Luto da barriga e depressão pós-parto
Ela passou os nove meses imaginando a cara do bebê, a nova vida, a alegria da família. Ela visualizou um parto lindo, todo natural e leite jorrando dos seios numa fartura de bicho mãe. Ela fez exercícios de pompoarismo, ela viu filmes sobre parto, ela leu tudo o que achou pela frente, ela trocou de obstetra para priorizar o parto normal, ela namorou fotos de mulheres amamentando divinamente no Facebook e ela fez um curso de amamentação. Ela se alimentou muito bem, fez natação e se orgulhou de ter trabalhado até o último minuto.
Nesse último minuto, ela começou a ter contrações, foi ao hospital, não dilatou o suficiente, o coração do bebê começou a desacelerar, aconteceu um tal de mecônio que assustou a médica e foi logo anunciando uma cesárea emergencial. Ela entrou na sala de cirurgia aos prantos.
A bebê era mesmo linda. Mas os familiares chegavam e ela sentia vontade de chorar. E chorava mesmo. Sentia-se frágil como um pássaro de asa quebrada. Sem entender o porquê. Afinal, não seria esse o momento mais feliz na vida de uma mulher? Ela foi para casa carregando o novo ser do lado de fora de si mesma numa sensação, no mínimo, estranha. A recém-nascida chorava muito, e todos falavam que era normal. Até a pediatra confirmar seu maior desespero: a bebê estava passando fome, a balança não mentia. Aí ela comprou um tal de leite em pó produzido por uma multinacional e não por ela mesma. As amigas olhavam torto para a mamadeira. Ela mesma detestava aquela mamadeira. Sentia-se inferior.
E pensava: que tipo de mãe não dá conta de parir e alimentar um filho? Enfim, deu tudo errado. Não, não deu, fala o marido. Nossa filha está saudável, você está saudável. Deu tudo certo. Ela sabia que sim, só que o vazio do ventre se transferia para o peito. A angústia ia aumentando. Ela chorava, sentia-se mal amada, olhava a bebê inocente e linda e sentia culpa por estar esfacelada diante da sua cria. A culpa ia cavando mais esse vazio do peito. A mãe não sentia mais vontade de sair da cama e nem saía mesmo. Perdeu o interesse em tudo. Até que ela e o marido decidiram buscar ajuda para um mal bem mais comum do que imaginamos: a depressão pós-parto.
No caso acima, a quebra de expectativas aliada à tendência a quadros depressivos – por essa mãe já ter sofrido de depressão anteriormente – contribuiu para uma depressão pós-parto. Além da culpa por não ter alcançado o patamar de “mulher perfeita” enraizado silenciosamente na nossa concepção de maternidade. A lista de causas e fatores de riscos é bem maior do que essa e há uma diferença significativa entre o que se conhece por blues puerperal (ou baby blues, ou luto da barriga) e a depressão pós-parto, nas suas características e na abordagem para tratamento.
O médico psiquiatra Luiz Henrique Junqueira Dieckmann comenta que as mulheres são vulneráveis à depressão pós-parto tanto pelas mudanças hormonais e físicas, como pela pressão que sentem da nova responsabilidade de cuidar de um recém-nascido. Mas muitas mães experimentam um episódio breve de alterações de humor, que ele chama de “blues puerperal” – e envolve a sensação de não dar conta da responsabilidade, irritabilidade, choro mais fácil, cansaço e melancolia. Luiz afirma que alguns estudos apontam que a porcentagem das mães que experimentam esses sintomas na primeira semana após o nascimento do bebê pode chegar a 80%.
A depressão pós-parto se diferencia do “blues puerperal” por ser uma condição muito mais grave e que requer tratamento ativo e apoio emocional e psicoterápico para a mãe. Luiz comenta que “na depressão existem alterações de sono, de humor, de apetite, da disposição, pensamentos negativos, auto estima diminuída, ou seja, sintomas de um quadro depressivo de fato importante” e ressalta ainda que alguns estudos apontam que as mulheres que têm depressão pós parto muitas vezes tiveram episódios depressivos prévios.
Luiz considera que esse tipo de sensação também pode ser sofrida por homens e pais e mães de crianças adotivas, pois existem diversas mudanças na rotina, no relacionamento, na casa e no sono. “Existem o que chamamos de transtornos adaptativos, que podem ser caracterizados por sintomas ansiosos ou sintomas depressivos e costumam acontecer nos primeiros meses da mudança. O tratamento vai depender da intensidade e duração do quadro”.
