Sobre o massacre em prisão do Amazonas
O recente massacre em um presídio no Amazonas remete a uma discussão sobre as condições de vida que o sistema penitenciário oferece. Só naquele presídio, havia três vezes mais presos do que sua capacidade, classificado como péssimo para “qualquer tentativa de ressocialização, com presos sem assistência jurídica, educacional, social e de saúde”, pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Já sabemos que a maior parte das prisões não são estabelecimentos de correções de comportamentos e acabam por realçá-los.
A cadeia pode ser, também, uma grande incubadora de distúrbios mentais. Não tenho dúvidas de que alguns neurônios precisam estar em off para alguém decapitar outros com brutalidade e esperar palmas por isso.
Esse acontecimento me lembrou uma reportagem da revista americana “New Yorker” sobre a realidade de presos com distúrbios mentais em uma penitenciária na Florida, Estados Unidos. A matéria diz que nos anos 90, as prisões acabaram se tornando as instituições de saúde mental predominantes no país.
Ela traz o perfil e o depoimento de uma ex-funcionária que prestava assessoria psiquiátrica aos presos. Harriet Krzykowski afirma que, no início do trabalho, desconfiou dos boatos que ouvia, como os presos serem torturados por guardas. Seus pratos de comida, por exemplo, chegavam vazios. Os passeios na área aberta da prisão eram constantemente vetados. Os presos deixavam de ter acesso ao pouco de ar que existia, apesar de ser apenas um quadrado acimentado.
Ela diz perceber o quão rápido a situação mental dos presos piorava. Eles chegavam cheios de energia e aos poucos passavam o dia inteiro dormindo em seus excrementos.
Harriet, no início, até ficava em dúvida sobre denunciar os guardas ou não. O tempo todo, havia demonstrações de poder por parte deles, como deixá-la sozinha com os presos em um ambiente fechado e à mercê de agressões físicas e estupros. Outro psicólogo acabou delatando que os presos mostravam marcas de agressão no corpo dizendo terem sido feita por guardas, e foi retaliado por isso. Acabou sendo demitido. Diziam que ele estava muito “do lado dos presos” e não dos guardas. Essa polarização não facilitava muito a vida de Harriet. Ela tinha medo de falar e acabou aprisionada nela mesma. Se algum abuso estivesse ocorrendo, o mais seguro sair imediatamente do local: “Não seja uma testemunha”, era aconselhada.
Um homem de 50 anos, preso por posse de cocaína e tido como esquizofrênico , por exemplo, foi punido pelos guardas ao se recusar a limpar o coco da sua cela. Disseram a Harriet que ele iria ser colocado no “chuveiro”. O preso morreu logo após o banho e ela descobriu que colocar presos no chuveiro fervendo era uma tática comum, chamada de “o tratamento do chuveiro”. A água a 80 graus, forte o suficiente para ferver um copo de água e ou mesmo um miojo, como ela mesma descreve. O preso em questão, com distúrbios mentais, teve 90% do seu corpo queimado e a pele se soltava ao toque.
Harriet descreveu sua experiência como psicóloga desta instituição em um manuscrito que ela chamou de uma “narrativa do trauma”. Quando ela não tinha papel, anotava no braço para não esquecer. Ela conta o caso de um preso chamado repetidamente de “Absorvente” por um guarda, até ele chegar a um ataque de fúria. O motivo? Um dia, ele tinha sido estuprado por prisioneiros e precisou de um absorvente para parar o sangramento do bumbum.
Denúncias já foram feitas pela equipe médica daqui, como a descrita por Draúzio Varella em “Carandirú”. Mas a situação brasileira é diferente da americana, só nos resta investigar como e porquê. Não adianta só ler a manchete de que 60 presos morreram em um massacre em presidio lotado três vezes da sua capacidade e achar que não passa de uma luta entre facções. É bem mais do que isso.
A ilustração acima tem o título: “Vaclav com membros decapitados”. É de Roberto Alencar. Veja mais no site: http://robertoadesenhos.wixsite.com/robertoalencar