Pai desabafa sobre luto gestacional e neonatal: um luto invisível
“A mulher é quem estava grávida, então quem perdeu foi ela. O homem é um anexo, é um apêndice. Por isso, o luto do homem é tão invísivel. Se você não enxerga que ele estava gestando, como você vai enxergar que ele perdeu?”.
Luto gestacional e neonatal se referem à perda de um bebê na barriga ou em seu primeiro mês de vida. Se o luto de uma criança já não encontra espaço socialmente, esse é pior ainda.
Me parece fundamental nos atentarmos para esse tipo de luto por um motivo: muitas vezes, o luto paterno fica em segundo plano em relação ao materno. Se tratando em casos gestacionais ou neonatais, o luto paterno passa a ser invisível.
É sobre isso que nos atenta o professor de história carioca Daniel Carvalho, que perdeu sua filha, Joana, seis dias após o nascimento.
Daniel diz que esse luto, academicamente, é chamado de “luto não reconhecido”. É assim que ele mesmo se sente, não reconhecido. Ao mesmo tempo, se surpreende por ser algo mais comum do que imaginava antes de passar por isso.“Eu descobri vários amigos meus que tiveram essa perda e eu nunca fiquei sabendo. Fiquei abismado como ninguem fala disso”.
Não saber como reagir a esse acontecimento também é muito comum.“Quando Joana morreu, ela ainda não tinha certidão de nascimento. Tive que registrar o de nascimento e a de óbito no mesmo dia. Entrei no cartório recebendo os parabéns. Registrei a certidão de nascimento e duas horas depois, entrei para registrar a de óbito. Fui atendido pela mesma pessoa. Ela se surpreendeu, ficou muda, constrangida, optou pelo silêncio. Naquele momento, foi até bom”.
A madrinha da Joana é psicóloga. Uma de suas amigas estuda esse tipo de luto no mestrado e indicou um grupo de apoio ao luto neonatal e gestacional para Daniel. Ele foi imediatamente, “eu nao quero esse grupo, eu preciso desse grupo”.
E o que descobriu logo na primeira reunião? Haviam 20 mulheres e apenas 2 homens. Esses dois homens disseram que estavam lá por causa da esposa, tirando seu próprio luto de campo. Em seu depoimento, Daniel disse: “eu não estou aqui por causa da minha mulher. Estou aqui por minha causa”.
Ele estranhou o fato dos homens falarem sobre suas esposas e não sobre si mesmos. “Se eles não estão por eles, quem estará ao lado deles? Isso foi um disparo para eu me envolver mais com o grupo. O homem precisa estar em conexão com ele mesmo”.
O fato de as mulheres serem mais visíveis no luto gestacional e neonatal trouxe uma reflexão em Daniel. Ele questionou como o machismo prejudica o próprio homem em situações de vulnerabilidade, de dor.
“A mulher é quem estava grávida, então quem perdeu foi ela. O homem é um anexo, é um apêndice. Por isso, o luto do homem é tão invísivel. Se você não enxerga que ele estava gestando, como você vai enxergar que ele perdeu?”, questiona.
Machismo
“Esse é um exemplo claro de como o machismo é prejudicial para o próprio homem. Tem homem que tem dificuldade em ver como o machismo o afeta”.
Para Daniel, o machismo define papeis sociais ditando como o homem e a mulher devem reagir. Nessa divisão, não cabe ao homem exibir sua fraqueza. A sociedade impõe que ele fique quieto. Na semana passada, um familiar de Daniel o cobrou por estar há tanto tempo se sentindo mal pela morte da filha, que faleceu na virada do ano. Ele deveria “tocar para frente”. Ele sentiu esse toque como uma cobrança e não uma forma de apoio, obviamente. Ao contrário do que muitos pensam, Daniel vê na exposição da fraqueza, sinal de fortaleza.
Mensagem aos pais
Daniel deixa uma mensagem aos pais que já passaram por uma perda: “O amor é tao forte quanto a morte”.
A frase é inspirada no livro “Em busca do Sentido”, de Viktor Frankl, sobrevivente de Auschwitz. E complementa:
“Apesar da gente perder o filho, a gente não perde o sentimento de amor pelo nosso filho. Busquem se conectar com esse sentimento de amor. O mais comum, nos escondermos. Faça o movimento contrário, que seria a fuga para dentro de si e descobrir esse amor pelo filho. Quando a gente olha com amor para isso tudo, a situação deixa de ser uma situação de horror, ruim, para ser uma situação onde você consegue enxergar ternura e felicidade”.
Contato:dacarpe@gmail.com;
Sobre grupo de apoio:
Do luto à luta é um grupo de apoio que se reúne mensalmente para discutir o luto gestacional e neonatal. “Percebemos a necessidade de uma maior cuidado no atendimento a este tipo de perda nos hospitais e maternidades do Brasil, com mais respeito a autonomia e dignidade humana”, descrevem no site do grupo.