Sabe Quem Morreu!?
O escritor Rômulo Zanotto tem uma inspiração forte para escrever sobre a morte. Ele é marcado pela morte prematura do pai, em decorrência de uma cirrose hepática causada por alcoolismo. Rômulo tinha 12 anos. Recentemente, ele exumou os ossos do pai e se deparou com uma caveira familiar. A cena, que o remete a Hamlet, motivou um romance, ainda inédito.
Ele enviou o texto “Sabe Quem Morreu!?” para publicação no blog. Curitibano, trabalha como freelancer em jornalismo e redação de publicidade. Esse texto surgiu do convite de Gustavo Ranieri, então editor da Revista da Livraria Cultura. A edição passou por uma reformulação e seu texto acabou não sendo publicado. Na época, ele me entrevistou e eu já me surpreendi, ali, com um tema magnífico: abordar artistas que falam da morte em primeira pessoa.
O título desse texto foi inspirado na entrevista de Pedro Bial com Gilberto Gil, no programa “Conversa com Bial”. Bial comenta: “”Sabe quem morreu’ é a notícia quintessencial, que pára qualquer conversa, silencia qualquer evento social.”
Assim como na cena em que Hamlet conversa com a caveira de seu bobo da corte, Rômulo levanta profundas questões existenciais.
Boa leitura.
Sabe Quem Morreu?!
Por Rômulo Zanotto
Sabe quem morreu?! Essa é a pergunta que para tudo: uma roda de conversa, um grupo de WhatsApp, o plantão de notícias e até você, lendo esse texto. Mas e quando quem morre sou eu: Espelho, espelho meu, quem pergunta quem morreu!?
A morte atravessa séculos para nos encontrar. Num infarto do miocárdio, num acidente de trânsito, num quarto de hospital, numa poça de vômito no banheiro de casa ou num parque de diversões repleto de gente. É certo que ela virá. Nascemos sentenciados de morte. No entanto, a escondemos debaixo do tapete tanto quanto possível.
No século XX, a morte passou para o ambiente esterilizado dos hospitais, escondida e calada. Até então, morria-se em casa, via-se, velava-se em cima da mesa. Hoje, apesar de o obituário da Folha vir editado no caderno Cotidiano, como um recado eloquente a nos lembrar muito bem o lugar que a morte ocupa no dia a dia, não se convive com ela. A morte é uma espécie de não acontecimento. Morre-se longe dos olhos.
O sociólogo alemão Norbert Elias chama este isolamento e segregação dos velhos e moribundos de “bastidores da sociedade”. Como se a morte devesse ser ocultada e imediatamente esquecida. O que os olhos não veem o coração não sente?
“Lava-te do rosto o assassinato, meu príncipe, e lança um lânguido olhar à nova Dinamarca”, nos parece dizer a sociedade sobre a morte e sobre o luto, com a mesma pressa de Gertrudes a Hamlet: antes que se gastem os sapatos com que seguiu o enterro de seu pai.
A vida é só o tempo de se contar um
A despeito do tabu na vida, a morte sempre foi um prato cheio para a literatura e para as artes em geral. Seja no campo das artes visuais, do cinema, do teatro, da dança, da música ou da literatura, a morte inspirou grandes obras, em todos os tempos. “A morte é a grande musa das artes e da filosofia”, entra na conversa Camila Appel, redatora do programa Conversa com o Bial e blogueira da Folha de São Paulo, com o blog Morte sem Tabu. “Toda pessoa que se proponha a refletir sobre a vida, vai refletir sobre a finitude.” Ser ou não ser: eis a questão. “Muitos artistas se alimentam deste conflito, que é o maior que alguém em profunda reflexão pode ter: como assim, eu vou morrer?”, completa ela.
