“Minha Despedida
Meu pai uma vez me disse que não tinha medo da morte e que nós não deveríamos nos preocupar com isso. Agora que ele se foi eu também já não a temo mais. E essa foi a última lição que aprendi com ele.
Há cinco meses meu pai sofreu um AVC hemorrágico devastador e, desde então, eu não consegui escrever uma única linha se quer sobre o assunto. Foram tempos de reclusão, ações focadas e uma incessante batalha. Mais ainda. Foram tempos de aprendizado, de gentileza, de humildade e do reconhecimento da nossa insignificância perante a morte. No ringue em que meu pai se encontrava, ninguém podia entrar. A nós foi permitido apenas assistir. E fizemos isso com amor, dedicação e resignação. Acompanhamos passo-a-passo. Dia após dia. Minuto a minuto. E entendemos quando a luta chegou ao fim que não havia vencedor ou perdedor. Havia apenas a vida.
Nesse tempo, nos deparamos com profissionais de saúde que trataram meu pai como nunca imaginávamos que pudesse acontecer entre desconhecidos. Aprendemos com isso. Aprendemos também que medicina e espiritualidade são duas ciências que ainda não caminham de mãos dadas. Aprendemos também sobre compaixão, desapego, harmonia e que o amor sempre vence a dor.
No enterro dele, minha mãe disse, com calma e serenidade aos nossos amigos e familiares presentes, que a nota principal da trilha sonora das nossas vidas havia desafinado, mas que a doença do meu pai mostrou a ela o que é o verdadeiro amor incondicional. Minha mãe tinha razão, mas além da nota principal ter ficado em total descompasso, perdemos também o nosso maestro. E que maestro.
Mas ele deixou um legado que não cabe em mim, de dedicação à profissão e à família, ética, honestidade e retidão moral. Dele herdei o gosto pelas músicas matinais aos domingos, pela leitura incessante, pela política, pelos ideais humanitários, pelas notícias, por contemplar as estrelas no céu, por cultivar plantas e por apreciar o silêncio, onde muitas vezes apenas as notas musicais recebem a permissão para adentrar o seu mundo e à sua alma.
Eu lamento, e como lamento, a morte do meu pai, mas sou grata por ter tido o imenso prazer de ter sido a sua filha ao longo de 34 plenos anos. Um pai presente e dedicado. Um pai que me deixava correr pelo consultório enquanto ele atendia às outras crianças. Um pai que construiu uma piscina no quintal para que nós desfrutássemos porque ele mesmo nem gostava de piscina tanto assim. Sentia frio naquela água gelada. Um pai que preparava churrasco para toda uma família. Um pai que fazia questão de que viajássemos todos juntos. Um pai que nunca economizou com nossos livros e estudos. Um pai que nos concedeu a honra de termos tido uma infância plena e feliz e que nos tornássemos adultos realizados. Um pai que tinha como meta a criação dos filhos. Um pai que amou e respeitou a minha mãe e que, juntos, permitiram que nos desenvolvêssemos em um ambiente de paz e harmonia. Uma orquestra completa.
Nos últimos anos, uma das maiores alegrias do meu pai era encontrar pelas ruas da cidade os pacientes que ajudou a colocar no mundo. Vê-los adultos e com saúde era para ele tão prazeroso que sempre me contava quem é que tinha visto e como tinha sido o encontro. Eu dizia que muitas vezes a impressão era de que ele tinha sido o médico da torcida do Noroeste inteira porque para todos que eu falava que era filha do Luiz Fernando, a resposta era: ele foi o meu médico. E bastava isso para que ele estufasse o peito mostrando todo o seu orgulho.
Por toda a vida, ao entrelaçar minhas mãos com as dele, eu só conseguia pensar em quão sortudas eram aquelas crianças em ter um pediatra com as mãos de veludo. Mas sorte mesmo tive eu, de ter um pediatra que era o meu pai.
Durante esses cinco meses em que ele ficou internado, nossa comunicação era escassa e rara, mas ele ainda conseguia apertar as nossas mãos. E eu me apeguei até o fim a esse simples gesto para que nunca mais saísse da minha lembrança aquele toque. Espero também que eu nunca esqueça a sua voz.
