Fotógrafa registra o Brasil por meio de cemitérios

Camila Appel

A analista de software e fotógrafa Paula Portes sente-se bem em cemitérios. É uma postura herdada do pai, que sempre tratou a morte sem dedos com a menina. Em viagens pelo Brasil, ela registra lápides, esculturas e símbolos. Encantada com a história e a cultura de cada cemitério, Paula considera que uma cidade só é realmente conhecida a partir dessa experiência.

Ela nos enviou o depoimento abaixo. Algumas fotos podem ser vistas na galeria de fotos, abaixo.

DEPOIMENTO: Paula Portes

“Meus pais me ensinaram a ver cemitério como museu, como um parque, como um lugar de respeito, de história, onde não há motivo para temer ou fantasiar medos e afins.

O primeiro cemitério que explorei fica a uma quadra da casa dos meus pais, em Mogi das Cruzes -SP. Meu pai me contou a maior parte das histórias das pessoas enterradas ali, de “santos milagreiros” a personalidades da cidade.

Adestrei um cachorro lá, a Brisa, para simular as ruas, mas sem o medo dela morrer atropelada (risos). Nessa, acabamos amigas dos coveiros e funcionários do local. Converso com eles até hoje.

Tenho quatro sobrinhos e me preocupo em transmitir essa naturalidade em relação aos cemitérios a eles. Dois passeios marcaram bastante suas vidas: a primeira vez que fomos ao cemitério, fizemos um piquenique em cima de um dos meus túmulos favoritos. Na segunda visita, decidimos fazer uma brincadeira e assustar os que passavam na calçada. Moral da história: risadas de doer o abdômen e alguns impropérios proferidos pelas “vítimas” da pegadinha.

Meu pai sempre foi muito sarcástico e eu nunca sabia quando ele falava sério ou quando me pregava uma peça. Eu pequena, apegada a ele e a seu mundo no escritório de casa, quando comecei a ler, peguei aquele bloquinho de carnê que me chamava a atenção por ter uma logomarca com um pássaro e perguntei: “o que é convênio funerário, papai?”.

Ele, calmamente se abaixou e disse: “sabe quando o papai comprou a filmadora pelo consórcio? Então, convênio funerário é igual, quando o papai for sorteado, cada um vai ter seu caixão embaixo da cama e você poderá até guardar seus brinquedos nele”. Isso tudo em tom sério. Até hoje não consigo dormir em cama que tem um vão embaixo.

O tema da morte sempre foi corriqueiro e tratado com naturalidade. Até demais ao meu ver, principalmente se tratando da morte dos pais. Eles eram claros quanto à questão de “vamos morrer antes de vocês” e isso foi o maior temor da minha vida.

Quando meu pai faleceu, o medo veio à tona e mesmo após quase sete anos, ainda é latente sua presença e a sensação de “papai foi trabalhar” ou foi ao centro da cidade… Ele sempre foi muito ativo e vivia para cima e para baixo com os netos.

Acompanhar todo o trâmite da morte é bem complicado quando se trata de um pai. Ele descobriu um câncer e, três meses depois, se foi. O enterro foi num cemitério jardim, onde estão os meus avós paternos. Só tem uma placa e o gramado, sem ornamento algum. Porém, num gramado lindo cheio de quero-queros que tanto amamos. Fiquei alguns meses sem pisar em um cemitério depois da morte dele.

Comecei meus registros fotográficos por Mogi, em meados de 2005. A partir de então, toda viagem, a cada cidade nova, se eu não conheço o cemitério, eu não conheço sua história. Inicialmente, procuro a história da cidade, suas personalidades e faço uma pesquisa prévia, vejo se há algum link dessas personalidades com o cemitério local.

Fui realizando os registros em torno do município e expandindo para o litoral. Em 2009, mudei de Mogi para o sertão nordestino, Petrolina – PE. Lá, conheci cemitérios no meio da caatinga, no meio da areia e seus espinhos. O cemitério local, dentro da cidade, tem a ala da ostentação com seus mármores e estátuas clichê (pietá, sagrado coração de Jesus, anjos, santos e crucifixos) e também a ala do abandono, com caixões e restos mortais expostos. Um pouco de descaso aliado com a falta de segurança e preservação.

