É possível salvar Charlie Gard?

Camila Appel

“Pode-se imaginar o enorme sofrimento dos pais de Charlie. Sofrimento que possivelmente tem bases em um dos assuntos mais complexos para todas as culturas do mundo: a morte e o morrer. O medo do desconhecido, a sensação de impotência e a esperança de um milagre sustentam a religiosidade e a ciência nesse assunto. A religiosidade, porque ela nutre a esperança de que há uma força maior que pode mudar o curso natural da doença. A ciência, porque os rápidos avanços tecnológicos em diversas áreas da medicina trazem a esperança de que surgirá o tratamento para a doença que acomete um ente querido. Quando falamos de morte, a ciência e a religião têm um mesmo objetivo: enfrentá-la”.

A médica pediatra Carolina Affonseca e a  advogada da área da saúde Luciana Dadalto,  escreveram um artigo para o blog “Morte sem Tabu” sobre o caso de Charlie Gard – um bebê britânico de 11 meses que apresenta uma doença incurável e sobrevive com aparelhos respiratórios. A Justiça Britânica emitiu uma autorização para que os aparelhos respiratórios do bebê fossem desligados, contra a vontade de seus pais.  Leia o artigo abaixo, na íntegra:

“E a morte bate às portas do judiciário….

O caso do bebê inglês Charlie Gard, de apenas 11 meses, tem suscitado debates acalorados nas últimas semanas, que se intensificaram no último dia 27, após a Corte Européia de Direitos Humanos determinar, contra a vontade dos pais, o desligamento dos aparelhos que o mantém vivo, com base no princípio jurídico do melhor interesse da criança.

Charlie é portador de uma doença mitocondrial, alteração adquirida geneticamente que determina disfunções expressivas do funcionamento de seus órgãos e tecidos e impacta de forma contundente na sua sobrevida.

As mitocondriopatias estão presentes em cerca de 1 a cada 5000 nascidos vivos. São um grupo heterogêneo de disfunções que ocorrem em múltiplos órgãos e que são causadas pelo mal funcionamento da mitocôndria. A mitocôndria é uma organela intracelular cuja principal função é a produção e fornecimento de energia para que a célula execute suas funções. Do ponto de vista molecular, o mal funcionamento da mitocôndria pode ser secundário a uma alteração no DNA da célula ou, ainda, a uma alteração de seu próprio DNA (mt-DNA). Clinicamente, pode afetar um órgão específico ou acometer vários órgãos de forma grave e progressiva. Os principais órgãos acometidos são o cérebro, fígado, músculo e rins.

Charlie Gard é acometido por um dos subtipos mais graves da doença relacionado à mutação do gene denominado RRM2B. Há, no mundo, cerca de 16 pessoas identificadas com essa mutação e, os indivíduos afetados desenvolvem, durante os primeiros 6 meses de vida, uma fraqueza muscular intensa associada com insuficiência respiratória, microcefalia, atraso no desenvolvimento neurológico, crises convulsivas de difícil controle, surdez e mal funcionamento renal. A doença progride rapidamente provocando a morte após poucos meses.

A grande diversidade de sintomas, o envolvimento de diferentes órgãos e os diversos modos de progressão da doença representam um desafio para o desenvolvimento de intervenções terapêuticas efetivas. Apesar de estudos apontarem a terapia de alteração genética e o tratamento com células tronco como opções promissoras para o tratamento das mitocondriopatias, até o momento, não existe qualquer intervenção que proporcione a cura da doença. A abordagem do paciente deve ser voltada para o cuidado paliativo com adequado controle dos sintomas e medidas de suporte fornecidos por uma equipe multiprofissional, uma vez que o paciente apresenta lesões cerebrais irreversíveis e grande probabilidade de estar sofrendo procedimentos que provoquem intensa dor e sofrimento.

O tratamento experimental a que os pais de Charlie Gard tentaram submeter o filho trata-se da suplementação de desoxiribonucleosídeos, até o momento, realizado apenas em modelos animais (ratos) em que foi observada uma melhora bioquímica e/ou clínica no animal. Entretanto, a alteração genética apresentada pelo rato no estudo era diferente daquela apresentada por Charlie. O próprio chefe da pesquisa admitiu que nenhuma das pessoas que receberam o tratamento experimental apresentavam uma condição clínica tão grave quanto a de Charlie e, portanto, administrar o tratamento a ele “seria como entrar em um território completamente inexplorado”.

