Amigas desmitificam câncer metastático no Instagram

 “Dizem que o câncer metastático não tem cura, “só” tratamento paliativo. Então, o jeito é paliar e VIVER INTENSAMENTE os 70 anos que nos resta”.

Essa é apresentação do Instagram “paliAtivas” de Renata e Ana. Fotos bem humoradas, cheias de reflexões significativas e, principalmente, de vida. Impossível não se apaixonar por elas.

Mandei uma mensagem:

–       Olá! Vcs topam uma entrevista para meu blog? Chama Morte sem Tabu, na Folha de S.Paulo. Vou mandar o link.

–       Olá Camila. Claaaaaro que a gente topa esse upgrade na vida. Só nos chamam para dar entrevista em revista de farmácia ultimamente. Hahaha

–       Posso visitá-las?

–       A Re tá internada no Oswaldo Cruz. Vou dormir com ela no domingo.

–       Até que horas posso ir?

–       Não tem limite de horário. E a gente tem outros planos que não incluem dormir kkkk. Então, pode vir a qualquer hora.

Eu fui. Logo descobri o que eram esses “outros planos”. Já conto. Antes, vamos falar sobre elas. Quem são as paliAtivas?

Ana Michelle Soares tem 35 anos, é jornalista. Diagnosticada com câncer de mama metastático (quando o câncer atinge outros órgãos), lida com o estigma de uma doença sem cura. Ela é linda. De saia curta e sorrisão, vai para a balada rebolar as preocupações para bem longe e se energizar de alegria e, quem sabe, viver uma história de amor…

“Teve um cara que começou a se envolver e foi me investigar, porque eu sempre desviava muito nas respostas, quando ele perguntava o que fiz na semana, por exemplo. Para que eu vou contar: tantas seções de quimioterapia? As pessoas não estão preparadas para ouvir esse tipo de coisa. Porque é um olhar de dó, isso é um saco”. Ana acabou contando sobre seu diagnóstico e o rapaz sumiu. “Eu gosto de fazer planos, mas nao quero condicionar minha felicidade. Eu vivi um casamento muito complicado, eu não tenho tempo para desperdiçar. Queria que alguém olhasse para mim independente do meu diagnóstico. Eu quis tanto viver uma história de amor, e de repente eu já estou vivendo. E não é amor de homem e mulher, é a história com uma amiga.. com a Renata”.

Em uma página do Facebook “Meninas de Peito”, sobre câncer de mama,  Ana conheceu Renata.

Renata Lujan tem 38 anos, é professora de alfabetização em escolas públicas. Muito dedicada ao trabalho, sentiu um volume na mama em outubro, mas só foi fazer uma ressonância em Janeiro, durante as férias. Recebeu o diagnóstico de câncer de mama no dia em que foi buscar seu vestido de noiva. Casou careca. Hoje, Renata está internada no hospital. Não há previsão de alta mas Ana preparou diversos planos de fuga. Um já foi realizado, vocês vão ver.

Elas têm uma sintonia inquestionável. Uma complementa a outra, uma questiona a outra, se emocionam, não perdem a oportunidade de aproveitar o humor para um comentário ácido.

Ana gosta de compartilhar o amor de uma amizade que tanto a surpreendeu.

“Amor é amor. Não precisa de burocracia, nem de laços de sangue, nem de papel passado ou amassado. Não tem a ver com hormônios, não precisa saber o sexo, não faz exigências, não cabe na geografia.Também não requer explicação, nem negociação, não precisa de fala, nem juramento, nem declaração.Amor é sentir. E eu sinto muito… dizem que em excesso. Dizem que me deixou doente.Mas pra mim, não sentir deixa tudo vazio e silencioso. E sentir medido também não sei. Quero não!Me deixem aqui com meu coração derramado e distribuído. Prefiro morrer de amor do que viver de vazios calculados.  Te amo minha irmã, daquele jeito visceral que vc sempre diz … Além de enquanto eu respirar.  Agora chega de gelatina do Alemão. Temos duas bucketlists enormes pra realizar…”.

Familiares

A mãe de Ana é sua cuidadora. Ela admite que ser cuidadora de uma pessoa em tratamento para o câncer não é trivial. “Minha mãe nunca chorou na minha frente. Quem está fazendo essa função, está muito próximo. É um sentimento profundo, que eles não querem externar porque querem passar essa força”. Ana tem uma coluna sobre metástase no Oncoguia, uma rede de apoio a pacientes com câncer, para refletir sobre diversos assuntos, como esse.

Renata recebe os familiares no hospital com frequência. Quando eu cheguei, umas 15 pessoas tinham acabado de sair a pedido de Renata, para me receber. Entre essas 15, seu marido e sua avó de 91 anos que veio de Rio Claro para vê-la. “Quando eles estão nesse ambiente, a gente acaba discutindo sobre a doença, a morte. E não é uma coisa triste ou pesada. A gente ta comendo, dando risada, a gente se emociona, a gente reflete sobre viver, sobre morrer. Não é uma coisa que estou construindo sozinha. Estamos construindo juntos e isso e dá muita tranquilidade. O hospital acolheu tão bem minha família, que foi todo mundo embora do meu quarto em paz”.

