A tragédia veio em dupla, pois na semana seguinte o marido de Gilberta foi assassinado ao reagir a um assalto.

Hoje ela tem cinco netas para alegrá-la em visitas constantes. Na parede ao seu lado, desenhos de Melissa, que adora reproduzir rostos de Mangá. Outra neta trouxe um travesseiro com o cheiro de casa para Gilberta se aconchegar.

Ali na hospedaria, permite-se visitas das 9h às 21h e os animais de estimação são bem-vindos.

De unhas sempre feitas, dentre outras marcas de uma vaidade viva, ela gosta dos cuidados recebidos e admira o trabalho dos profissionais.

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O conceito de cuidados paliativos envolve uma equipe multidisciplinar. Nessa casa percorrem enfermeiros, assistentes sociais, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, orientadores espirituais, fisioterapeutas, dentistas e nutricionistas. Alguns fazem parte da equipe fixa que se reúne semanalmente para discutir caso a caso. Ainda há voluntários, como uma enfermeira especializada em medicina chinesa, músicos e contadores de histórias.

A frente dessa galera bem intencionada está a médica oncologista Dalva Matsumoto, coordenadora da hospedaria e cofundadora do Instituto Paliar – voltado para educação em cuidados paliativos.

Dalva comenta a dificuldade em se quebrar paradigmas nessa área. “Cuidados paliativos não é abreviar a vida, não é tirar tratamentos e possibilidades. Trata-se de oferecer um tratamento que seja proporcional ao paciente. Adequado ao seu momento de vida e à sua doença. É difícil, porque a sociedade acabou sendo levada a acreditar que mais é melhor. Mas às vezes, menos é mais. Tem que ter delicadeza na hora de oferecer instrumentos. Senão, pode-se levar à distanasia, que é o prolongamento da vida a qualquer custo, o sofrimento por excesso de tratamentos”.

Dalva também considera importante tirar o foco de que ali só se hospedam pacientes que estão morrendo. “Apesar de recebermos pacientes com diagnóstico de dias ou de semanas de vida, acabamos oferecendo uma sobrevida muito maior, de anos. Os cuidados paliativos podem ser iniciados no diagnóstico da doença e não na sua terminalidade. Oferecemos a possibilidade de reinserção da pessoa na vida social e familiar. Existe uma morte social que a doença traz que pode ser pior do que a morte física, e a gente recupera isso”.

Fala-se muito em “dor não física” – seria a dor psicológica. Nos corredores ouvi falar em dor existencial, sobre uma paciente que não aceitava a morte, por ser muito jovem. “No hospital só tratam doenças, aqui tratamos pessoas”, é um lema comum da área de cuidados paliativos.

Discute-se a situação da família na reunião de equipe. Como é a relação entre cada um e como estão reagindo. Há recomendações como conversar com uma ex-mulher que está em conflito, por exemplo. Considera-se que na doença, os conflitos familiares que eram jogados para debaixo do tapete vem à tona. Os médicos se envolvem com essas situações. E até casamentos já fizeram dentro da casa. Foram três até hoje.

É uma casa com horários, mas sem uma rotina rígida. Há um intervalo de horário para banho (pela manhã), outro para almoço, lanche e jantar. No meio tempo, é comum ver um paciente lendo, tomando sol, assistindo TV ou recebendo visitas.

O horário de dormir é às 22h. Mas nem sempre é seguido. Alguns pacientes trocam a noite pelo dia, pelo receio de fechar os olhos no escuro e nunca mais abri-los.

Gilberta não. Dorme bem à noite e sonha, sempre com o corpo andando. “O nosso cérebro trabalha o desejo, a vontade que temos de andar, entendeu?”. Se as pernas voltassem a perambular, iria trabalhar como voluntária, contando histórias para pacientes, além de brincar muito com as netas. Quando tem insônia, liga a televisão baixinho, mas é raro.