Karl Ove Knausgård e Paul Auster escreveram sobre a morte do pai; o diretor e roteirista norte-americano Allan Ball fez uma série imprescindível sobre o viver e o morrer, Six Feet Under; Amy Winehouse fez um álbum todo sobre o luto e morreu depois; Jean-Michel Basquiat, o jovem artista pop dos anos 80, pintou Cavalgando com a morte e “caiu do cavalo” aos 27; Tólstoi se tornou uma espécie de “especialista em morte na literatura” de tanto descrever pormenorizadamente o trespasse de seus heróis; e Shakespeare escreveu uma tragédia sobre um coadjuvante, Horácio, que mantém seu sopro de vida neste mundo apenas para contar a saga do seu primo e protagonista, Hamlet. Maldito fardo!
Aqui, no Brasil, Clarice escreveu sobre a hora da morte, que é a hora da estrela; Gerald Thomas dirigiu um eloquente espetáculo sobre a morte da mãe, Rainha Mentira; Brás Cubas escreveu suas memórias póstumas através de Machado; o artista plástico Flávio de Carvalho retratou sua mãe morrendo numa Série Trágica de nove desenhos em tamanho natural; Gilberto Gil, Caetano, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e inúmeros outros sambistas e compositores têm um vasto repertório sobre a morte; e Glauber Rocha foi o primeiro a encarar a morte sem desvios no curta-documentário Di Cavalcanti Di Glauber, quando foi ao funeral do artista com uma câmera na mão e uma ideia bizarra na cabeça: filmar o defunto em close, enquanto a família do morto pedia aos berros que ele fosse embora.
Morrendo em primeira pessoa
Mas se as artes sempre tiveram a morte como tema, o morrer artístico também vem se tornando uma narrativa cada vez mais confessional, de não ficção, escrita na primeira pessoa do singular. Nos últimos anos, David Bowie e Leonard Cohen, “ao saber que iam morrer” – digo, na presença iminente da morte; digo, ao saber do diagnóstico incurável de suas doenças – fizeram um álbum de despedida; Oliver Sacks, o neurologista e escritor anglo-americano, ao saber de sua metástase sem volta publicou uma série de belíssimos textos de despedida, tecendo odes à vida; os textos de Sacks, por sua vez, inspiram-se na autobiografia de poucas páginas do filósofo oitocentista David Hume, escrita quando este também soube da sua morte anunciada por uma doença incurável.
Ao escrever seus textos e “compartilhar” a própria morte, como se perguntasse ao leitor “sabe quem vai morrer!?”, no futuro, e a resposta entusiástica fosse “eu!” – com exclamação! -, Sacks nos convida a partilhar com ele sua experiência do fim. O exemplo mostra como a morte também começa a ficar desavergonhada e sair do armário, como parece acontecer com tudo neste início de século. E em tons especialmente confessionais, bem aos moldes destes novos tempos.
Assim é que, se boa parte das pessoas, senão a maioria, ainda prefere morrer nos bastidores, longe dos olhos dos outros, uma pequena vanguarda de pioneiros já escolhe vir ao centro do palco para morrer, oferecendo seu “repertório de morte” como arte. Tal qual a atriz Maria Alice Vergueiro, vanguardista até à morte.
Quando soube que estava com Parkinson, depois de ter um AVC e perder a irmã, Maria Alice quis “ensaiar a própria morte”, lidar com ela antes que ela chegasse, para não ser pega de surpresa. Dizia para os amigos que gostaria de morrer em cena. “Vai ensaiando que você consegue”, respondiam. Desde então, Maria Alice ensaia e encena a própria morte no espetáculo Why the Horse?. Com um pouco de sorte, pode ser que aconteça de morrer em cena. Senão, estará sempre de volta no dia seguinte. Afinal, tudo é teatro, somente teatro, nada mais que teatro. Até que não seja.
Falando em bastidores, outro que preferiu encarar a própria finitude ao invés de se trancar no camarim com um bocado de gim foi Chico Buarque. Mesmo querendo viver para sempre, o compositor sabe que, às vezes, chega a roda-vida e carrega o destino pra lá. Pensando, então, em “quando seu tempo passar”, escreveu para a atual amada – a última? – uma cantiga, Tua Cantiga, para que ela lembre dele quando ele – oh, metade afastada de si! – não estiver mais aqui.