Dosar a mão

 “Assim que a gente recebe o diagnóstico, a gente vira paciente. Acabamos perdendo a capacidade de tomar decisões. As decisões ficam sempre na mão dos outros. É o médico que decide o tratamento, a família decide onde você vai morar, o que vai comer. O paciente fica nessa espera, perde empoderamento e qualidade de vida. A pessoa que não é capaz de escolher aquilo que gosta, aquilo que gosta de fazer, já morreu”.– Ana.

“Dosar a mão” foi a expressão que elas usaram para se referir a um processo muito complexo, mas que pode ser resumido de forma simples. “É entender o que você tem, para você poder fazer escolhas. Eu vejo muito médico que só fica socando quimio e não está interessando se você está feliz. É necessário eu fazer tudo isso de quimio? E se eu tentasse outra droga que não tivesse tanto efeito colateral?”, questiona Ana.

Renata rebate com uma pergunta para a amiga:

“Se houvesse uma mudança de postura geral dos pacientes, você acha que mudaria a atitude médica?”

Ana:  Sim, porque eu não acho que meu médico discuta tudo isso com todas as pacientes. Não são todos que tem esse comportamento. Eles olham para o médico com medo. Tem medo de falar, de contrapor, de questionar. Tem médico que não pesa nada. Ele pensa: ela vai morrer mesmo, então faz essa quimio fraquinha e pronto.

No ano passado, Renata pediu para o médico contar onde era suas lesões da metástase. O médico se recusou. Ela chegou a levar um esqueleto para a consulta, pedindo que ele marcasse onde eram as lesões. Ele se recusou. Ela foi para Bonito (Mato Grosso do Sul) e saltou de uma cachoeira de 3 metros de altura. Na volta, o médico entrou em choque. “Como você salta de uma cachoeira dessas, você tem metástase no quadril !” Renata nem sabia que tinha metástase no quadril. Trocou de médico. “Na minha visão, eu tenho um lado doente, mas eu também tenho um lado saudável. O médico generalizava tudo, como se tudo tivesse doente”.

A nova médica chamou Renata: “É hora de ponderar os tratamentos. Você tem 11 lesões no cérebro, já fez 10 seções de radioterapia,  9 protocolos quimioterápicos, e não foi possível barrar a doença”.

Renata entendeu que o importante, nesse momento, é pensar nas escolhas que ela vai fazer, ponderar custos e benefícios, pensar se determinado tratamento vai fazer mais mal do que bem, avaliar os efeitos colaterais debilitantes, avaliar qualidade de vida. “Eu quero morrer sem dor, com sintomas controlados, e talvez seja isso que traga mais tempo de vida”.

É uma realidade. Os médicos não discutem os tratamentos com os pacientes, impossibilitando que eles participem das decisões. Renata está certa ao questionar se esse problema não parte mais do paciente do que do médico. O paciente pode não abrir uma oportunidade para esse tipo de conversa.

Das decisões a serem tomadas, a mais animadora é essa: optar por não fazer quimio durante uma semana e ir viajar. Foi exatamente o que essas duas fizeram. Uma vez, foram para Pedra Grande, em Atibaia. A chuva sem tréguas teria estragado o passeio de qualquer um, menos delas. “Normalmente, ficaríamos frustradas, por causa do tempo, e adoramos. Mesmo quando dá errado, dá certo”. Em outra viagem, mais ousada, ficaram 15 dias sem quimioterapia. Foram de mochilão para a Europa, com direito a audiência no Vaticano. “To indo para a Europa e volto a ter câncer só na volta”, disse Renata, e partiu. Foram para Roma, Veneza, Grécia, Croácia e Turquia. Tudo “financiado pelo “Oncocard”.

Oncocard

Eu estranhei: oncocard? Nunca ouvi falar disso. Qual é a bandeira?

Oncocard é uma expressão criada por Marina Maior, uma médica, ex-paciente de câncer, amiga das meninas. Ana batizou o “oncocard sem limites” e a expressão “oncocelebridade”, com todo seu humor. O oncocard é uma forma de dizer que os pedidos de quem está diagnosticado com uma doença sem cura, são atendidos. “As pessoas querem ajudar quem está morrendo”, comenta Ana. Renata brinca: “eu pedia uma peruca linda da rua Augusta, e a peruca se materializava. Até brigadeiro de laranja dava para aparecer. Quando a metástase hepática se confirmou, aí veio o oncocard sem limites”.

Para o mochilão para a Europa, no ano passado, tiveram a ajuda financeira de muitas pessoas, até do banco que tinha acabado de fazer um seguro para Renata. Ana é jornalista e escreveu para o Vaticano: “somos pacientes com câncer metastático, queremos ver o Papa”. Conseguiram uma audiência pública. Ficaram lá no altar, sentadas no espaço reservado para convidados.

