Conheça Fininho, o surpreendente coveiro formado em filosofia

Camila Appel

Conversei com Fininho, um homem que me tocou com sua visão de mundo e a forma de habitar um lugar incomum – o cemitério. Invisível para a sociedade, Fininho  passou 20 anos fechando caixões, cavando espaços na terra.

Osmair Camargo Cândido ganhou o apelido Fininho por ser esguio. Ele foi faxineiro na Universidade Presbiteriana Mackenzie e sonhava em estudar lá. Conseguiu cursar graduação de filosofia com bolsa de estudos. Formou-se filósofo. Entrou para a profissão de coveiro por um concurso do Serviço Funerário do Munícipio de São Paulo. “Sou coveiro por escolha própria”, diz. Hoje, trabalha no Cemitério da Penha.

Gosta de ler teatro. Ao falar sobre a importância do teatro grego por tratar da essência do teatro como catarse, ganhou de presente um livro de peças que eu levava na bolsa. Fininho atentou para o autógrafo na segunda página, e eu dei uma titubeada, mas quando perguntou se eu já tinha lido Antígona, ganhou o livro de vez. “Se a pessoa não compreender o teatro grego, não compreendeu o teatro. Vai passar vergonha numa discussão. Se ele não leu Antígona, não vai entender a catarse, a interpretação que se pode ter da vida sem o uso da razão, apenas com o teatro. Não sou eu que digo isso. Quem falou foi um prussiano. E o nome dele é Nietzsche”.

Ele alimenta uma ambição na vida: publicar um livro que escreveu sobre o dia a dia de um coveiro.

Casado com uma costureira e com filhos (não me contou quantos), diz que a morte nada mais é do que um ponto no tempo e a lembrança da existência do instinto.

O que é a morte para você?

Um ponto no tempo. Qualquer coisa é um ponto no tempo. A morte é a lembrança do instinto. O homem cria a civilização, a sociedade, a amizade, mas existe seu instinto. É por isso que ele quer copular o tempo todo. Para que sua vida continue. A morte não é outra coisa senão um ponto no tempo. Fora isso você vai ficar fantasiando, inventando…

O absurdo é a vida. Quem falou isso foi Albert Camus e eu concordo com ele. Você não sabe como nem por que começou, como nem por que acaba. A vida é o intervalo entre o nascimento e o desaparecimento. Agora a morte cada qual dá o sentido que quiser. Tem gente que diz que é renascer, tem quem diga que é o fim de tudo. Camus tinha essa impressão, do absurdo da vida. Já o conterrâneo dele, Diderot, dizia que era o vazio. Não é interessante?

Você prefere ser chamado de coveiro ou de sepultador?

Ah, sepultador é fantasy. Eu sou coveiro mesmo. Quem faz cova é o quê?

 O que diz na sua carteira de trabalho?

Diz que eu sou sepultador. Mas é fantasy.

Você gosta do que faz?

Apaixonado.

O que te cativa na profissão?

Acho que você poderia formular assim: o que há nas outras profissões que não há na minha atividade.

Se você pudesse ser qualquer coisa no mundo, o que seria?

A mesma coisa que sou hoje. Se eu pudesse renascer, eu pediria o favor de ter a mesma vida. É muito bom.

O que não é bom então?

O desconhecimento. O descaminho. Quem pelo dinheiro vive, é por ele mesmo que dedicará sua vida e perderá sua virtude, perderá sua coragem, perderá sua própria vida. Tem gente que vive a vida inteira, perde a juventude, correndo atrás do dinheiro, para quando estiver velho, gastar tudo tentando restabelecer a saúde.

Você acha que seu ofício interferiu na visão que você tem do dinheiro?

Evidente. Evidente que sim. Óbvio.

Você lembra de algum momento que isso te marcou?

Vários… Eu refleti bastante no sepultamento de Plínio de Arruda Sampaio. Eu via nele uma dedicação incomum. Ele tinha posses mas se dedicava de um modo à política que me pareceu muito tocante. Um dia eu o vi na avenida paulista, muito debilitado, já doente, distribuindo santinho do partido dele lá. Eu comentei que ele precisava descansar. Ele respondeu: “um homem deve chegar até a morte cumprindo aquilo que ele pensou, aquilo que o coração ordenou”. Eu fiquei muito emocionado. Aquilo que se acredita tem mais valor do que aquilo que se tem. Porque, na verdade, há a impressão de se ter as coisas. Mas é só uma impressão, porque ninguém tem nada. Não poderá transportar nada porque não se sabe para onde vai. Vamos a lugar nenhum. Viemos do nada, seguimos para lugar nenhum. Seguimos para hipóteses. Uns dizem que vão para o céu, outros para o inferno…

Como as pessoas reagem quando você conta que trabalha como coveiro?

