Confissões suicidas

Camila Appel

“Enfim, escrevo não apenas como um desabafo, mas na busca de sensibilizar pessoas, pois quem é acometido ou até nutre pensamentos e hábitos suicidas muitas vezes não transparece isso. Por isso, venho apelar para a generosidade das pessoas” (…) “Ouça, busque compreender e jamais julgue, pois só o frio escuro da madrugada conhece a amargura que um ser humano pode estar enfrentando calado, posando de feliz para não agravar ainda mais sua própria situação”.  – Frases do leitor Lucio Fermi, em depoimento enviado ao blog (reproduzido na íntegra, abaixo).

O suicídio pode ser visto como um problema filosófico, e para Albert Camus (1913-1960) é o mais importante de todos: “ julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”. Se matar seria uma espécie de confissão: “confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos”, ou “confessar que isto não vale a pena. Viver, naturalmente, nunca é fácil. Continuamos fazendo os gestos que a existência impõe por muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume. Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento”. O filósofo não acredita que o suicídio seja uma saída, mas vê essa reflexão como necessária. O perigo seria não refletir a respeito.

Leia mais no post “É preciso imaginar Sísifo feliz”.

Para saber sobre mitos e prevenção ao suicídio (posvenção também), entre na categoria suicídio do blog.

Segue o depoimento enviado pelo contador Lucio Fermi.

“Confissões suicidas

Por Lucio Fermi

Diariamente sou tomado por pensamentos em acabar com minha própria vida. Às vezes, a fúria é tanta que se volta a toda a raça humana ou até mesmo à existência como um todo. Felizmente, hoje em dia, sei que esse impulso é controlável, que se trata de uma infantilidade da minha mente e aprendi a superar esse anseio tolo. Porém, como diria Nietzsche, ele me ajuda a suportar longas noites de desespero diante de um mundo tão nefasto e cheio de sofrimento.

Tudo começou com um misto de herança, talvez genética, mas mais familiar mesmo, já que tanto meu pai como minha mãe – talvez até minha avó que conviveu muito comigo – tinham depressão e o pensamento suicida se manifestava muito neles. Em meu pai, creio que de forma bem consciente, pois me lembro com uns 8 anos de idade de me deparar na biblioteca de casa com um livro chamado “Manual do Suicida”, com o Homem Vitruviano de Da Vinci de ponta-cabeça na capa. Não me recordo o autor, mas o livro continha os prós e contras de diversos métodos de suicídio. Nessa época eu já sofria um horrível bullying por ser terrivelmente magro e usar óculos. Não, as provocações de coleguinhas que me colocavam como um doente terminal nem eram as que mais me afetavam, mas o firme rechaço das meninas pelas quais eu me interessava.

Com uns 11 anos de idade, apenas porque eu morava num prédio bom e bonito, comecei a sofrer provocações de grupos de garotos que moravam em casas mais humildes e que, anos mais tarde, até conviveriam comigo – por meio de amigos em comum – com certa dose de pacifismo. Essas hostilidades vinham do fato de eu ser e parecer nerd e por apenas parecer estar em melhor situação financeira que esses garotos. Nesses anos posteriores, alguns destes garotos tomaram rumos de criminalidade e, certa vez, chegaram a me perseguir para me surrar. Só fui salvo porque o cara mais temido do bairro me respeitava, já que eu sempre o cumprimentava quando andava pela rua e demonstrava um carinho por ele sem qualquer interesse, apenas por felicidade.

Lá pelos 14 anos, fui tomado de uma revolta enorme e busquei consolo nas drogas e no ocultismo, paixões que perdurariam por dois terços da minha vida e que, de modo paradoxal, ajudaram a me libertar desse impulso suicida. Tendo escolhido um caminho um tanto na contramão do que deveria, acabei apenas reforçando minha magreza, um modo de vestir que nunca colaborou para demonstrar beleza, aumentando cada vez mais minha timidez e meu insucesso conjugal.

