De Shakespeare a Cervantes: A Morte na Literatura
O leitor Pedro Del Mar enviou ao blog um artigo que escreveu sobre morte na literatura. Pedro mora em Salvador, é repórter e colunista. Publica textos em seu site pessoal e mantém uma coluna no portal Cabine Cultural.
Pedro nos escreve sobre a morte na literatura, passando pela melancolia de Moacyr Eclair à interpretação da alegoria da morte presente no Dom Quixote de Cervantes.
Lembrei das últimas palavras de Hamlet – “O resto é silêncio”, e da ótima palestra de Leandro Karnal “Hamlet e o mundo como palco“. A morte me remete mais a um grito surdo do que um silêncio em si. Como aquela famosa imagem de Edvard Munch (O Grito), colorida e assustadora, atraente e repulsiva. Pedro descreve seu medo da morte dessa forma antagônica, “assim como o mar, sua imensidão e seus mistérios, a morte me provoca dualidades aparentemente paradoxais de sentimentos: temor e atração, receio e sedução, desdém e respeito”. Esse medo faria parte de sua personalidade “estranha”, de alguém que não consegue encontrar seu lugar no mundo. Algo que percebeu na adolescência, mas na época ele achava essa característica ruim e hoje em dia não acha mais. Tenho convicção que de perto ninguém é normal. Os protagonistas dos nossos filmes prediletos estão aí para comprovar que gostamos de ver pessoas estranhas porque, no fundo, nos sentimos assim, uns esquisitões cambaleando por aí em busca desse “lugar no mundo”, dessa referência externa que nos traga algum conforto para a agonia de estarmos diante de um postulado impossível – que é a vida. Boa leitura.
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“De Shakespeare a Cervantes: A Morte Na Literatura
Por Pedro Del Mar
Desde muito cedo, e quase cotidianamente, penso na morte. Ou melhor, nas mortes. Na minha, na de pessoas próximas, na de estranhos, na de animais, na morte em sua plenitude. Não sei exatamente o porquê. Certamente, por uma natural dose de medo, mas não só. Outrora, achava que essa peculiaridade era formadora da minha personalidade “estranha” de um adolescente que ainda não achara seu lugar no mundo. A adolescência passou, eu continuo sem achar meu lugar no mundo – e isso não é necessariamente um problema – e continuo a pensar em morte. Ou a “estranheza” me acompanhará por toda a vida, ou talvez pensar em morte não seja assim tão estranho. Assim como o mar, sua imensidão e seus mistérios, a morte me provoca dualidades aparentemente paradoxais de sentimentos: temor e atração, receio e sedução, desdém e respeito.
Nasci em uma família de espíritas, filho de mãe médium, criado sob a égide de uma cultura onde ensina-se que a morte não é o fim, apenas uma etapa de uma missão maior. Naturalmente, espíritas e os demais que creem na reencarnação tendem a lidar melhor com a morte. Contudo, não sei se esse é o meu caso.
Como já tantas vezes dito aqui, a morte é o próximo tabu a ser quebrado pela minha e gerações seguintes. O primeiro é o sexo. Curioso constatar como a mais rígida das fronteiras se construiu no único elemento, até então, inadiável, irremediável e inescapável para absolutamente todos os seres vivos. Nos idos da década de 90, Renato Russo já cantava “viver é foda, mas morrer é difícil”.
O medo da morte tem lá suas vantagens. Temê-la nos impulsiona (ou deveria) a viver mais e melhor. Quantas pessoas vocês conhecem que após um grande susto, acidente, doença ou algo que o valha, decidiu reformular suas vidas a fim de aproveitá-las com mais qualidade? Nada mais comum. Talvez, isso se aplique ao medo de uma forma geral, não só da morte.
Como parte de um complexo processo psico-social, entre medo e curiosidade, sempre busquei, essencialmente na literatura e no cinema, formas de entender e conviver com a ideia e materialidade da morte. Ler me fez perceber, ainda na adolescência, que do ponto de vista médico e biológico, a morte é um processo uno, padrão, no Brasil ou na China, em Porto Alegre ou em Jacobina, a morte sempre se dá mesma forma: algo que acomete uma ou mais funções vitais do corpo. Entretanto, no plano da cultura (conceito antropológico) e dos costumes, a morte assume as mais diversas formas, funções e consequências. Se para a maioria de nós, ocidentais, a morte é um marco difícil e triste, em outras culturas ela é um elemento festivo e de comunhão.
Ler também me fez notar que a morte não anda sozinha. Em nossa cultura, onde a morte foi sacramentada como o fim da linha, ela vem acompanhada da melancolia. A melancolia, aquele que até o feudalismo, pré mercantilismo e revolução burguesa, era um sentimento estritamente europeu, desconhecido dos outros povos, como bem observa o médico e escritor gaúcho Moacyr Scliar, no livro “Saturno nos Trópicos, a melancolia europeia chega ao Brasil”. Hoje, a melancolia nos é tão íntima e companheira que parece uma nativa forjada nas praias tupiniquins. Aliás, o sentimento melancólico pós-morte de um ente querido é uma das muitas imposições da nossa cultura. Ai daquele que ousar não se deprimir.
No capítulo IX de Don Quixote, Cervantes descreve o encontro de Sancho Pança e Don Quixote com uma carruagem na estrada: “A primeira figura que se ofereceu aos olhos de Don Quixote foi a própria Morte com rosto humano; junto dela vinha um anjo com grandes asas pintadas; ao lado estava o imperador, com sua coroa, aparentemente de ouro, na cabeça; aos pés da Morte estava o deus chamado Cupido, sem venda nos olhos mas com seu arco, seu carcás e suas flechas; vinha também um cavaleiro…”. Nesta alegoria, observa-se, como bem destacou Scliar, que é a morte quem chefia a caravana, com um anjo, representando o poder celestial, do lado, e o imperador, representando o poder terreno, do outro. Atenta-se ainda para o fato de que o amor, representado pelo Cupido, não governa a carruagem, ao contrário, vive aos pés da Morte. Ainda, Cervantes retira as vendas dos olhos do Cupido – o amor é cego – em uma clara mensagem: diante da Morte, assim, com M maiúsculo, os olhos se abrem para uma realidade brutal. Seria esta alegoria uma descrição da vida? Só Miguel poderia nos responder.
Em Hamlet, de Shakespeare, o tema da morte, através da ótica suicida, aparece nas palavras de Macabeth da seguinte forma:“vale a pena lutar contra um mar de adversidades para manter a vida, essa história contada por um idiota, cheia de som e fúria?”.
Pensar a morte é também pensar a vida. É refletir sobre um destino certo, embora sem data marcada. Saber que vamos morrer, mas não quando, exerce um papel singular na dinâmica que faz a roda girar. Viver sob o signo desta incerteza, confere a vida um tom de adrenalina e excitação, em outras palavras, é a morte que (re) significa a vida (? ). Para Montaigne, filósofo francês,“filosofar é aprender a morrer”. Filosofemos então”.
Pedro Del Mar, 25 anos, repórter e colunista.