Causas e fatores de risco
Para o médico e psiquiatra Jõao Augusto Figueiró, o fator predominante são as alterações hormonais, que vulnerabilizam mais as mulheres sensíveis a esse tipo de variação. Ele diz que, durante a gravidez, o cérebro se habitua a uma quantidade grande de estrogênio e progesterona, por exemplo. Na expulsão do feto e da placenta, há uma queda súbita desses hormônios. Figueiró ainda considera outros fatores importantes a serem considerados, como a privação do sono. “A privação do sono é altamente estressante para o cérebro. O sono se torna superficial e interrompido, muitas vezes já no final da gravidez e piora quando o bebê nasce. E o stress crônico é um fator precipitante para a depressão. O choro (do bebê) também é muito irritante para o cérebro. Há ainda outras causas, como a dificuldade com a amamentação, tensões ligadas a maternidade e dificuldades financeiras que surgem num período de aumento de gastos”.
Dos fatores de risco, Figueiró ressalta: Já ter tido depressões anteriores, ou algum transtorno mental, ter sofrido violência doméstica (25% das mulheres no Brasil são vítimas de violência durante a gravidez) e a falta de apoio e abandono do companheiro. “O parto e o pós-parto podem ser um momento de muita alegria mas também podem ser um momento intenso de stress e problemas no relacionamento. As relações extraconjugais masculina aumentam durante a gravidez e no período do pós-parto. Os maridos se sentem enciumados e rejeitados pela esposa”.
A coach, especialista em cuidados com recém-nascidos e doula de pós-parto Mariana Zanotto Alves, fez sua formação nos Estados Unidos, onde esse tipo de profissão é comum. Ela diz que, de acordo com a American Pregnancy Association, cerca de 10% a 15% das mulheres sofrem de depressão pós-parto e de 70% a 80% sofrem do que ela chama de “baby blues” (equivalente ao “blues puerperal”). Ela comenta a falta de sono também como uma causa fundamental e adiciona a falta de suporte. “Especialmente com a revolução industrial, as famílias tornaram-se famílias nucleares. Então, passamos a conviver com menos pessoas e a ajuda à mãe ficou restrita a esse núcleo familiar”, Mariana diz.
Para Mariana, dentre os fatores de risco também se deve considerar a perda de gestações anteriores, quebra de expectativas, histórico de TPM severa (pois indicaria mulheres com maior predisposição para alterações hormonais), histórico de drogas e álcool. Além disso, ela menciona ter sido vítima de abuso sexual ou violência física durante a infância, ou abuso físico durante a infância.
Mariana considera que quando temos um filho, vivenciamos nossas próprias frustrações da infância, pois o choro do bebê desencadeia processos da nossa memória, trazendo à tona questões antes camufladas.
A falta de preparo emocional durante a gestação também seria uma causa importante para Mariana. Quando ela pergunta a suas clientes como foi a gravidez, a grande maioria se orgulha de ter trabalhado até o “último momento”. Haveria uma quebra brusca de rotina, da agenda cheia do trabalho para a rotina do bebê, que é completamente diferente. “As mulheres fazem enxoval, chá de bebê, mas não se permitem organizar emocionalmente”.
Outra questão seria a expectativa de amar o bebê logo quando nasce. “Mas esse sentimento é uma construção, assim como todos os amores. Vínculos não se criam da noite para o dia e não há tempo determinado para o surgimento desse amor”.
Os tratamentos envolvem psicoterapia, medicação para os casos mais graves e apoio familiar. O pai da criança teria um papel fundamental nesse processo. “Apoiar a mãe integralmente e diminuir cobranças vai aumentar as chances de uma rápida recuperação. Os pais têm que saber que aquele quadro tem tratamento e que suas mulheres vão voltar a ser quem eram antes da doença”, comenta Luiz.
Psicose
Em alguns casos, o diagnóstico correto não é depressão pós-parto, mas sim psicose. Essa identificação é fundamental para indicar o tratamento correto e prevenir suicídios. Na psicose, há indícios de um comportamento maníaco depressivo. A mãe pensa que pode machucar o bebê ou ela mesma.