Numa pausa na conversa, observamos passarinhos comendo amoras na árvore que ocupa a vista da janela. Gilberta suspira e diz sem eu precisar perguntar: “O tratamento aqui tem uma coisa de bom que eu analisei e observei: as pessoas aqui quando morrem vão bem. Não precisa entubar, ninguém vai gritando, passando mal. Eles cuidam de você com todo carinho do mundo. É tanto carinho que as pessoas vão bem. Eles viram o rostinho assim e vão com Deus. Eu rezo um Pai Nosso, uma Ave Maria e peço para que estejam com muita luz. A única certeza que a gente tem é da morte. O dia e a hora só Deus que sabe. Mas é um mistério né, a morte. Todo mundo fica preocupado sobre como é o lado de lá. Acho que as pessoas têm medo”.

Sentada em sua cama hospitalar, de batom na boca e penteado no rosto, Gilberta tem o melhor lugar do amplo quarto com capacidade para abrigar mais quatro pacientes. De frente para a TV e para a o vitral, com vista para as amoras e os pássaros. Lembranças das netas ao redor. Quem passa pega na sua mão e pergunta com carinho como a dona Gilberta está, e se precisa de alguma coisa. Ela pede água e um remédio para dor de estômago, confirmando a impressão de que muito além de paciente, Gilberta é uma hóspede. De passagem, como todos nós.

“Porque viver para além das conquistas da ciência, é mais do que respirar” – Eliane Brum

OBS: A hospedagem nessa casa é gratuita mas só disponível aos conveniados (e seus familiares) do Hospital do Servidor Público Municipal – funcionários públicos do município de São Paulo. Cabe ao paciente apenas garantir um acompanhante 24h, seja ele pago (nesse caso, pelo próprio paciente) ou não.

Falta de regulamentação

O Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira reconhecem a medicina paliativa como área de atuação. Mas ela não é uma especialização e por isso deve ser ligada a uma das oito especialidades permitidas: clínica médica, pediatria, geriatria, cancerologia, anestesiologia, medicina de família, medicina intensiva e cirurgia de cabeça e pescoço.

Há avanços para os atuantes nessa área. O Código de Ética Médica de 2010 menciona que o médico tem a obrigação de oferecer cuidados paliativos ao paciente, sendo um direito do mesmo recebê-los. E a resolução 1.805 do Conselho Federal de Medicina fala sobre o direito do paciente portador de uma doença avançada em decidir se deseja ou não a aplicação de medidas invasivas desnecessárias, tratando dos critérios para a ortotanasia (permitir que a morte ocorra de forma natural, suspendendo tratamentos e tecnologias que prolonguem a vida).

Para Dalva Matsumoto, ainda há muito a ser feito. Como uma indicação formal de critérios para os locais de atendimentos e tipos de profissionais, além da especificação de políticas de remuneração no SUS e nos planos de saúde. “Não há tabelas de remuneração dos profissionais de cuidados paliativos, nem tempo de duração da consulta. Por exemplo, uma consulta oncológica do SUS é de meia hora. A gente precisa batalhar para que uma consulta de cuidados paliativos seja de pelo menos uma hora”, diz Dalva.

A falta de regulamentação também facilitaria a abertura de clínicas particulares que agem sob o título de cuidados paliativos mas não oferecem a infraestrutura e o amparo adequados.

A médica considera fundamental a oferta de mão de obra especializada no setor. “É preciso formar as pessoas. Isso é uma coisa que temos lutado bastante”.

O Instituto Paliar, fundado por ela junto com a médica de família Maria Goretti Salles Maciel e Dr. Ricardo Tavares de Carvalho, está na terceira turma de um curso de especialização aprovado pelo MEC (por ser ligado a uma universidade – São Camilo). E o de pós-graduação está na sétima. Dalva comenta que a procura aumenta a cada ano. “E não apenas por médicos, mas também psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, dentistas, nutricionistas, todos os profissionais ligados à assistência que estão interessados em cuidados paliativos”.

 

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Vista da frente da casa – foto: Camila Appel
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Sala de televisão. Foto: Camila Appel
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Vidro de uma das janelas da sala de televisão. Foto: Camila Appel