Conheci outro, Cemitério do Campo da Esperança – Roçado, esse memorabilíssimo por eu ter ido de chinelos e ter ferido bastante meus pés com espinhos… Ele fica afastado da cidade, em uma estrada a caminho de uma ilha paradisíaca chamada Ilha da Amélia. Tem poucos túmulos de verdade e a maioria são em valas no chão arenoso. Poucos adornos e nenhuma escultura. É, nitidamente, um indicador da evolução econômica local. Morei um ano em Petrolina e visitei também cemitérios na região, ao lado da Bahia, separados apenas por uma ponte.

A maior diferença com os cemitérios do estado de São Paulo são os adornos. A quantidade e a qualidade deles. E a qualidade do material dos túmulos também. No Nordeste, reinam granito e cerâmica, enquanto que no estado de São Paulo, reinam mármore e esculturas mil. Não conheci os cemitérios da capital de Pernambuco e estive apenas uma vez no de Salvador, esse mais “similar” aos de SP.

Outra particularidade que difere entre os estados: só vi pixaçao nos muros de cemitérios do estado de SP. Muitos tem placas de ˜respeite os mortos˜, porem em vão. Descaso e abandono há por toda parte, inclusive abandono de gatos – unânime em todos os cemitérios. Em algumas cidades ocorreram até envenenamentos e casos bem pesados como em Piracicaba: em 2012, 38 gatos foram mortos a chutes e pauladas. Porém, em vários, os gatos contam com o apoio da população, recebem alimento e zelo. Também por repelirem  ratos e outros animais peçonhentos.
Meu cemitério favorito é o do Redemptor, na esquina da dr Arnaldo com a Cardeal (na cidade de São Paulo), graças ao divino trabalho de paisagismo e jardinagem contidos ali. É a melhor praça para passear de todas!

Posteriormente, me mudei para o interior de SP, noroeste do estado, Catanduva. Ali, consegui um trabalho maravilhoso no qual eu implantava sistemas em usinas de beneficiamento de álcool e açúcar pelo Brasil. Aí eu comecei a viajar de verdade e a explorar um estado inexplorado ainda: Mato Grosso do Sul.

Como tudo era muito longe, geralmente em implantações, deixavam um motorista à minha disposição. No primeiro passeio, o motorista super animado pergunta “para onde a senhora vai no primeiro passeio?” e eu “cemitério municipal” – silêncio.

Como já era nosso terceiro dia de convivência e ele sempre engraçado, resolvi quebrar o gelo com a clássica frase: não sou gótica, nem satanista, gosto de arte. Até explicar, muitas perguntas e risadas. Quebrei tão bem o gelo que ele quis me acompanhar, e para fazê-lo ver tudo diferente, comecei a contar as histórias dos símbolos, fotografar e mostrar a ele os significados e como eu via tudo aquilo.

Ganhei um amigo e um aliado na missão de quebrar esse tabu em torno dos cemitérios. O que mais me chamou a atenção nos cemitérios visitados em MT foi o tamanho das imagens das fotografias dos enterrados ali. SP, BA e PE utilizam a clássica fotinha, pequena, emoldurada em bronze, com pinturas a mão, às vezes. Mas no MT, é bem diferente, verdadeiros banners gigantes, alguns com fundos “a lá” fundo de tela do Windows, com os rostos nesse contexto. Eles prezam bastante também por construções maiores, como “casinhas”. Poucas esculturas e ornamentos, porém existentes na ala mais abastada. Mármore, granito e cerâmica (em maior número).

Minha intenção é a de registrar a maior parte dos cemitérios pelo Brasil, ao menos todos os estados e suas respectivas capitais, para fazer um estudo a fundo e montar um livro documentando as histórias e as principais diferenças entre os estados. Muita coisa difere conforme a religião. Os abandonados também me chamam a atenção, porém o acesso é mais difícil e a companhia nesse caso é fundamental. O que é difícil, porque nem todos veem o cemitério como coisa boa”. (fim do relato)