Pode-se imaginar o enorme sofrimento dos pais de Charlie. Sofrimento que possivelmente tem bases em um dos assuntos mais complexos para todas as culturas do mundo: a morte e o morrer. O medo do desconhecido, a sensação de impotência e a esperança de um milagre sustentam a religiosidade e a ciência nesse assunto. A religiosidade, porque ela nutre a esperança de que há uma força maior que pode mudar o curso natural da doença. A ciência, porque os rápidos avanços tecnológicos em diversas áreas da medicina trazem a esperança de que surgirá o tratamento para a doença que acomete um ente querido. Quando falamos de morte, a  ciência e a religião têm um mesmo objetivo: enfrentá-la.

A atitude desesperada dos pais em buscar uma autorização do Poder Judiciário para, com os próprios recursos financeiros, transferir o filho para os EUA e submetê-lo a um tratamento experimental nos aproxima de um fenômeno contemporâneo: a aparente supremacia do Poder Judiciário. Quando os cidadãos se sentem desamparados pelo sistema jurídico vigente, buscam no Poder Judiciário a solução para suas questões. Judicializam afeto, amor, raiva, desespero. Depositam no Poder Judiciário a esperança do milagre, esquecendo que um juiz nunca terá o poder de decidir o que é melhor para as partes porque apenas os atores do conflito entendem todos os sentimentos por detrás da questão jurídica.

Melhor seria que a equipe de saúde que cuida de Charlie tivesse utilizado, com êxito, técnicas de comunicação, de diálogo e, até mesmo, de mediação para explicar o caso aos pais e ajudar-los a passar pelo luto antecipatório diante do trágico diagnóstico.

Muito se argumenta acerca do absurdo da intervenção estatal nesse caso. Mas é preciso entender que quem procurou a proteção do Estado foram os pais, ao buscarem, no Poder Judiciário, chancela para a tentativa de submeter o filho a um tratamento experimental, sem qualquer evidência científica de cura.

Fala-se ainda em um desrespeito à autonomia privada, partindo da falácia de que cabe aos pais decidirem sobre os cuidados médicos a serem administrados aos filhos. A vida, a saúde e o corpo são direitos fundamentais e personalíssimos. Portanto, a decisão sobre eles não deve ser transferida a terceiros, nem mesmo aos pais. Cabe aos detentores do conhecimento técnico, no caso, a equipe de saúde, fazendo jus aos princípios bioéticos da beneficência e não maleficência, indicar os melhores cuidados para a criança, não abandonando-a, nem a seus pais. Amparando-os para que Charlie tenha um fim de vida digno, uma vez que, infelizmente, não há chances de cura. E, repita-se, o tratamento a que os pais queriam submeter Charlie nunca foi testado em pessoas com condição clínica semelhante. É justo com Charlie submetê-lo a esse tratamento? Será que os pais estão pensando no filho, ou estão tão desamparados e desesperados diante da impotência desse terrível diagnóstico que querem ter, ao menos, a sensação de que fizeram todo o possível?

Não concordamos com a posição da equipe médica em proibir que os pais levassem o filho para casa. A possibilidade de ser transferido para casa e ficar sob os cuidados dos pais provavelmente contribuiria para intensificar o vinculo afetivo entre os pais e a criança e a percepção real da intensidade do sofrimento associada a busca incessante pela sobrevivência que, nesse caso, distancia-se nitidamente do nosso conceito de vida. Poderia contribuir para o entendimento de todo o processo e com a decisão em busca do melhor interesse da criança. Por fim, a nosso ver, faltou alguém dizer a esses pais: vocês fizeram tudo o que estava ao alcance de vocês, mas, infelizmente, é impossível salvar Charlie”.

As autoras desse artigo são:

Carolina Affonseca

Mestre em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Médica pediatra responsável pelo programa Cuidar (cuidado paliativo e atenção domiciliar) do Hospital Infantil João Paulo II.

Luciana Dadalto

Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUCMinas. Sócia da Dadalto & Carvalho Advocacia em Consultoria em Saúde.

Contato: luciana@dadaltoecarvalho.com.br