Refugiados de cemitérios
“Vida após a morte”: projeto fotográfico retrata moradores de cemitérios
Fernando Cardamone registrou, por um ano, a vida dentro de cemitérios. Foram mais de 10 na grande São Paulo e cerca de 150 pessoas. Ele escolheu 20 para compor seu projeto fotográfico, permeado por escritos inspirados nessas pessoas que, na linguagem jornalística, ganham o apelido de “personagens”. Eu já estranhei o uso dessa palavra, mas comecei a entender que as pessoas entrevistadas, ou retratadas, deixam de ser pessoas e passam a ser personagens quando descritas por um outro. É inevitável. Construímos uma imagem a partir de nossa própria vivência e valores. Para reforça-los ou criar uma antítese de nós mesmos. É um reflexo ficcional. Fernando passa a ser um personagem meu, que me permitiu absorver os personagens dele. Ninguém existe, de fato.
Eu fiquei muito tocada com seu livro, tão bonito quanto cruel, que nunca chegou a ser impresso por falta de interesse das editoras.
Logo na abertura, Fernando afirma deixar de lado qualquer juízo de valor, contexto político, sociocultural ou religioso. Ele deseja trazer “um resgate pessoal apenas do relacionamento humano em seus níveis mais profundos”.
Esse tipo de relacionamento pressupõe uma troca. Em certa ocasião, um morador pediu para que ele contasse sua história primeiro. “Senta aí playboy, conta aí a sua vida”. Justo.
Fernando é casado e tem três filhos. Me deu a entender que passou por diversas fases complicadas na vida. Uma delas pode ter sido a morte do pai, a quem dedica o livro com palavras sofridas. Sua empatia com a dor alheia parece vir de uma experiência pessoal. Não apenas do luto, mas também da depressão. Aquela chamada pelo jornalista Andrew Solomon de “O Demônio do Meio-Dia”, que ataca em plena luz do dia.
Publicitário de formação, Fernando já ganhou prêmios importantes como o Marketing Best e liderou campanhas de destaque como “Você no Show do Milhão” ,“Senna In Concert” e “Senna Experience”.
Há 5 anos, decidiu ressignificar sua profissão, processo que ele definiu como: “optar pelo caminho do amor e não mais pelo da dor, me tornando uno com a arte e com esta imensa responsabilidade de tentar tocar verdadeiramente o coração de outras pessoas sendo apenas um instrumento criativo”.
“Vida após a morte” traz no título o aprendizado de Fernando depois de conviver um ano com a morte concreta. Fiquei com a impressão de que essa experiência curou uma cicatriz antiga. Ele fala sobre seu projeto com a paixão de um agradecimento. Talvez seja a consciência de que ele estava ali para aprender sobre a vida e sua câmera, sua habilidade estética, servia como uma justificativa para isso.
Fernando não se acanha em admitir ter sentido medo. Medos, no plural. Medo de violência, medo de pegar doenças, medo de perder seu equipamento. Ele diz entender que a palavra “necessidade” pode ser um conceito relativo. “É uma opção, também, estar na rua. A necessidade de cada um é uma coisa diferente. Não dá para dizer que todo mundo precisa da mesma coisa”. Os moradores de cemitérios sobrevivem de doações, das comidas de fim de feira e restos de “bandejões”.
Fernando foi parar ali por acaso. Ficou um ano convivendo com moradores de rua, quando se deparou com o cemitério da Consolação. Decidiu entrar e descobriu, ali, vida.
Fernando me permitiu divulgar algumas dessas fotos. Tomo a liberdade de contar um pouco sobre elas.
Foto 1:“Anjo” aparece com uma mão estendida na frente da câmera. Ele não está pedindo para não ser fotografado. Ele está imaginando uma limpeza espiritual com as mãos. As linhas marcadas por sujeira, dedos firmes dispostos a arrancar o “demônio” dos outros. Em seu delírio, “Anjo” prega que o mundo será invadido e um grupo de pessoas, preparadas por ele, poderá se salvar. Por uma hora, limpou Fernando dessas energias que ele considera malignas. Fernando não conta a história desse homem com julgamento. Há respeito e tolerância. Do meu lado, fica uma pontinha de dor, por perceber que esse homem deveria estar em um intenso tratamento psiquiátrico e não jogado em cima de um túmulo fechado, confabulando histórias cruéis que devem alimentar sua dor.
Foto 2: Claudio é marinheiro mercante chileno. Fernando usa uma palavra para significa-lo: “saudades”. Claudio afirma ter família no Chile e alimenta a esperança de, um dia, juntar dinheiro para voltar a vê-los. “Ele chorava ao ser fotografado quando falava da saudade que sentia da família em Santiago do Chile. Viajou pelo mundo inteiro, Bélgica, França, Portugal, Espanha, até desembarcar no Brasil”, comenta Fernando. Hoje, é morador de um cemitério em São Paulo. Nessa foto, ele aparece com um olhar ingênuo, na mesma posição da estátua de uma criança. Um das várias simbioses presentes no livro.
Foto 3: O homem dormindo no banco mais parece uma estátua de bronze. O par de sapatos no chão indica que ele é “de verdade”. Ele é um coveiro do cemitério. E ali, parece estar em aconchego. O coveiro é uma figura tão presente quanto as estátuas que decoram os mausoléus de cemitérios antigos. Muitos coveiros, acabam realmente morando ali.
Foto 4: mais uma intrigante simbiose entre o ambiente e morador do cemitério. “José” posa ao lado da estátua do São José. A barba pontiaguda igual a do Santo. “Ele viveu tantos anos ao lado da imagem de São José, que ao passar do tempo, foi assumindo a mesma semelhança”, diz Fernando. É um santo muito presente na vida do fotógrafo, aprofundando a simbologia da relação dos dois.
Foto 5: Essa é Nice. Mora no cemitério há 16 anos. Aos 9, levou 6 facadas na barriga e foi estuprada pelo pai. Infelizmente, um caso nada incomum na realidade do nosso país.
Foto 6: “Sexy lady”: a prostituta. Ela leva fregueses para um capelinha. Fernando escreve sobre ela: “sexo também é vida. Dentro dos cemitérios, o sexo não precisa necessariamente ser algo proibido, “coisa do pecado”. Pelo contrário, para Sexy Lady, é puro prazer e diversão”.
Fernando ainda observou os “moradores temporários do cemitério”, pessoas enlutadas, que passam por ali para prestar condolescências. Ele define o luto da seguinte forma:
“Luto:
Em qualquer língua, em qualquer época, em qualquer história, dor é dor. A dor é uma violência para a alma e nos tira do patamar de compreensão que tínhamos até então para nos lançar ao estado do limbo. No qual não se pertence a mundo nenhum, pois a conexão com a realidade fica frágil. Cenas como esta eram comuns. Chamo essas tristes pessoas e “moradores temporários de cemitério”.
Outros personagens ainda chamam atenção: um homem que perdeu os pais muito cedo e adotou um casal morto, do cemitério, como pais afetivos. Ele posa ao lado das fotos grudadas no túmulo. Ainda há um cigano, que o ensinou a entrar e sair de cemitérios: “você deve sair de costas, deve pedir permissão para entrar. As almas estão flutuando ali e fazem um abre alas para você passar”. Um jardineiro que pavimentou as ruas do cemitério e um “Rafael” que disse a Fernando: “Acabou, esse é seu ponto final”. E, assim, Fernando guardou a câmera e se foi.
Contato do Fernando: fcardamone1@me.com