Carta à Consuelo
Minha querida amiga, hoje é o dia em que você morreu. Está um dia bonito, ensolarado. As folhas parecem balançar em câmera lenta e todos os ruídos do dia soam mais intensos. Imagino que faça parte da subjetividade causada pela dor, pelo desamparo de saber que você não está mais aqui hoje, não estará amanhã, nem depois.
Eu olho seu rosto no WhatsApp, releio as últimas mensagens trocadas e sinto uma falta de lógica brutal no fato de você ainda estar tão presente no meu celular. Claro que o ilógico é eu esperar uma resposta sua. Na manhã de hoje, foram seus filhos que me responderam pela sua conta. E eu entendo que você, agora, é a voz dos seus filhos. Foi o que eu senti quando abracei Carolina ontem à noite no hospital. Ela me lembra tanto você… as duas são lindas e fortes. Quem te conhece bem iria rir desse “forte”. Você não é forte, você é um touro, um furacão. Eu tô aqui abraçada com seu último livro e o título dele resume bem o que estou tentando dizer. “Três Histórias de Amor e Fúria”. Você é isso: amor e fúria. E eu adoro essa característica em você. Talvez é o que te dê o título de “o melhor diálogo da dramaturgia brasileira”, segundo Leilah Assumpção.
Estou um pouco confusa sobre o tempo verbal dessa carta. Você é ou você era? Você é, ponto.
Quando o médico plantonista entrou ontem no seu quarto de hospital, percebi que você não tinha boas perspectivas. Ele respondia as perguntas com constrangimento. Por um lado, gostei disso, porque mostrava um cuidado. Por outro, me indicou o que estava difícil de entender: você não acordaria nunca mais da sedação.
Eu peguei na sua mão, ensaiei uma despedida, mas não consegui falar. Eu tinha alguma expectativa de que você acordaria naquele momento e uma troca de olhar dissesse adeus. Puro egoísmo meu. Eu queria que você acordasse porque não fui me despedir de você antes, e a verdade é que eu cheguei tarde demais.
Você me escreveu quando foi internada “acho que vou morrer, Mila”. Eu não acreditei e fui adiando a visita. Eu tenho uma desculpa, claro, todo mundo sempre tem uma desculpa. Aí você me escreveu no domingo pedindo uma visita, “sei que é difícil, mas se achar uma fenda na agenda, vem me dar um beijo. Saudade de você, sua energia, sua força, seu afeto”.
Eu não fui.
Quando sua filha me ligou contando que você estava sedada e poderia não acordar mais, meu chão sumiu. E agora eu sei como é devastador não ver uma pessoa que você ama “a tempo”. O remorso é terrível no luto e ainda vai me custar muito caro.
Você foi uma das maiores incentivadoras desse blog. Leu e comentou comigo cada um dos mais de cem posts que publiquei até agora. Esse será o primeiro que você não vai ler. Ele é uma carta para você. É a despedida que eu deixei de dar. O afeto que você pediu e eu deixei de entregar. O carinho na mão que eu queria ter feito, a transmissão de um calor no olhar, o chocolate que eu te levaria (ou aquele bacalhau que você ama), o silêncio que ficaria entre nós quando você pensasse na possibilidade de ser nosso último encontro. E eu entenderia. Eu ia te pedir para vir me contar se existe vida após a morte e repetiria mentalmente algo que você me falou, assim bem casual, durante um almoço: a maior qualidade do homem é a inquietude.