Um modelo muito morto – a fotografia mortuária

Camila Appel

 

Durante o século 19, fotografar mortos era tão comum que profissionais faziam anúncios de seus trabalhos. Ou seja, existia uma demanda para esse tipo de serviço. Hoje, ver um corpo morto é considerado uma curiosidade mórbida e patológica. Mas é interessante pensar o quanto esse ponto de vista é cultural. É forjado por símbolos e discursos de uma sociedade, de um momento na história. Somos tão moldáveis que tudo o que consideramos um padrão humano é, na verdade, uma construção mental. Conceitos enraizados hoje, amanhã poderão ser obsoletos.

A fotografia mortuária cumpria dois objetivos: oferecer sentido dentro do contexto familiar e contribuir para avanços de técnicas fotográficas.

No contexto familiar, ela tinha a intenção de preservar a imagem do morto e ajudar na elaboração do luto. O ritual da preparação para a foto era uma forma de elaboração. Era necessário escolher a roupa predileta do morto, a maquiagem, sua posição na foto, e formar um retrato que serviria de conforto. É um símbolo do eterno, da possibilidade da imortalidade do corpo físico. Mesmo irreal, pode acalmar um coração em prantos.

Os álbuns de família tiveram seu pico entre 1920 e 1950. Os mortos eram retratados como se estivessem dormindo, ou mesmo como se estivessem vivos. Em algumas fotos é muito difícil saber quem está morto e quem está vivo. Colocava-se uma estrutura atrás para que ele permanecesse em pé. E as pálpebras eram pintadas para imitar um olho aberto.

Esse retrato servia de prova para a memória numa época em que a fotografia era de difícil acesso. Dentre os pavores do ser humano, o esquecimento ocupa um lugar considerável. Conforme se olhava para a foto, as memórias ganhavam novo significado, atualizando-se conforme a vida dos que ficavam se desenvolvia. Essa ressignificação pode ser vista como fundamental para a formação da individualidade dos sobreviventes, como seres pertencentes a um grupo social, marcados por eventos por uma determinada época. É um ponto de referência importante para a mente daquele que vê sua família desaparecendo com o tempo. A memória contribui para o processo de individualização e de formação de uma identidade.

Hoje, temos fotos e vídeos do crescimento de cada ser e o registro de alguém amado, morto, torna-se desnecessário e cruel. Por outro lado, lidamos de forma mais fria com a morte do que naqueles tempos. Velórios passaram do interior das casas para o ambiente esterilizado e isolado do hospital e o luto, ou mesmo o falar sobre a morte, passou a ocupar o lugar oculto e secreto (um tabu), antes privilégio do sexo.

Outro objetivo da fotografia mortuária era aprimorar a técnica fotográfica, porque modelos mortos eram mais fácies de serem manipulados e não reclamavam de ficar horas na mesma posição, nem de esperar o fotógrafo testar diferentes cenários e iluminações. Essa fotografia, inicialmente, imitava composições de pinturas de mortos. Paul Gauguin, Delaroche e Monet foram alguns dos pintores que os retrataram.

Mas essa prática já acontecia muito antes da existência da fotografia ou da pintura. Efígies e máscaras também eram usadas e outros artefatos serviam como objetos de culto e devoção.

Assim, a origem do retrato e da imagem está conectada com a representação dos mortos e a vontade de manter sua presença e, quem sabe, lidar com a dor da sua perda. Os romanos usavam máscaras de cera (feitas com modelos de gesso colocados sobre o rosto do morto), com as quais montavam-se linhas genealógicas da família. Mas o filósofo Dudi-Huberman defende que a origem da imagem vem do período paleolítico, com a descoberta de crânios estilizados com furos e pigmentos vermelhos. Pode ser o início do que hoje conhecemos como um retrato.

No Egito, os retratos ainda tinham outro objetivo. As pinturas que representavam os mortos nos sarcófagos eram necessárias para que seu espírito entrar no mundo dos mortos.

Hoje, a foto mortuária é socialmente aceita como imagens forenses e, assim, restrita ao uso policial.

Em post para o site históriadigital.org, o professor e historiador Michel Goulart fez uma pesquisa de 35 fotos dessa época, usando como fonte a Wikipedia, o American Daguerreotypes e o Thanatos Archive, apesar de mencionar não poder assegurar a veracidade de todas as imagens. Ele comenta no post: “o interessante foi perceber que, em várias fontes pesquisadas, destaca-se um sensacionalismo exagerado. Não foi raro encontrar sites ou blogs utilizando adjetivos como: “fotos bizarras”, “fotos horripilantes”, “fotos assombrosas”, etc. Na verdade, estas fotos não representam nada disso. Afinal, devemos lembrar que cada povo, em determinado contexto histórico, manifesta sua cultura ou suas crenças de uma determinada maneira. Neste sentido, as fotografias post-mortem estão inseridas em um dado momento da história”.

Veja as fotos nesse link.

Foto-Post-Mortem-Pai-Mae-Filha
A menina em pé está morta. É possível observar uma base por trás dos pés da menina e um suporte que passa, com pinças da cintura ao pescoço. As amarras teriam fios duros correndo na parte de trás para mantê-los no lugar. As pupilas são pintadas sobre as pálpebras fechadas – Foto e legenda de historiadigital.org
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Produção de corpo em estúdio que mostra algumas técnicas para capturar a foto, como posição da câmera e a utilização equipamento especial para ajustar o falecido à cadeira – Foto e legenda de historiadigital.org

 

 

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Adultos ou membros mais velhos da família apareciam em cadeiras, ou mesmo em pé.Para fazer fotos em que o falecido está de pé, eram utilizados estacas de sustentação. A imagem acima mostra como o corpo era posicionado – Foto e legenda de historiadigital.org

Algumas referências históricas desse post foram extraídas da tese Representações da morte: fotografia e memória (Tese de Miguel Augusto Pinto Soares para a PUCRS. Veja a referência bibliográfica do autor para aprofundar-se no tema), A Fotografia no contexto familiar, e Arte Funerária no Brasil.