Mariana teve uma cliente que cometeu suicidou recentemente. Ela estava em tratamento psiquiátrico, tomando medicação. Mas a coach comenta que o tratamento nem sempre funciona de imediato, porque o médico vai testando medicamentos para verificar qual reage melhor com a cliente. Além disso, haveria um tempo para o corpo se adaptar à droga. Essa seria a janela de maior risco. Essa mãe buscou ajuda da internet ao desabafar seus conflitos na rede social. Mas foi prejudicada por essa ação pois só recebeu agressão em retorno, o que Mariana considera ter contribuído para agravar o quadro – “As pessoas são muito rápidas para julgar quem está nesse tipo de situação”.
Luiz comenta que “o risco de suicídio existe sim e devemos estar sempre atentos a ele. Uma pessoa não se suicida por querer simplesmente morrer, é uma tentativa de parar de sofrer”.
Temos que falar sobre isso
“A gente morre e renasce no parto” – Thais Cimino
“Temos que falar sobre isso” é uma plataforma online para receber depoimentos de mulheres sobre experiências e sentimentos do pós-parto. Com três meses de existência, já recebeu mais de cem “desabafos” que podem ser anônimos ou não. O próximo passo do projeto é oferecer um espaço físico para encontros – gratuitos.
Sua idealizadora, a gaúcha Thais Cimino, mora na França há dois anos, onde teve sua filha – hoje com um ano e sete meses. Apesar de considerar o atendimento médico da França muito bom, Thais teve dificuldades em se adaptar a essa nova cultura, principalmente por estar distante da família, dos amigos e não dominar o idioma. Durante a gravidez, sentia momentos de ansiedade ao pensar no futuro e muita solidão, junto à felicidade de em breve receber a tão esperada filha.
Seu parto ocorreu como ela desejava. Um parto normal, sem anestesia e sem a “violência obstétrica que acontece no Brasil”, como ela colocou. As dificuldades relacionadas à amamentação foram o gatilho para uma grande desestabilização emocional. Quarenta e cinco dias após o parto, Thais foi operada devido a um abcesso mamário. Os cuidados pós-operatórios, primeiro um cateter no seio que necessitava de cuidados de uma enfermeira e depois uma “ferida aberta”, contribuíram para deixar Thais ainda mais fragilizada: “demorou um mês para cicatrizar no meu seio e um ano para cicatrizar na minha alma”.
Foi relatando sua história, que Thais passou a sentir-se melhor, como ela nos conta abaixo.
“Cada vez que eu contava minha história, eu entendia um pouco mais do que acontecia. Depois do luto e da luta que eu passei, eu consegui ressignificar a minha dor para fazer disso uma coisa positiva e tentar evitar com que outras mulheres passassem pelo que eu passei. Para elas não se sentirem sozinhas e julgadas. Eu acho que falar é muito terapêutico. A gente morre e renasce no parto, é um momento de extrema fragilidade, de ruptura, no qual a mulher não pode ficar sozinha. A gente se joga numa coisa completamente desconhecida. Não há livro ou conhecimento que te prepare sobre o que realmente é esse momento. Ao mesmo tempo, é um momento maravilhoso, de muito amor, muito carinho e uma conexão incrível com outra vida. Mas a mulher tem essa pressão de precisar mostrar que está sempre tudo bem. A mulher não tem direito de ter dúvidas, de estar infeliz, de chorar, porque em teoria, é o melhor momento da vida dela. A sociedade não só não permite como invisibiliza e cala essa mulher. Tem muito preconceito em tudo e a pressão pela “mulher perfeita”. Parece que a mulher não tem mais saída. A mulher perdeu seu instinto, aquilo que lhe é mais profundo, para que ela possa saber o que é melhor para ela. O pós-parto é uma oportunidade para calar tudo que está ao redor e se escutar. Uma oportunidade de se conhecer, para enfrentar suas dúvidas e rever o passado que ressurge. A sociedade tem que abraçar essa mulher e ver o que ela está precisando. Não adianta dar a ajuda que se considera necessária, mas sim a ajuda que ela está precisando. A mulher na gravidez, no parto e “recém-nascida” é completamente isolada. O ser humano tem que começar a pensar no que deseja para o futuro da sociedade – se a gente quer uma mudança, temos que primeiro pensar como tratamos essa nova mulher e o ser humano que está chegando ao mundo”.
OBS: indico a leitura dessa ótima matéria publicada pela Folha, traduzida do “New York Times”. “Depressão pós-parto pode surgir fora de hora e com sintomas confusos”.
E a entrevista de Drauzio Varella com o médico e psiquiatra Frederico Navas Demetrio.