Ah, todo mundo vê o coveiro como um fracassado. Um fracassado social. Porque o sucesso, o sucesso na América do Sul, está no dinheiro. Às vezes eu apelo um pouco né, falo ‘olha, fulano de tal foi coveiro’, como o Rod Steward – que foi coveiro também.

Quem é você?

Eu sou neto de Silvestre Camargo e da dona Albertina Camargo. Filho de Dirce Camargo, irmão do Odair, da Vera e da Iasmin. Esse cara sou eu. Eu sou bisneto de pessoas que foram escravizadas e, portanto, dado ao gosto popular. Gosto e leio toda a obra de Machado de Assis, com toda aquela pompa dele, mas sou dado também à literatura de Lima Barreto.

Sua profissão também faz parte de quem é você?

Sim.

Você gosta de trabalhar dentro de um cemitério?

Claro. Quem tem o privilégio de ouvir tanto passarinho cantando no serviço? A parede me tira a visão do horizonte. Eu não preciso da parede. Tem gente que precisa. Eu não preciso de parede, eu não preciso de gravata, preciso só do mínimo para viver. Porque assim eu não incomodo o outro. Eu não tiro o pão da boca de ninguém. E morro com a minha consciência tranquila, mesmo com a barriga vazia. O cemitério é um lugar dado à calma, à tranquilidade, ao sossego. É um lugar de vida (Fininho arranca uma pitanga da árvore e come).

Você já se emocionou em enterros ou costuma procurar se distanciar?

Ih, já chorei um bocado. Outro dia foi triste. Eu estava fazendo o sepultamento de um militar lá no Araçá (Cemitério do Araçá). Estava aquele clima, todo o comando da Polícia Militar lá. O cara tinha sido morto pelas costas. Estava muito calor e chovendo. Eu estava sentindo um negócio gelado e quente nas minhas costas enquanto eu fazia o sepultamento… achei que era a chuva. Aí eu escuto uma menina falar: moço, fala para meu pai levantar. Aí eu vi que aquilo nas minhas costas era o choro da menina.

Para você trabalhar com cemitério você tem que saber do trato humano, saber se comunicar, ou como não se comunicar, perceber os sinais da pessoa, procurar tratar da melhor maneira possível, senão você pode ser mal interpretado. Para lidar com a morte, você não pode ter mecanicismo, você não pode ser frio, indiferente.

As pessoas normalmente falam com você, ou você passa invisível?

Um coveiro tem que ser quase invisível. Porque a pessoa está em profundo desagrado com o mundo. Mesmo quando você vê aquele tom de resignação, a pessoa também está em profundo desagrado. Qualquer coisa que for feita que não for de seu agrado, pode causar imensa confusão. Tem que se tomar cuidado com qualquer gesto fora do ritual.

Você conta com o dia de amanhã?

Eu não. Hoje para mim está ótimo. Eu posso semear algumas coisas no dia de hoje. Mas pode ser para outra pessoa colher. Eu me alimento com o hoje. E curto o hoje. Se tiver amanhã, agradeço.

Como é esse “curtir o hoje”?

Sabe o que é mais importante na vida? A própria. Lógico que eu não sou nenhum hedonista. Não vou ter aquela vida de mil prazeres. Cada qual que encontre seu melhor jeito de viver. O dinheólotra vive que nem um louco atrás de bolsa de valores, queda do dólar, política e não sei o que… eu não conseguiria viver assim.

Quais dicas você poderia dar para quem quer viver o hoje?

Acorde bem humorado. Humor é fundamental. Aproveite as delícias da vida, aquilo que você acha bom. Faça o que você gosta de fazer. Você tem que estar próximo daquilo que você deseja. Nem precisa ter aquilo que você deseja. Estar próximo é uma situação muito interessante. Você tem a expectativa. Na vida se pode ter expectativas, nunca certezas. Eu não tenho certeza do dia de amanhã, mas eu tenho a expectativa. A manutenção da própria vida… você já viu como é interessante um copo de água?