Meu pai era pequeno. Mas um pequeno gigante. Mas um gigante discreto. Morreu como um verdadeiro cavalheiro ao nos conceder cinco meses para nos despedirmos. E eu não desperdicei nenhuma chance para dizer o tanto que o amava enquanto apertava a sua mão. Pai, foi uma honra ter sido a sua filha. Já já a dor se transformará em saudade. Vou viver e esperar. Que possamos afinar os instrumentos sozinhos. Maestro, solta o som”.
“Um vazio cheio de grãos de areia
A morte é mesmo uma coisa estranha. Às vezes parece até que a pessoa não morreu. É como se você estivesse na cozinha e ela no quarto lendo um livro enquanto você faz ali um ovo mexido rapidinho. Mas um ovo mexido em que você pode colocar cebola, tomate e um pouco de pimentão, ingredientes que a pessoa que supostamente está no quarto nunca gostou nem um pouco. É como se ela tivesse recusado a refeição, mas para sempre. E a rotina segue com você na cozinha. E ela no quarto. Você na sala. E ela no quintal para cuidar das plantas. Você no supermercado. E ela no banco. É como se o cotidiano tivesse se tornado uma série de desencontros de pessoas que moram na mesma casa e que nunca mais se trombaram pelo corredor, pela garagem ou pelo jardim, mas apenas por uma imposição que parece até da vida e não da morte.
É como se o vazio causado pela morte começasse a ser preenchido, como aquelas garrafinhas de areia colorida. Demora, mas em algum momento o artesanato fica pronto e a você só cabe apreciar como é que aquilo foi produzido.
Quando alguém morre, as pessoas que mais acertam nas palavras de consolo são aquelas que já passaram por situações semelhantes. Não raro ouvimos “descansou” ou “foi melhor assim”. Melhor para quem? Era o que eu me perguntava no velório do meu pai. Para mim é que não foi melhor. É porque o amor é mesmo egoísta. Quanta contradição para um sentimento tão nobre. Mas é que mesmo com o corpo que padece numa cama de hospital, ainda é possível sentir a respiração, pegar na mão, dar um beijo na bochecha, encostar a cabeça no peito para sentir a respiração e dar um cheiro no cangote. Coisas do amor. E do apego. Vai entender.
A última vez que estive em Bauru, estava com medo de chegar em casa e sentir o vazio acometendo minha alma, como um sopro de um gigante em um coração já aniquilado, assim que a porta da sala de visita se abrisse. Se meu pai estivesse lá, seria ele quem cuidaria de me recepcionar assim que eu tocasse a campainha. E ele também atenderia o interfone com o uníssono “Pois Não” com a voz dissimulada como se já não soubesse que era eu.
Mas ao entrar por aquela porta, aberta pela minha mãe que tinha sido quem foi me buscar na rodoviária, parecia que meu pai estaria sentado na sala, talvez um pouco cansado para me esperar logo na garagem. Mas ele não estava. Então talvez estivesse no escritório fazendo palavras cruzadas nível Difícil, ou compenetrado nas tabelas de Excel com as contas do mês, ou ainda lendo algum livro sobre religião, política ou filosofia. Ou ainda algum título do José Saramago. Mas ele não estava. Será que estava no banho? Será que aproveitaria para fazer a barba? Então demoraria um pouco até ele sair para me ver. É, ele não estava em casa. Não me esperou mesmo sabendo que eu chegaria.
E por alguns momentos me senti murcha, como se eu fosse uma boia furada no meio da correnteza. Depois o furo, que é um vazio é infinito e escuro e que mora dentro do peito, foi sendo aos poucos preenchido com as lembranças das fotografias espalhadas pela casa, quando ainda éramos cinco. E a presença física dele foi sendo substituída pela voz que ainda ecoa no ouvido e o cheiro que você é capaz de sentir mesmo sem o abraço. A pessoa está morta, mas está viva. Será que é isso o que chamam de legado? Ou isso é saudade? Ainda não sei, mas sinto que os primeiros grãos de areia estão sendo delicadamente inseridos na garrafa vazia que estava o meu coração. Ainda não chegou na parte colorida e está longe de o artesanato ficar pronto, mas já dá para ver que vai ficar bonito. É, a morte é mesmo bem esquisita. E o amor também”.