Agora, Renata está mais debilitada. Para sair do hospital, é necessário um esforço bem maior. Ana não se intimida e eu finalmente descubro porque aquelas meninas teriam outros planos, que não incluíssem dormir, já tarde de uma noite fria de um domingo.

Elas iriam fazer a bucketlist da Renata. Uma lista de seus desejos antes de morrer. “Meu sonho maior é tirar a Renata daqui em um plano de fuga incrível que eu to bolando”, confidencia Ana.

Bucketlist

Essa é a bucketlist da Renata, publicada por Ana no Instagram das duas.

# Ir pra Aparecida do Norte queimar um fígado (a vela só pra deixar claro)

# Foto com o Rafa nos campos de Lavanda em Cunha (SP)
# Voltar com AnaMi na Pedra Grande em Atibaia (vamo miga ❤️)
# Estar no aniversário de 1 ano da Lorena
# Ir no Show do Chitãozinho e Xororó com a família toda reunida
# Natal na casa da Su
# Ouvir “me desculpe” de uma amiga que me magoou profundamente
# Menu degustação do DOM (desculpa migas, vamos comer em 10x sem juros)
# Baião de 2 do Esquina Mocotó (pq qdo nós fomos pedi outra coisa e depois fiquei desejando a comida da Ana)
# Meu pai e Nilza se acertarem
✔️ Strogonoff da Elaine
# Ir pra Ubatuba com o Rafa
# Pré – extrema unção com o Padre Fábio de Mello  que é bonito e bem humorado (pq Deus que me perdoe, mas padre mal humorado é pra desejar ir logo para o purgatório)
✔️ Foto com Dani e Elaine
# Ir no Japonês com Vanessa e Marcelo
# Final de semana com minha mãe, a Grazi e o Rafa na praia
# Pizza da Rose
# Ir no balé da Ana Laura
# Ir com a Dona Felícia para Baurú
# Cantar Faroeste Caboclo num show
# Ir numa cachoeira quentinha com água transparente (QUERO MUITOOOO)
# Visitar os meus alunos
# Andar de balão com as @’s e gritar Chupaaaaaaaaaa lá do alto
# Ir ou ver a AnaMi rindo disso tudo em Paris 🗼
# Ficar chapadaaaaaa kkkkkk (fuma aqui toma um chá)
# Tatuar SoulSister
# Interromper uma discussão com piada
# Revelar as melhores fotos
# A partir de agora, sempre que a Grazi viajar, levar algo meu bem sem sentido, tipo uma meia kkkk
# Uma tarde de foto e piadas com Pichineles
# Ver um pôr do sol do caralho!

Renata gostaria de estar presente no aniversário de um ano da Lorena, sua afilhada. Hoje, ela tem 8 meses. “De todas pessoas com quem eu convivo, a única que não sabe como eu falo, é a Lorena, que tem oito meses. Então, estou escrevendo cartas para ela. Eu quero que ela saiba quem foi a madrinha dela”.

Ana complementa: “estou fazendo um diário de todas as minha viagens, para minha afilhada, Giovanna. Caso ela queira refazer as mais legais, com minhas dicas”. Ana ainda não publicou sua bucketlist, mas me contou que precisa ir a um show da Anitta e suas cinzas serão jogadas ao som de Movimento da Sanfoninha. Eu entendo “sinfonia” e pergunto: ah, você gosta de música clássica? Não meu amor, é funk! Uma música da Anitta… Depois, fui escutar a música. Vai ser animado.

No último sábado, recebi uma mensagem da Ana: “Oie, tudo bem? Só para te contar que conseguimos armar uma estratégia de guerra aqui no hospital e a Rê vai ver o por do sol em Cunha amanhã. A gente te manda foto”.

Logo depois, veio o Padre Fabio de Melo.

Do meu lado, ficou o compromisso de oferecer um Oncocard para qualquer aventura gastronômica.

As paliAtivas continuam procurando aventuras e checks em suas bucketlists. Recebem muitas mensagens de profissionais da área da saúde, contentes em vê-las se expondo, já costumados com pacientes que preferem se esconder. Elas querem ir contra a imagem de que todo mundo que tem câncer logo morre. Em outra postagem, com Renata parecendo um pouco abatida após um evento onde deu um depoimento, Ana escreveu:  “Ela está bem. Só está exausta.. Coisa de oncocelebridade né gente, Kkkkk”. Espero que a moda pegue. Precisamos de ídolos assim.

OBS: no momento em fiz essa postagem, vi que Renata tinha acabado de partir… Decidi não fazer qualquer mudança no texto. Fica minha gratidão em tê-la conhecido e poder reproduzir suas palavras. Um abraço gigantesco em você,  Ana… Continuo querendo fazer tudo aquilo que planejamos.  

Reproduzo o post de hoje das PaliAtivas:

“Amiga, quando eu partir, posta uma foto bem linda e escreve assim:  O céu de Renata… A gente tem a alma livre demais para viver em confinamento. E, hoje, o céu é de Renata…”.

Crédito: Ana Michelle Soares