De todo modo, a autodestruição nunca passou do uso de drogas e um comportamento um tanto desleixado comigo mesmo. Acabei desenvolvendo uma toxicomania que me levou a experimentar de tudo, mas meus maiores vícios acabaram sendo as lícitas, tabaco e álcool. Das ilícitas, criei apreço maior pela maconha, mas atualmente, considero-me controlado, já que nenhuma destas 3 eu consumo mais do que algumas vezes por mês e, geralmente, sem precisar apelar ao tráfico (no caso da maconha). Porém, em épocas não muito distantes, tendo um acesso fortuito a opióides e opiáceos industriais, cheguei a ter uma leve overdose, gerenciada em casa mesmo, já que desde pequeno não apenas consumia drogas, mas também estudava farmacologia e primeiros socorros, o que me tirou de muita enrascada ou evitou de entrar nelas.

O único episódio em que tentei algo de pior foi quando eu tinha 22 anos, justamente numa balada da faculdade em que eu estava tentando parar de fumar maconha, mas onde havia vodca à vontade. Após inúmeras tentativas de me aproximar de mulheres, sendo rechaçado às vezes com grande nojo e humilhação, sumi na “natureza selvagem” e só fui encontrado porque meu melhor amigo sabia exatamente onde eu poderia estar, ajudado por conta da localização do meu carro, que eu havia abandonado aberto e, por sorte, tinha sido encontrado pela polícia.

Enfim, escrevo não apenas como um desabafo, mas na busca de sensibilizar pessoas, pois quem é acometido ou até nutre pensamentos e hábitos suicidas muitas vezes não transparece isso. Por isso, venho apelar para a generosidade das pessoas. Talvez se eu tivesse me sentido mais amado pelas garotas, eu teria atenuado isso antes e de modo mais fácil. Talvez se as pessoas ao meu redor estivessem mais preocupadas comigo e não com que eu me amoldasse a padrões que não tornavam nem mesmo elas felizes, eu tivesse aprendido a me respeitar mais. De toda maneira, não culpo ninguém, nem a mim mesmo e vejo que por mais que o mundo externo pudesse ter colaborado, é o meu filtro que importa. Com isso, apelo aos suicidas em potencial para que busquem a razão, a lógica e o controle emocional. Afinal, embora eu concorde com que a pessoa se mate em caso de doenças realmente incuráveis nas quais não faz sentido que se prolongue o sofrimento, para todas as outras situações sempre há uma saída.

Não sei dos outros, mas tenho vontade de me matar ou matar o mundo inteiro quando vejo a situação lastimável em que nosso país se encontra ou mesmo em que o planeta todo se encontra, quando vejo que muitas pessoas estão mais preocupadas com valores absurdos do que com o que realmente importa… O pensamento suicida surge como uma saída possível para o desespero financeiro, o desânimo profissional, a apatia sexual e tantas outras mazelas pessoais, como dores crônicas que (ironicamente), a maconha alivia sem causar os efeitos colaterais e o perigo que os opióides provocam. Entretanto, quando lembro das pessoas ao meu redor que ainda gostam de mim ou das coisas boas que ainda posso fazer pelo mundo, vejo o suicídio como um egoísmo descabido, que só vai disseminar mais sofrimento e gerar mais problemas.

Para terminar, registro que o único caminho para sair do estado suicida é a busca pela positividade, com auxílio dos esportes, da arte, do humor e do humanismo em geral, independente de religiões, sempre tomadas de objetivos inescrutáveis que nos colocam em último lugar (claro, há exceções) e de regras que nos colocam em conflito com nossa natureza ambígua. A você que tem a sorte de não ser assolado pelo “fantasma suicida”, peço respeito com quem o seja, pois lhe garanto que ninguém, se pudesse escolher, gostaria de ser rondado por esse “demônio”.

Quem quer ajudar, quer mudar o mundo, comece com seus familiares e amigos, pois tenho certeza que algum deles padece desse mal silencioso, que corrói a mente e pode levar à loucura, à morte e até mesmo ao homicídio em massa. Ouça, busque compreender e jamais julgue, pois só o frio escuro da madrugada conhece a amargura que um ser humano pode estar enfrentando calado, posando de feliz para não agravar ainda mais sua própria situação”.

Contato do Lucio: terion@bol.com.br