Cartas para além dos muros
Apesar de “a expressão da morte” estar se tornando cada vez mais presente nos dias de hoje – não só nas artes, mas também nas redes sociais -, Camila Appel volta à conversa para lembrar que a despedida por meio da arte sempre existiu. O que era recente era o tabu sobre o assunto, não a sua retratação. “Na Grécia se fazia máscara mortuária com o rosto dos mortos logo depois de sua morte e pintores faziam quadros das pessoas antes de elas morrerem; na China existem os Poemas antes da morte, um gênero literário bastante comum legado por oficiais que estão a caminho da pena de morte, por exemplo.”
O que acontece agora é que com a tendência à narrativa íntima e confessional proposta pelas redes sociais, estas expressões artísticas ganham visibilidade e naturalidade. Afinal, se a cultura de massa do século XX colocou todos os tabus no armário e a morte nos bastidores, a cultura da convergência do século XXI tem exibido o making-of desses bastidores.
Mas, como acontece tantas vezes, a arte antecipou a interpretação da sua época. Entre agosto e setembro de 1994, vinte anos antes de Sacks, no Brasil, Caio Fernando Abreu publicou uma série histórica e antológica de crônicas em sua coluna quinzenal no jornal O Estado de São Paulo. Vivendo enfermo em Porto Alegre, limitado pelos muros do Hospital Menino Deus, o escritor contava o inefável: que tinha AIDS e morreria.
Em três cartas para além dos muros – como ficaram conhecidas as crônicas -, Caio se esforça para dizer. Na primeira, dá pistas – “alguma coisa aconteceu comigo” -, despista – “alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela” -, pede compreensão – “por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer” -, cumplicidade – “escuta bem, vou repetir no seu ouvido” – e promete retribuir a confiança: quando souber finalmente o que foi, será claro.
Na segunda, já a caminho do céu ou do inferno, um tanto quanto perdido entre prosa e poesia, descreve sobre anjos e demônios. Na terceira, Caio finalmente escreve o inaudito, “agora assim, mais claramente”: estava com AIDS, morreria.
A partir daí, tomado por uma certeza inconsciente de que o melhor que podia fazer era continuar escrevendo – “a minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento” -, e também porque, apesar da morte, “a vida grita e a luta continua” – a derradeira frase da última carta -, Caio escreveu. Escreveu, escreveu, escreveu.
Pelos próximos dois anos e meio de vida que teria pela frente, escreveria. Sobre seu cotidiano de moribundo, sobre suas transformações na hora da morte, sobre suas mudanças de valores e prioridades. Sua resignação pelos martírios de Frida Kahlo, sobre a morte dos girassóis, e sobre a cara da morte, em Mais uma carta para além dos muros. Caio se entregou e se lambuzou da morte, como da vida.
“Em quem está com Aids o que mais dói é a morte antecipada que os outros nos conferem”, escreveu. Talvez por isso Caio conseguisse contar com tanta força o que visse, como a visão do próprio rosto refletido nas pupilas dilatadas da morte: porque já estava lá, sem que ainda tivesse deixado de estar aqui. Pelo lugar privilegiado em que se encontrava.
Viva la Vida
Após anos de experiência acompanhando a morte de pacientes, especialistas em cuidados paliativos constatam que as pessoas, antes da morte, sentem uma “redenção ao amor”. Talvez por isso Frida Kahlo, que passou a vida inteira pintando suas dores – dores de Frida Kahlo! – tenha mergulhado o pincel na tinta uma última vez dois dias antes da morte para escrever “viva la vida” em uma natureza morta que havia pintado dois anos antes.
Fazer o quê, se o infinitivo do verbo viver é também o gerúndio do verbo morrer? Um dia nascemos, um dia morremos, e isso é tudo. “Se tiver de ser agora, não está por vir. Se estiver por vir, não será agora. E se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo!”
A vida está morta. Viva la vida!
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