“Viver não é acumular dias”, como disse Antônio Penteado de Mendonça.

Como você sabe a hora certa de fechar o caixão?

É o timing. Não pode ser zé mané. Eu tenho que fazer com que você acorde para a hora. Você está embebida pela morte. Então eu tenho que dar um toque. Eu pego e seguro a tampa do caixão, sem pressa. Cada um tem uma técnica, a melhor é essa, porque você dá um sinal. Chegar e tampar o caixão é uma grosseria, uma estupidez. Pedir também é desagradável. Agora, quando eu pego a tampa, eu mostro. Quando você sepulta uma pessoa, não é só uma pessoa que você está sepultando. Você vai sepultar um sonho, você vai sepultar o amor, a ilusão, aquele apego. Não é só um corpo. Você tem que se colocar na posição do cara. O processo de morte, na minha profissão, é embrutecedor. A percepção da morte não é para todos.

Quais são as reações mais comuns?

Agressividade, riso, resignação, alguns assobiam. Já levei um soco que me tirou do chão. Era um político. Eu falei: já quase não tenho dente, você vem me tirar os que restam, mas que xarope! A filha me pediu para eu não brigar com seu pai. Fiz o sepultamento todo com gelo na boca. A esposa dele comentou depois que ele tinha bebido.

Você acredita em espíritos?

Nunca dei trela para isso não. Não tenho tempo para isso. Essa é uma falsa questão. Sabe o nome disso? Sofismo. É uma falsa questão. Leia um livro que se chama “De Anima” de Aristóteles, o pai da lógica formal. O primeiro livro que eu me apaixonei foi o do Newton (Isaac Newton), Aristóteles foi o segundo.

As coisas andam, se movem, você concorda comigo que a terra gira? Mas o que quer dizer que a terra gira? Oras, se uma coisa gira, logo tem que ter o primeiro giro, o motor. É aquela pergunta que seu filho vai te fazer: mamãe, por que a terra gira? Se ninguém ta empurrando, por que ela gira? De onde vem as forças? De onde vem a matéria? É daí que vem “De Anima” – a matéria é inanimada. Teve um que morreu pensando nisso, o Einstein. Fez “A Teoria do Tudo” e morreu.

Sobre os espíritos: pensar sobre eles não é uma questão, não é um problema. René Descartes vai falar: penso, logo existo. Agora o outro, um alemão o qual dediquei mais da metade da minha vida, vai falar assim (Fininho refere-se à Immanuel Kant): muito bem, quem é esse eu? Então, ele escreve uma nova metafísica. Ele vai dizer os seguinte: são acidentes. Ele não fala sobre Deus ou sobre a alma, porque de que adiantaria? Ele é racionalista, ele é um iluminista, ele é o pai da razão, um divisor da filosofia na Alemanha.

Então, eu digo que é um sofismo porque falar sobre a existência ou não de espíritos é a criação de um falso problema.

Vamos falar de causalidade. Essa árvore está aí porque um dia tinha uma sementinha aí – você vai buscar a causa da existência da árvore com a razão e por aí vai. Mas se a sua razão buscar as causas, logo você vai chegar numa causa não causal. Logo, a razão não encontra explicação. Aí entra a fantasia. Eu vou deixar isso aí como um postulado. Na visão de Kant, Deus é um postulado – porque a razão não alcança.

Você já pensou no que querem que seja feito com seu corpo quando você morrer?

Eu não. Eu vim de graça, vou embora de graça. Já ouviu aquela música? (cantarola) A bruta flor do querer… Então, é isso. (a música é “Querer” de Caetano Veloso).

Qual é a relação com essa música?

O querer! Mas minha música predileta é uma de Aldir Blanc: caía a tarde feito um viaduto, e um bêbedo trajando luto, me lembrou Carlitos… Ele fez músicas para a Elis Regina.

Você já pensou em compor?

Quê? Com tanto compositor bom por aí eu vou me meter com isso? Vou compor onde tem João Bosco? Não…

Você já fez amizade com alguém que conheceu num velório?

Eu já passei o Natal com uma senhora que vinha no Araçá (cemitério do Araçá, onde trabalhava) para conversar comigo. A família me pediu para levar todos meus netos lá no Natal. Levei. Ela me chamou no hospital para vê-la antes de morrer… Eu gostava muito dela. É importante isso no mundo, encontrar afinidades. (cantarola) É impossível ser feliz sozinho. Não é?

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